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2 PADRÕES EM PAUTA

3 MÚSICA BRASILEIRA NA FRANÇA

3.1 REPRESENTAÇÕS DO BRASIL NA FRANÇA

3.1.1 O lendário país do novo mundo

Antes mesmo da chegada dos franceses às terras brasileiras, o Brasil já habitava o imaginário francês, que sonhava com o paraíso lendário do “novo mundo” apenas descoberto por espanhóis e portugueses. Rabelais foi o primeiro autor francês a referir-se ao Brasil. Em uma passagem de seu livro La vie inestimable du grand Gargantua, père de Pantagruel13, editado

em 1534, o Senhor Nausiclète, personagem do livro, fala dos navios vindos “das Ilhas das Pérolas dos Canibais (Brasil) carregados de lingotes de ouro, seda crua e pedras preciosas” (RABELAIS, 1534 apud CARELLI et al, 1987). É neste livro que aparece pela primeira vez a palavra exotique.

Nicolas Durand de Villegagnon invade o Rio de Janeiro e funda na Baía da Guanabara a França Antártica. A permanência dos franceses no Rio de Janeiro dura 3 anos e o contato com este “novo mundo” despertou sentimentos ambivalentes, naturais de quem se depara com o

Outro, o desconhecido. O medo e a repulsa misturavam-se à atração pela lenda do paraíso

terrestre, antes do pecado original. Foram os mesmos sentimentos do rei Henri II que, em 1550, ofereceu aos habitantes de Rouen uma exibição dos vrais sauvages, encenando uma tribo de 300 índios, todos nus, vivendo em uma reconstituição da floresta virgem. Na verdade apenas 50 índios eram verdadeiros, os outros eram marinheiros imitando os gestos dos indígenas. Podemos dizer que este foi o primeiro “espetáculo” brasileiro apresentado na França. A apresentação fez tanto sucesso que os “verdadeiros selvagens” foram apresentados novamente em Troyes, em 1564, e em Bordeaux, em 1565.

A invasão do Brasil pelos franceses também gerou relatos de viagem. Jean de Léry é autor de

Histoire d’un voyage fait en la terre de Brésil,14 em 1578, resultado de um ano de observação

dos “tououpinambaoults” e dos “toupinenkins”. O calvinista Léry se perguntava como os índios poderiam viver felizes, sem os vícios dos cristãos, se eles estavam longe do Criador (CARELLI et al, 1987).

Após a assinatura do tratado de paz com a França, em 1815, o Rei D. João VI trouxe ao Brasil uma missão de artistas franceses constituída por Joachim Lebreton, pelos pintores Nicolas- Antoine Taunay e Jean-Baptiste Debret, pelos escultores Auguste Taunay, Marc e Zéphyrin Ferrez e pelo arquiteto Grandjean de Montigny. O grupo de artistas tinha como missão fundar a Academia de Belas-Artes nos trópicos, inaugurada em 1826. Estes artistas foram muito importantes na formação da tradição pictórica da arte brasileira; suas obras retrataram paisagens, fauna e flora, personagens e fatos sociais da época, e são testemunhos históricos do olhar estrangeiro sobre o Brasil. Voltando à França alguns dos integrantes da chamada Missão Francesa divulgaram suas impressões a respeito do país visitado.

Debret publica Voyage pittoresque et historique au Brésil ou Séjour d’un artiste français au

Brésil depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement” 15(1834-1839), três álbuns com gravuras

aquareladas feitas no Brasil. O artista não se contentou em retratar apenas a família real e sua corte, registrou também a paisagem e a vida do Rio de Janeiro com seus escravos, artesãos, cortejos e procissões, viajou pelo interior do país e lançou um olhar, quase taxonomista, sobre a flora e a fauna, assim como sobre os índios e os negros. As gravuras são complementadas por relatos do próprio Debret, que busca retratar não apenas o exotismo e curiosidades da história natural, mas vai além, descrevendo a formação do povo brasileiro sua religião, cultura e costumes. Considerado um pintor neoclássico, Debret, em seu texto, reflete traços do romantismo, demonstrando simpatia por este “peuple encore en enfance”16 e se detém na

descrição da escravatura:

Tudo pesa, no Brasil, sobre o escravo negro: na roça, ele rega as plantações do dono da fazenda com seu suor; na cidade, o comerciante o faz carregar fardos pesados... Mas é sempre mediocremente alimentado e maltratado, se ele adquire por vezes os vícios de nossos empregados domésticos, se expõe a um castigo público revoltante para um europeu

14 “História de uma viagem feita na terra do Brasil” (tradução nossa).

15 “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil ou estadia de um artista francês desde 1816 até 1831 inclusive”

(tradução nossa).

[...] (DEBRET, 1834 apud CARELLI et al, 1987, p.133).

