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Estratégias de melhoria para segurança dos pacientes

Capítulo 4 – O erro humano e sua prevenção

2 Estratégias de melhoria para segurança dos pacientes

Exigência que advém da opinião pública, de órgãos responsáveis pelo processo de acreditação, de operadoras e seguradoras de saúde e de gestores governamentais e, em menor escala em nosso país, de dados provenientes de pesquisas científicas, têm pressionado os serviços de saúde a aumentar a segurança de suas ações de forma crescente e contínua em diversos países.

No Brasil, destacam-se alguns trabalhos locais vinculados a instituições de ensino, a organizações que passam pelo processo de acreditação e de iniciativas governamentais, como a participação do Ministé- rio de Saúde (MS) em algumas ações globais estabelecidas pela Aliança Mundial para a Segurança do Paciente, vinculada a Organização Mundial da Saúde (OMS), destacando-se: “Uma Assistência Limpa é uma Assistência mais Segura” e “Cirurgias Seguras Salvam Vidas” (Capítulos 8 e 9, respectivamente).

De modo geral, as ações sobre segurança em serviços de saúde priorizam a identificação e redução de eventos adversos evitáveis. Observam-se que importantes mudanças já foram feitas neste sentido, destacando-se a implementação da notificação de eventos adversos, sistemas de comunicação e de técnicas de análise associadas.

Muitos pesquisadores têm proposto que as estratégias para segurança do paciente devam seguir os modelos utilizados na aviação e nas indústrias de energia nuclear, acreditando que se obterá o mesmo sucesso. Todavia, a realidade é provavelmente mais complexa. Muitas indústrias, como por exemplo, a indústria química ou de segurança rodoviária têm adaptado as ferramentas de segurança de sistemas avan- çados e obtiveram ganhos importantes nas últimas duas décadas. No entanto, o resultado de segurança da maioria destes esforços foi abaixo do nível atingido pela aviação civil e pelas indústrias de energia nuclear. Este limite não parece ter relação com insuficiência de ferramentas, baixa competência dos trabalhadores ou uso de ingênuas estratégias de segurança; parece ser consequência de uma troca consciente entre os

objetivos de segurança, metas de desempenho e organização profissional3.

Para o sistema de saúde tornar-se mais seguro, segundo alguns pesquisadores, poderia ser exigido que as instituições de saúde abandonassem superadas tradições relacionadas com a autonomia e a autoridade, pois alguns profissionais acreditam, erroneamente, que estas características são necessárias para realizar seu trabalho de forma eficaz, rentável e agradável.

O perfil de segurança global de um sistema industrial é verificado segundo relatórios do número de eventos adversos durante um intervalo de tempo (por exemplo, uma taxa anual). Os números são geral- mente ponderados, de acordo com o volume de atividade (como o número de quilômetros percorridos por ano). A variável que melhor especifica o volume de atividade – o denominador em um cálculo de segurança – é específica da indústria e, portanto, não deve ser utilizada como padrão para outros setores. Por exemplo, a aviação civil utiliza um milhão de partidas como o valor relevante para calcular o volume de atividade, enquanto a aviação militar utiliza o número de horas de voo. A mensuração confiável dos serviços de saúde para identificar resultados de segurança do paciente é o primeiro desafio para a análise

comparativa. Na área da saúde, a prevenção de eventos adversos evitáveis seria o numerador que mais

convenceria, do ponto de vista ético3.

O movimento de promoção da segurança do paciente nos serviços de saúde começa a ter sentido no momento em que sai do “papel”, ou seja, que deixa de ser um projeto ou um regulamento para cumprir etapas de processo de acreditação, de recomendações de gestores, ou até das bases de dados dos respon- sáveis pelo gerenciamento de risco e se constitui como uma mudança de cultura que se fundamenta na atenção ao paciente e à sua família. Esta atenção pode ocorrer em uma instituição hospitalar, instituição de cuidado de longa permanência ou unidade de emergência, dentre outras. Nesta direção a avaliação sistemática do erro e das barreiras que protegem os pacientes é o pilar de qualquer sistema de atenção à saúde que pretende ser seguro. A segurança do paciente começa no local de cuidado mais próximo do

paciente/cliente8.

Todas as ferramentas criadas e adaptadas para a finalidade de segurança, como os relatos de incidentes, auditorias, bundles, cheklist, revisão de processos e triggers devem ser considerados na prática clínica. O objetivo da segurança na prática clínica é exatamente beneficiar o doente e evitar qualquer lesão decor-

rente dos cuidados. Para muitos profissionais esta é a forma habitual de trabalhar8.Mesmo nestes casos, o

sistema pode ser hostil, ou seja, não permitir que se faça o trabalho com segurança e por vezes pode criar situações de risco. Adicionalmente, a promoção da segurança do paciente não pode ser uma atividade paralela à gestão da organização, mas sim a base de trabalho para todo o cuidado.

