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2 PADRÕES EM PAUTA

2.2 GOSTO E DISPOSIÇÕES ESTÉTICAS

2.3.1 Exotismo na Europa

A palavra Exotique por etimologia está ligada à idéia de estrangeiro: vem do latim “exoticus”, que por sua vez vem do grego “exotikos” e é formada a partir do elemento “exo” (de fora), que significa “estranho, exterior”. É difícil definir claramente o que é considerado exótico pela cultura francesa. Todorov, no seu livro Nous et les autres – La réflexion française sur la

diversité11 (1998), considera o exotismo como um relativismo onde o que se valoriza é um

país, uma cultura definidos exclusivamente por sua relação com o observador, com um julgamento de valor em que o outro é sistematicamente preferido. Trata-se mais de uma crítica a si mesmo do que de uma valorização do outro e mais de uma construção ideal do que da descrição de uma realidade. Os melhores candidatos ao papel de exóticos são os povos e culturas mais longínquos e dos quais se tem pouco conhecimento, refletindo um paradoxo implícito: uma intenção ambígua de valorizar o outro que não se conhece.

No exotismo geralmente são priorizados alguns conteúdos em detrimento de outros. Tais conteúdos são escolhidos em relação a um eixo simétrico que opõe determinadas características em relação a outras como, por exemplo, mais simples ou mais complexas, mais selvagens ou mais socializados. Até o final do século XVIII, a Europa Ocidental se considerava portadora de uma cultura mais complexa e desenvolvida que todas as outras. O exotismo se constituía na atração por outra cultura devido a seu primitivismo. Somente a partir do final do século XIX, a Europa começa a se interessar pelo que se chamou “renascimento oriental”, dando valor a certas tradições antigas árabes, indianas, chinesas, japonesas.

A valorização do primitivo, que se cristaliza na idéia do “bom selvagem”, inicia-se com as grandes viagens de descoberta no século XVI e com os relatos dos descobridores. Cristóvão Colombo, conforme seus primeiros relatos, acreditava que iria encontrar na América o “paraíso terrestre”. Américo Vespúcio, considerado um homem da Renascença, não

acreditava nesta superstição, mas descrevia a vida dos índios como próxima àquilo que devia ser o paraíso. Sua descrição dos habitantes das Américas, vivendo segundo a natureza, nus, sem subordinações ou hierarquias, sem interditos sexuais e ainda com um vigor físico de super-homens foi fundamental para inspirar Montaigne na construção do mito do bon

sauvage, considerando esses homens superiores ao europeu da época.

Montaigne também leu os relatos de viagem de André Thevet e Jean de Léry, todos dois narrando suas viagens ao Brasil. Além disso, estava presente na famosa apresentação dos

“vrais sauvages” ao Rei Henri II, em Rouen, tendo interrogado três “selvagens”. Montaigne

se serviu da imagem dos canibais para criticar a sociedade francesa da época e para mostrar que os homens primitivos estavam próximos da origem do homem, viviam felizes, juntos à natureza, gozando de sua abundância, desejando apenas o que suas necessidades naturais lhes exigiam.

A imagem do bom selvagem está sempre relacionada aos relatos de viagem que eram um dos gêneros literários de maior difusão nos séculos XVI e XVIII. O que justificaria empreender uma viagem tão cara, cansativa e perigosa? A resposta provável é que a viagem seria uma tentativa de superar a insatisfação com a vida levada nos países de origem, era o desejo de mudar de vida partindo para terras longínquas e desconhecidas. Desejava-se encontrar o

paraíso, afastando-se da sociedade européia: “Para os viajantes franceses, todos os

‘selvagens’ se parecem: pouco importa se eles habitem na América ou na Ásia, se eles vêm do oceano Índico ou do Pacífico: o que conta, em efeito, é que eles são o oposto da França.” (Todorov, 1998, p.363).