Outro pintor, H. Taunay, filho de Nicolas-Antoine Taunay, ilustra as páginas de uma obra de seis volumes, Le Brésil ou Histoire et moeurs, usages et coutumes des habitants de ce

royaume,17 publicada por Ferdinand Denis, na França, entre 1821 e 1822. Este livro, que

detalha a vida colonial brasileira, denuncia o massacre de centenas de nações indígenas vivendo ainda em “estado de inocência”, comandado pelo europeu em busca das riquezas da terra. Ferdinand Denis viveu em Salvador entre 1816 e 1820. De retorno à França, foi o responsável por diversas publicações sobre o país e é considerado o iniciador dos estudos brasileiros naquele país. Sua descrição sobre a presença africana em Salvador é mais uma contribuição para a construção da imagem étnica da Bahia no exterior, ao ressaltar a importância do papel da música na vida dos negros da cidade.

[...] Eu vi algumas vezes homens vergados pelo peso da servidão, encontrar uma espécie de liberdade através de seus cantos. Os escravos não fazem nada sem cantar, aqueles que carregam os fardos regulam seus passos na medida em que repetem um canto monótono e lento ao qual se juntam às vezes canções cujas letras são quase sempre improvisadas.”(DENIS apud CARELLI et al, 1987, p. 138) (tradução nossa).

Ainda na Bahia, ao observar um negro tocando um instrumento rudimentar, Denis descreve:

Todas as pessoas do bairro vêm escutar nosso músico cantando letras doces em sua língua. Pouco a pouco ele revira os olhos com uma expressão singular. O entusiasmo mais delirante se reflete em toda sua fisionomia e, se ele continua seus cantos, ninguém pode resistir aos charmes potentes da harmonia: as pessoas se aproximam, se voltam para ele imitando seus gestos, lhe respondem com letras entrecortadas e pelo som de diversos instrumentos. Então a embriaguez atinge seu auge e não se pode exprimir o prazer, as palavras são insuficientes. Um europeu não entende muito isto tudo, nem pode mesmo adivinhar o motivo que comove extraordinariamente cinco ou seis pessoas e, entretanto, ele não é insensível a um espetáculo que não tem nada de ridículo”. (Ibid., p.139) (tradução nossa).

Pode-se perceber no texto que, apesar do caráter amador e cotidiano da cena descrita, o autor não hesita em considerá-la como uma expressão artística demonstrando que o estranhamento não implica o desrespeito ao Outro. Esta relação de respeito, aliada a um sentimento de indignação e de solidariedade, diante do tratamento dado aos índios e negros, registrado pelo

iniciador dos estudos brasileiros na França, já é um prenúncio da idéias defendidas por um movimento de vanguarda, o Surrealismo Etnográfico, que irá ganhar força na França, no início do século XX.

3.1.2 Négrophilie

O fim da Primeira Guerra Mundial provoca uma mudança na forma dos franceses relacionarem-se com o Outro. Os artistas franceses, que passaram pelos horrores da guerra e viveram a barbárie, perceberam o esgotamento do modelo da civilização européia, concluindo que “o mundo se tornava permanentemente surrealista” (CLIFFORD, 2002, p.135). Conseqüentemente, estes artistas da vanguarda parisiense passaram a olhar para a África (e, em menor grau, para a Oceania e a América) como uma possibilidade de novas formas de viver e de novas crenças. Os Outros surgiram como alternativas sérias de organização social, tornando possível o moderno relativismo cultural. O Surrealismo Etnográfico considerava que as sociedades “primitivas” podiam ser usadas como fontes técnicas, cosmológicas e científicas e, assim, artistas e escritores de vanguarda foram em busca destas fontes.

Um novo olhar, inicialmente concentrado na vanguarda artística francesa, contamina Paris, considerada a capital cultural do mundo na época, fazendo com que a cidade seja tomada por espetáculos de artistas negros de todas as partes do mundo. O fenômeno recebe na França o nome de négrophilie:

Paris, 1925: a Revue Nègre faz grande sucesso em sua temporada no Théatre dês Champs- Elysées, seguindo os passos da Southern Syncopated Orchestra de W.H. Wellmon. Os spirituals e o jazz arrebatam a burguesia de vanguarda, que toma de assalto os bares dos negros, vibra com os novos ritmos em busca de algo primitivo, selvagem e completamente moderno. A Paris da moda é levada pelo som pulsante dos banjos e pela sensual Josephine Baker [...] (Ibid., p.138).

É em 1922, nesta cena de efervescência da négrophilie, que a França volta seus olhos também para o Brasil. O bailarino brasileiro Duque, radicado na França, convida Pixinguinha e Donga, com seu grupo Oito Batutas para apresentarem-se no clube Schéhérazade, em Paris. A permanência do grupo, que tinha sido planejada para três semanas, estende-se por seis meses, obtendo sucesso em Paris (MENEZES BASTOS, 2005). O jornalista francês Rémy Kolpa

Kopoul especula, na entrevista empírica, que, se o grupo de Pixinguinha tivesse permanecido em Paris, talvez o choro alcançasse a notoriedade internacional do tango, mas acrescenta que a curta temporada dos Oito Batutas, não consolidou a presença desta música na França, tanto em termos de atingir o imaginário do público como em relação aos registros na imprensa.