De acordo com a literatura pertinente sobre risco e segurança, a área da saúde é um dos sistemas mais

complexos devido a9:

• Tipo de desempenho que se espera de todos os profissionais, desde atividades rotineiras, padroni-

zadas e repetitivas até as altamente inovadoras;

• Relação entre os profissionais de saúde e os pacientes, da total autonomia do paciente até a total

necessidade de supervisão;

• Tipo de regulamentações, desde atividades que não possuem regulamentação alguma até aquelas

altamente especificadas;

• Pressão por justiça após um incidente, desde simples caso legal até grandes e complexos processos

contra pessoas e instituições;

• Supervisão e a transparência da mídia e das pessoas, quanto as questões relacionadas a área, desde

pouca preocupação até demanda por fiscalização e ação nacional.

Neste contexto, Amalberti et al.3 propõem, no caminho da construção de um sistema de saúde “ultra

seguro”, a transposição de cinco barreiras de atividade na prática diária no sistema de saúde, que são comuns a um conjunto de profissões como: aviação comercial, indústria nuclear, indústria química, alimentar, transportes, dentre outras descritas a seguir.

2.1 Barreira 1: Aceitação das limitações no desempenho máximo

A primeira barreira envolve regulamentos que limitam o nível de risco permitido. Este nível é ditado por situações nas quais são requeridos níveis elevados de produção e resultados. Quando os limites não existem, isto é, a atitude predominante é “atingir um determinado nível de produção elevado, não importa o que seja preciso”, o sistema em questão é muito inseguro.

ASSISTÊNCIA SEGURA: UMA REFLEXÃO TEÓRICA APLICADA À PRÁTICA

Quando o desempenho máximo é ilimitado e os indivíduos ou sistemas estão autorizados a tomar

decisões autônomas, sem regulamentação ou restrição, o risco de eventos fatais se aproxima de 1 x 10-2 por

exposição. Por exemplo, os escaladores de montanha que atingem mais de três picos do Himalaia, 8000 metros, têm um risco de morte que excede 1 em 30 (Figura 1). Números semelhantes são observados em intervenções cirúrgicas, como por exemplo, correção de anomalias cardíacas pediátricas complexas. Este nível de risco também caracteriza os sistemas amadores.

De fato, os profissionais que atuam nestas situações são na maioria das vezes altamente competentes. Níveis de segurança baixos não surgem de incompetência. Os maiores riscos em domínios complexos são efetuados por peritos, que desafiam os limites de seu próprio desempenho máximo. Contudo, observa-se que quanto mais audacioso é o especialista, mais arriscadas são as estratégias adotadas e os mais frequentes resultados adversos são obtidos.

Por outro lado, pode haver efeitos não esperados com regulações complexas. Um caso emblemático ocorrido nas últimas duas décadas foi uma série de restrições de segurança imposta na coleta de sangue, que conseguiu reduzir os riscos associados com a transmissão do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e do vírus da hepatite em 10 vezes. Estas restrições levaram, no entanto, a uma redução acentua- da do número aceito de dadores de sangue. Este resultado demonstra uma compensação clássica entre sistema ultra seguro e produtividade. As limitações sobre as circunstâncias em que o sangue pode ser doado reduzem grandemente a transmissão de doenças graves, todavia, pode resultar no risco de que o sangue não esteja prontamente disponível, quando necessário, por exemplo, para tratar um paciente com choque hipovolêmico por trauma. Este conflito pode afetar todos os pacientes até que alternativas viáveis sintéticas para substituir o sangue humano se tornam disponíveis para todos.

Figura 1. Comparação entre várias atividades humanas e o risco de catástrofes e mortes associadas

Eventos adversos

fatais Transfusão

de sangue Cirurgia Cardíaca

Paciente ASA3-5 Anestesiologia

Paciente ASA1 Aeronaves pequenas ou helicópteros Risco em saúde Segurança estradas Voo fretado S em sist

emas além desse p

on to Aviação comercial Indústria Nuclear Indústria química Escalar o Himalaia 10-2 10-3 10-4 10-5 10-6 Muito Seguro Muito Ineguro Arriscado

Fonte: Adaptada de: Amalberti R, Auroy Y, Berwick D, Barach P. Five system barriers to achieving ultrasafe health care. Ann Intern med. 2005; 142: 756- 64.7. 6. Por Pedreira MLG. O erro humano do sistema de saúde. In: Dia a dia segurança do paciente. Ors. Pedreira MLG, Harada MJCS. São Caetano. Yendis Ed; 2010.

