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Estruturas, ideias e atores que orientam a abordagem repressiva e punitiva à

CAPÍTULO 1 – Segurança Pública e Política Criminal como espaços de ofensiva da

1.3 O pensamento “securitário-autoritário” na academia, nas corporações policiais

1.3.2. Estruturas, ideias e atores que orientam a abordagem repressiva e punitiva à

controle (dentro ou fora da lei) do crime e da manutenção da lei e da ordem, os estudos da área da sociologia da violência há muito destacam o legado autoritário que marca a forma como o Estado brasileiro lidou com a ordem interna e o controle da violência no país, o que reverbera na forma como a sociedade lida com o tema.

Paulo Sérgio Pinheiro (1991; 1997) fala do “autoritarismo socialmente implantado”, com raízes profundas que remontam ao período colonial e ao regime escravocrata, no qual as elites se mantiveram no poder e exerceram seu domínio violento contando com a legitimação popular de suas práticas, alimentadas nas relações cotidianas interpessoais, marcadas nas esferas privada e pública pela violência, intolerância e hierarquia. Esta “rede de microdespotismos” que incluiria a discriminação racial, social e econômica, a violência familiar e contra a mulher, dentre outros fenômenos, contribui para que práticas violentas e ilegais impostas pelas forças de segurança estatais na gestão da ordem interna às classes populares – como a tortura, a eliminação sumária de suspeitos, a invasão de domicílio, dentre outras – sejam apoiadas, normalizadas ou consideradas legítimas por grande parcela da população (PINHEIRO, 1991; 1997).

Nesse sentido, a sociedade civil por inúmeras vezes lidou com conflitos interpessoais violentos e com violações à lei por conta própria, não raro de forma violenta. O fenômeno histórico dos linchamentos no Brasil, o qual foi analisado por autores como Singer et al. (1999) e Martins (2015), é um exemplo da dificuldade e da tensão envolvidas no controle social da violência e da ordem.

Outros autores também destacaram o desrespeito aos direitos individuais e sociais pelas forças de segurança e o enraizamento histórico do uso da violência estatal como modo cotidiano, institucionalizado e legitimado para resolução de conflitos, como Adorno e Izumino (1999) e Alvarez, Salla e Souza (2004). Estas formas de violência refletiriam uma espécie de subjetividade autoritária na sociedade brasileira, a qual é capaz de envolver e conectar atores e instituições (SANTOS, 2015).

O construto teórico que, na visão do pesquisador, melhor identifica e denomina este tipo de pensamento na sociedade e na política brasileira atual, é o conceito desenvolvido por Marco Antônio Faganello (2015; 2017a; 2017b) relacionado à ideologia “securitário-autoritária”. Esta seria um conjunto de ideias e posturas que, em primeiro lugar, “se fundamentam na percepção de que o contexto social está marcado por uma crescente e constante insegurança e desordem pública radical” (FAGANELLO, 2015, p. 150) e por um sentimento de impunidade supostamente generalizado pela população.

concretos e reais, e associada a experiências pessoais de violência vivenciadas ou compartilhadas pelos indivíduos – também alimentada por sensos comuns estimulados por diversos setores da sociedade, como a mídia (FAGANELLO, 2015) – é muitas vezes denominada como “sensação de insegurança”. “Haveria um excesso de liberdade e uma perda de autoridade das instituições, sustentada pela incapacidade das leis democráticas e do Estado de Direito de promover a ordem” (FAGANELLO, 2017b, p. 28).

Esta percepção está profundamente associada à conclusão de que a forma de atacar esse problema necessariamente passa pela formulação de políticas públicas de segurança repressivas e um maior recrudescimento das leis como forma de resolver os problemas da segurança pública.