Encontramos, em nossa pesquisa empírica, depoimentos coincidentes com uma postura semelhante diante do “primitivismo” do Brasil. Jean Michel de Bie, criador e ex-diretor do Festival de Jazz de Bruxelas, que programava tradicionalmente uma noite brasileira, descreve assim a atração do europeu pelo lado exótico do Brasil:

Sim, certamente o francês, o europeu de maneira geral, os italianos certamente, os povos latinos, são muito atraídos pelo “exotismo brasileiro” e encontram sensualidade da música de carnaval, com certeza. É também uma procura inconsciente do estado do paraíso natural. Nós todos temos o fantasma (e eu também) de estar lá em comunhão com os seres mais puros, mais virgens, mais de acordo com o próprio corpo, com sua sexualidade, como se nós vivêssemos de uma forma mais intelectual, mais neurótica enquanto o brasileiro vive de uma maneira mais animal ou mais instintiva. Isto também pode ser um clichê, é difícil separar o

que é clichê, eu conheci brasileiros que estão muito longe deste clichê, claro, mas é a imagem geral, tem sempre uma imagem que predomina.

O conceito do exotismo como uma atitude crítica de si mesmo e, conseqüentemente, a valorização do outro que está distante e não se conhece bem, irá modificar-se no século XX. Ao analisar a obra do francês Victor Segalen, Todorov aponta uma ampliação do conceito de exotismo, no início do século passado. Segalen irá defender uma idéia expandida de exotismo, indo além das reduções automáticas a um tipo de país ou cultura, aos clichês da cabana e das palmeiras. Para ele, “L´exotisme est tout ce qui est autre”12 (SEGALEN apud TODOROV,

p.429), é a estética da diferença que tanto pode servir para uma relação entre diferentes culturas, como também entre os diferentes gêneros, entre o homem e a natureza e até mesmo entre as diferentes artes.

Na prática, entretanto, Segalen, etnógrafo, arqueólogo e poeta, voltou-se para China, país tradicionalmente considerado como exótico pelos franceses. Mas esta escolha não foi pautada, apenas, pelo desejo de fugir de uma realidade e viajar para um país distante. O essencial, para Segalen, era viver intensamente a experiência da diferença. O intelectual francês considera fundamental ao exotismo bloquear o processo de assimilação (do outro) e de acomodação (de si mesmo) e manter o objeto diferente do sujeito, preservar a alteridade. Para garantir esta alteridade, o indivíduo deve ter identidade própria, sólida. Por outro lado, deve haver familiaridade, identificação com o objeto, pois, sem identificação, ignora-se o outro. Entende- se, portanto, à luz dessa teoria que o exotismo depende de dois momentos: a identificação com o objeto e o distanciamento para se perceber a diferença.

O ideal de alteridade, que, na opinião de Segalen, pode ser levado a bom termo, é constantemente ameaçado pelo que Todorov chama de inimigos do exotismo. Entre estes estão os colonizadores, empresários e comerciantes que só enxergam o outro como uma fonte de lucro, alguém a quem se pode enganar para tirar vantagem. Outro inimigo seria o turismo e sua forma superficial e apressada de conhecer outras culturas, além do impacto negativo que pode causar a determinadas populações, as quais muitas vezes mudam seu comportamento, seus hábitos, para agradar aos turistas.

Mas, para Segalen, o pior inimigo do exotismo, é aquele que reconhece a diferença e, ainda assim, empreende esforços para que o outro assimile seus usos, costumes e crenças. Nesta

categoria estão, por exemplo, os missionários e os administradores das colônias que queriam impor os hábitos franceses nos quatro cantos do mundo.

Percebe-se, a partir das exposições acima, o caráter ambíguo do tema. A atração pelo exótico da música brasileira, se por um lado, facilita aos artistas do Brasil sua entrada do mercado europeu, por outro, resulta em uma cruel restrição a todo o processo criativo e evolutivo da música brasileira, tendo provocado (e ainda provoca) reações no meio artístico e intelectual do Brasil.