2.2 Barreira 2: Abandono de autonomia profissional

À semelhança do motorista de automóvel, cujos interesses pessoais (destino, velocidade) têm de se submeter aos interesses de todos os outros condutores e pedestres, no setor saúde também é importante que os profissionais sejam treinados para o trabalho em equipe, adesão a regulamentos e aceitação de regras restritas de ação, dentre outros. Assim se favorece que o pensamento sistêmico se alargue a todas as áreas da prestação de cuidados, com aumento inerente da segurança. Isto implica em inegável limitação de autonomia, com as consequências daí decorrentes. Mas a barreira de autonomia não pode ser supera- da completamente quando o trabalho em equipe se estende entre os departamentos ou diferentes áreas hospitalares, como entre enfermarias ou departamentos. Uma cirurgia para começar e terminar bem vai além da programação. A sala de cirurgia pode ser organizada em equipes para enfrentar essa mudança de plano, mas a unidade à espera do retorno do paciente não faz parte da equipe e pode está desprepara- da para enfrentar uma nova situação. O cirurgião e o anestesiologista devem ter uma noção muito mais ampla do sistema, antecipando problemas para os outros e programando novas metas. O pensamento sistêmico e a antecipação das consequências de processos de continuidade de ação, entre diferentes setores permanecem como um grande desafio (Figura 1).

2.3 Barreira 3: Aceitar a transição da mentalidade de crasftsman (meu paciente)

por profissionais da mesma categoria

A terceira barreira aparece quando as barreiras anteriores, 1 e 2, já foram superadas. A criação de um sistema seguro implica na normalização da atividade dos diversos profissionais, de maneira que a quali- dade não sofra variações inapropriadas. Para alcançar os próximos níveis de segurança, profissionais de saúde devem enfrentar uma transição muito difícil: abandonar seu status e autoimagem como crasftman ou o artista que solitariamente é responsável pelo resultado e, em vez disto, adotar uma posição que va- lorize a equivalência entre os diferentes profissionais que atuam no sistema de saúde. Por exemplo, em uma linha aérea comercial, os passageiros normalmente não conhecem e nem se importam com quem é o piloto ou o copiloto do avião e, uma mudança de última hora do comandante não é uma preocupação para os passageiros, pois as pessoas se acostumaram com a ideia de que todos os pilotos são excelentes, equivalente um ao outro nas suas capacidades.

Os pacientes têm uma atitude semelhante para anestesiologistas quando enfrentam a cirurgia. Em ambos os casos, a prática é altamente padronizada, e os profissionais envolvidos, em essência, renuncia- ram a sua individualidade para direcionar o sucesso para um serviço de padrão confiável com excelente atendimento. Eles prestam um serviço, ao invés de manterem uma identidade pessoal. Como conse-

quência, o risco de morte em pacientes saudáveis submetidos à anestesia é baixo, cerca de 1 x 10-6, por

procedimento anestésico (Figura 1). Por outro lado, a maioria dos pacientes solicita e lembra o nome do seu cirurgião. Muitas vezes, o paciente escolheu o cirurgião e acredita que o resultado da cirurgia pode variar, de acordo com essa escolha. Os resultados de segurança para os cirurgiões são bem piores do que

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2.4 Barreira 4: Necessidade de regulação sistêmica para otimização de

estratégias de segurança

Quanto mais seguro um sistema é, mais responsabilidade exige dos seus profissionais, o que não deixa de ser um paradoxo, colocando deste modo a necessidade da criação de um sistema de regulação capaz e eficiente. É mais provável que a sociedade procure responsabilizar pessoas ou impetrar recursos legais quando ocorrem falhas em sistemas mais seguros. Na nossa sociedade, os erros em serviço de saúde são intoleráveis sob o ponto de vista político e financeiro, devido, principalmente, às suas consequências e custos, não pela sua frequência e gravidades intrínsecas. A recente aprovação na Flórida, nos EUA, de uma emenda constitucional que torna todos os dados de garantia de qualidade disponíveis para o público, representa o desejo da sociedade de melhor fiscalizar os prestadores de serviços de saúde. Esta alteração levou a uma diminuição na notificação de eventos adversos na Flórida. Os profissionais, pelo receio de penalidades legais ou financeiras, tendem a reagir corporativamente.