Ao mesmo tempo, a formulação de políticas de segurança orientadas pela lei, pela opinião de especialistas da área e por políticas públicas orientadas por evidências é secundarizada, valorizando-se e dando prioridade ao chamado “saber-fazer do dia a dia da atividade policial”, como estudado por Costa e Lima (2014). Faganello apresentou a melhor apresentação da versão extrema desse tipo de pensamento:

“o indivíduo deposita suas esperanças naqueles que estão na “linha de frente do conflito”; passa-se, assim a uma aberta glorificação da força policial, seja a partir da valorização dos seus símbolos, seja na defesa intransigente de seus atos. Os discursos buscam enfatizar o caráter heroico da figura e da atividade policial: este é o agente último da ordem, braço armado do “cidadão de bem”; aquele que cumpre seu dever mesmo com o Estado lhe oferecendo baixos salários e condições precárias de trabalho. Concebe-se uma apreciação da autoridade policial enquanto uma força portadora de uma autonomia radical; a exaltação das virtudes guerreiras e do heroísmo da figura policial se conjuga com um discurso que entende a violência como ferramenta purificadora, legitimadora e resolutiva de problemas sociais. A resolução dos conflitos na segurança pública prescinde de moderação; não pode haver tolerância, nem uma resolução baseada na busca de uma mediação calculada, essenciais para uma constituição de valores e instituições democráticas. A polícia aparece, assim, deslocada e contraposta à esfera política; as ações do poder público e de grupos de defesa dos direitos humanos contra denúncias de abuso de autoridade policial são criticadas fervorosamente. Essas medidas, argumentam os defensores do discurso extremista, ora funcionam como obstáculos à ação das forças policiais, ora são encaradas como ações deliberadas dos “defensores dos bandidos” visando à destruição da ordem pública e o fortalecimento do “inimigo” (FAGANELLO, 2017b, p. 28-29).

Tal posição, em sua versão radical, implica na valorização orgulhosa de medidas arbitrárias de repressão sobre qualquer indivíduo suspeito ou considerado criminoso; a eliminação física do sujeito sem nenhum tipo de razoabilidade entre a conduta criminosa e o castigo aplicado (FAGANELLO, 2017b). O Estado é visto como corrupto, ineficiente e incompetente para a solução do problema da criminalidade, e o Judiciário é percebido

como uma instituição leniente com a criminalidade – posição que pode ser resumida no ditado popular “a polícia prende e a justiça solta”.

A lógica do argumento desemboca em discursos que justificam ações extremistas, ou seja, que tem como características a “rejeição de uma parte essencial das regras do jogo da comunidade política” (FAGANELLO, 2017b, p. 28) – resumida aqui na máxima “bandido bom é bandido morto”.

O contexto brasileiro é propício para o cenário apontado por Wiesemeyer e Doyle (2014): o número de homicídios no Brasil chegou a 63.880 (IPEA; FBSP, 2017), taxa superior a 30 por 100 mil pessoas. Conjuntamente, a letalidade policial e a mortalidade policial atingem números alarmantes: 5.012 pessoas mortas pela polícia em 2017, num aumento de 19% em relação ao ano anterior, e 385 policiais mortos no mesmo ano (VELASCO; CAESAR; REIS, 2018), sendo que grande parte dos mesmos são assassinados quando não estão em serviço, a paisana ou realizando bicos para complementar a renda.

A população carcerária brasileira, por sua vez, registrou forte aumento desde 1990 – de 90 mil, há trinta anos, para os atuais 842.000 presos (HUMAN RIGHTS WATCH, 2019), taxa acima de 400 por 100 mil habitantes. Hoje, é a terceira maior do mundo em números absolutos, atrás apenas de Estados Unidos e China.

O panorama de violência endêmica contribui para a consideração de respostas mais duras ao problema por parte da sociedade brasileira, com a maioria da população se manifestando a favor de medidas de teor punitivo ou militarizante para lidar com questões afins à segurança e ordem públicas. A redução da maioridade penal atinge altos níveis de concordância, oscilando nas pesquisas entre 80 e 90% de aprovação – a mais recente, do Datafolha, está em 84% (JORNAL NACIONAL, 2019).

Outros temas, ainda que não tenham aprovação de esmagadora maioria da população, registram apoio significativo e em crescimento, como os 57% a favor da implantação à pena de morte no país (O GLOBO, 2018), e a população favorável à liberação do porte de armas no Brasil oscilando entre 35 e 45% - a última pesquisa disponível registrou 37% (CERIONI, 2019).

