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2 PADRÕES EM PAUTA

2.4 ESTEREÓTIPO

Na investigação sobre a imagem que o público francês tem da música brasileira, encontramos nos depoimentos dos entrevistados, tanto de forma literal como implícita, outro termo recorrente: clichê. A palavra clichê vem da indústria gráfica e significa “Chapa metálica onde é produzida por fototipia uma imagem destinada à impressão”, segundo o dicionário Caldas Aulete. O clichê está associado a outro conceito, o estereótipo, que também tem sua origem na indústria gráfica significando “Forma de impressão em que os caracteres estão fixos e estáveis”. Considerando os dois termos correspondentes, escolhemos trabalhar os conceitos teóricos a partir do termo estereótipo, em razão do mesmo ter sido usado em um número maior de estudos sociológicos.

Estereótipo, para os sociólogos, designa convicções preconcebidas acerca de classes de indivíduos, grupos ou objetos resultantes de julgamentos e expectativas que não foram fruto de observações sistemáticas, evidências, mas que se tornaram “verdade” por terem se repetido inúmeras vezes (SILVA, 1986). Porém, não se pode confundir estereótipo com preconceito, uma vez que é uma convicção que se apóia em algum cerne de verdade, constitui-se em uma elaboração de atributos do objeto:

Um estereótipo é uma convicção que não está alicerçada por uma hipótese apoiada na evidência, mas é antes confundida - no todo ou em parte - com um fato estabelecido. (SILVA, 1986, p.419).

A imagem estereotipada do Brasil, da música brasileira e da música baiana, que aparece nas falas dos entrevistados, apresenta-se associada à festa, ao carnaval e à sensualidade. Muitas vezes tais idéias estereotipadas são relativizadas, os entrevistados fazem ressalvas dizendo que estão se referindo à imagem feita pelo grande público, pouco conhecedor da realidade brasileira, ou fazem observações complementares sobre a diversidade da cultura e da música brasileira. Ou seja, raramente a imagem estereotipada do Brasil apareceu de maneira enfática e/ou preconceituosa. Porém, ao analisarmos o conjunto das respostas vemos que prevalece a idéia de uma música de festa, associada ao carnaval, à alegria, como na descrição de Olivier Delsalle:

Nas grandes categorias, tem aquilo que chamamos de música de carnaval, as primeiras, pode ser que seja um clichê, mas é o que chega mais rápido no espírito das pessoas que não conhecem bem a música brasileira, então a música de carnaval, a música festiva.

Marc Régnier, agente artístico especializado em artistas brasileiros, com ênfase na música produzida em Pernambuco, é o proprietário da agência OutroBrasil que, como o nome indica, tem como missão mostrar a diversidade da música brasileira, porém ao ser perguntado como descreveria as performances baianas responde: “A partir do momento que vejo uns negões pintados com os tambores enormes, batucando e dançando... isto é muito... tem pinta de baiano”. A imagem ilustra a gênese de um estereótipo. Sim, é verdade que, dentre as produções musicais baianas, os grupos de percussão, como a Timbalada, destacam-se por sua força performática. Porém, ao se tomar esta imagem como representação da música baiana e repeti-la várias vezes, acaba-se por criar uma verdade que não corresponde ao complexo e diversificado universo musical baiano. Esta operação vai ser descrita pelo teórico indo-inglês Homi Bhabha, como um processo de representação ambivalente, apoiado no conceito de fixidez, conotando rigidez e verdades imutáveis, e, que, ao mesmo tempo, precisa ser repetido “ansiosamente” inúmeras vezes para ganhar status de verdade. A repetição em excesso acaba por produzir um efeito de “verdade probabilística” que poderia ser provada empírica ou logicamente como, por exemplo, “a licenciosidade dos negros” ou o “comportamento dissimulado do asiático” (BHABHA, 1998).

O autor entende que o estudo da eficácia deste discurso ainda não foi suficientemente aprofundado por uma questão de conveniência política, uma vez que tal posicionamento coloca em cheque os modos deterministas e funcionalistas de entender a relação entre discurso e política. Bhabha critica o julgamento normatizante do estereótipo que apenas condena as representações negativas ou positivas. Ele propõe ir além e analisar os processos de subjetivação que o tornaram possível e plausível, entender como foi construído um “regime de verdade” que se tornou um eficiente instrumento no exercício do poder colonial. Só assim será possível compreender a eficácia da ambivalência do estereótipo, um tipo de alteridade que é ao mesmo tempo objeto de desejo e escárnio.

discurso colonial é um aparato de poder que tem uma função estratégica de criar “povos sujeitos” através da produção de conhecimento que valoriza e, ao mesmo tempo, repudia as diferenças raciais/culturais e históricas.

O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de degenerados, com base na origem racial, de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. (BHABHA, 1998, p.111).

Para Foucault, o aparato de poder é o resultado de uma manipulação de forças entre o poder e o saber e responde a uma necessidade urgente em determinado momento histórico. Apesar das negociações internas existentes no exercício do colonialismo, necessárias para o sucesso e manutenção do mesmo, o discurso hegemônico apropria, dirige e domina as várias esferas de atividades das culturas sujeitas.

Entretanto, para Bhabha, essas operações são ainda insuficientes para explicar a produtividade do discurso da autoridade colonial. O autor sugere que se entenda o processo à luz da teoria freudiana e se considere o estereótipo como um modo fetichista de representação.

O fetichismo, como a recusa da diferença, é aquela cena repetitiva em torno do problema da castração. O reconhecimento da diferença – como pré-condição para a circulação da cadeia de ausência e presença no âmbito do simbólico – é recusado pela fixação em um objeto que mascara aquela diferença e restaura uma presença original. (BHABHA, 1998, p.116)

Tanto o fetiche como o estereótipo operam como uma forma de crença múltipla e contraditória quando reconhece e recusa, simultaneamente a diferença. O fetiche e o estereótipo envolvem o conflito entre prazer/desprazer, dominação/defesa, ausência/presença. Entendemos que as várias alusões feitas nas entrevistas à alegria, à espontaneidade e à sensualidade - sentimentos, geralmente, reprimidos entre os europeus – da música brasileira sugerem que há um caráter fetichista na imagem que os franceses fazem da mesma. Como disse Jean-Michel de Bie, um dos entrevistados: “O Brasil veicula clichês, etiquetas, que estão coladas na pele, são como a roupa, é a sensualidade, o prazer de tocar, o prazer imediato da música”.