2.5 Barreira 5: Necessidade de simplificação de regras e procedimentos

profissionais

Esta barreira ocorre de forma paradoxal, ou seja, ela é gerada a partir de sistemas considerados ex- celentes, que ao longo do tempo foram sofrendo adaptações e que não necessitam de melhoras naquele momento. Isto é, vão ser reproduzidas mais regras que podem confundir mais do que ajudar. Estas si- tuações são onerosas e tornam o sistema muito complexo. Na prática, a notificação de eventos adversos pode perder relevância e as pessoas esquecerem de relatá-los. A visibilidade do risco torna-se pequena e as decisões são tomadas sem prova clara de seu benefício, às vezes introduzindo contradições entre regu- lamentos e políticas. Por exemplo, a taxa de produção de materiais de orientação e novas regras por parte de empresas da aviação tem aumentando substancialmente. Mais de 200 novas políticas, documentos de orientação e regras são criadas a cada ano em diferentes países, apesar da segurança na aviação comercial

mundial ter se mantido em um platô de 1 x 10-6 durante anos (Figura 1). Como pouco se sabe sobre quais

novas regras ou diretrizes são verdadeiramente ligadas à segurança, o sistema é puramente aditivo: regras antigas e materiais de orientação nunca são descartados ou removidos. Assim, os regulamentos tornam-se difíceis de serem aplicados.

É necessário simplificar os sistemas, eliminando etapas que comprometem o desempenho do profis- sional. Caso consiga-se ultrapassar todas estas barreiras, estarão de certa forma criadas as condições para

a construção e implementação prática de um sistema de segurança para pacientes eficaz e exequível3.

Os serviços em saúde enfrentam barreiras semelhantes, que outros setores enfrentaram na consecução de seus sistemas “ultra seguros”. No entanto, os serviços de saúde devem acomodar três aspectos especí-

ficos adicionais3, descritos a seguir.

Primeiro, os riscos nos serviços de saúde não são homogêneos. Em muitas situações clínicas, tais

como cirurgia de trauma, a taxa de complicações grave é de 1 x 10-2, mas nem todas as complicações estão

relacionadas a erros. Pelo contrário, os riscos são inerentes às circunstâncias clínicas. Em contrapartida, alguns setores de saúde, tais como gastroenterologia endoscópica, são considerados muito seguros, com

risco de eventos adversos graves com menos de 1 x 10-5 por exposição3.

Em segundo lugar, a magnitude e o impacto do erro humano não são claros na saúde. Fundamen- talmente, três riscos são específicos em saúde: o da própria doença, que está vinculado com a decisão

clínica e a implementação da terapia selecionada. Estes três riscos geralmente não se movem na mesma direção. Esta complexidade torna o erro mais difícil de prever e entender. O prognóstico para um paciente terminal pode mudar devido a estratégia cirúrgica audaciosa. No entanto, as estratégias mais audaciosas são menos uniformemente distribuídas na profissão, são as mais tecnicamente exigentes, e são as mais

propensas a erros3.

Finalmente, aparece o risco de dano pessoal, como por exemplo, o risco de se infectar com o HIV, o qual pesa sobre o corpo clínico de uma forma única.

Certamente, um ponto prioritário da prevenção de erros são os sistemas de notificação de erros e eventos adversos, que na realidade diferem uns dos outros, especialmente porque nem todas as estatísticas têm a mesma validade, devido a diferenças nas definições, abrangência em métodos de monitoramento, além do desenho, conteúdo, objetivos, terminologias conflitantes, classificações e características que tornam

a padronização difícil3,10-11.

A notificação é necessária para o desenvolvimento de estratégias que reduzem o risco de incidentes evitáveis no sistema de saúde. Uma terminologia comum é fundamental para compartilhar e coletar dados

de pesquisa e para apoiar decisões concernentes à segurança do paciente.10 Sabe-se que é de responsa-

bilidade do profissional de saúde, das instituições e das indústrias que trabalham com equipamentos e materiais médico-hospitalares evitar que erros aconteçam. Todavia, poucos profissionais notificam seus erros e menos ainda são os que os analisam, o que implica na dificuldade de aprendermos com os erros

cometidos, e mais ainda, de prevenirmos no futuro ocorrências semelhantes8.Tal comportamento é con-

sequência da cultura de punição que cerca a ocorrência de erros no sistema de saúde.

Nesta direção, todas as organizações que se preocupam com a segurança do paciente, devem analisar os dados notificados, bem como, desenvolver uma cultura de segurança na organização, para que possa gradativamente conhecer a realidade local e propor estratégias direcionadas para uma prática segura.