Ao adotar a perspectiva de Costa e Lima (2014), na qual o termo Segurança Pública “(...)Trata-se menos de um conceito teórico e mais de um campo empírico e organizacional que estrutura instituições e relações sociais em torno da forma como o Estado administra ordem e conflitos sociais” (COSTA; LIMA, 2014, p. 482), encontram- se vários atores e setores influentes que vem sendo representantes e “empreendedores

morais” do pensamento securitário-autoritário na sociedade e na política institucional. Nesse contexto, novos movimentos sociais de direita, como o Movimento Brasil Livre, passaram a utilizar o tema da segurança pública e o recrudescimento penal como uma de suas bandeiras principais. Samuel Silva Borges (2019), em análise do discurso apresentado pelo MBL em suas publicações relativas ao tema da segurança pública, identificou que o grupo coloca a questão da impunidade como raiz dos problemas da política criminal brasileira. Para o autor, o movimento rechaça argumentos que destacam e influência de fatores estruturais e sociais no fenômeno da criminalidade e da violência, individualizando ao máximo a responsabilidade criminal; dentre as propostas para a área, o MBL prega o recrudescimento penal, a ampliação de prerrogativas das forças de segurança (admitindo o recurso generalizado à violência) e a facilitação do acesso da população civil à armas de fogo (SILVA BORGES, 2019).

Também se identificam novas “bases intelectuais” do populismo penal e do pensamento securitário-autoritário brasileiro – que tem influência e inserção sobre os parlamentares da bancada da bala. Em relação ao tema do controle de armas e munições, o presidente da organização da sociedade civil Movimento Viva Brasil, Bene Barbosa, atua há décadas como lobista da indústria de armas e munições do país. Ele é autor do livro “Mentiram pra Mim sobre o Estatuto do Desarmamento” (2015), influente nos círculos armamentistas.

A defesa de propostas conservadoras e/ou corporativas, que em geral propõem inflação legislativa penal ou a intensificação do aparato repressivo estatal – ou, por outra via, o bloqueio de propostas progressistas/reformistas no setor – é encampada historicamente por setores de categorias atuantes na garantia da ordem interna e externa, em especial polícias e Forças Armadas, e foi abordada por autores como Cano (2006), Soares (2013) e Lemgruber, Musumeci e Cano (2003).

Um exemplo de maior notoriedade do engajamento recente de outras categorias do sistema de justiça criminal nesta área é a atuação do Ministério Público Federal em defesa da aprovação, no Congresso Nacional, das “10 medidas contra a corrupção” formuladas pela própria instituição.

Uma parcela dos membros destas instituições se engajou de maneira ainda mais incisiva na defesa de visões punitivas e repressivas relativas à política criminal. No final de 2018, foi criado um grupo dentro do Ministério Público denominado “MP Pró-

Sociedade”8; que possui, dentre suas bandeiras, a defesa do chamado “efetivismo penal”,

a redução da maioridade penal para 16 anos e a defesa da posição de que a prática de crimes seria uma decisão estritamente pessoal dos indivíduos, rejeitando argumentos de ordem social ou econômica. Ainda, dois promotores de justiça do Rio Grande do Sul publicaram o livro “Bandidolatria e Democídio”, no qual promovem uma denúncia de uma suposta cultura leniente com a violência e defensora dos criminosos (os quais seriam vistos pelos “bandidólatras” como vítimas) e da criminalidade (PESSI, SOUZA, 2017).

Na política institucional, a representação mais marcante do conjunto de práticas e valores apresentados acima, dos setores sociais que encampam tais visões sobre o fenômeno da segurança e ordem públicas, assim como da defesa das práticas das forças de segurança que se inserem neste marco securitário-autoritário é a da bancada da bala. As origens deste grupo (pelo menos enquanto reconhecido como tal), bem como sua conceituação será apresentada e discutida no capítulo a seguir.

CAPÍTULO 2 – A “Bancada da bala”: do surgimento do fenômeno aos esforços