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O posicionamento do pensamento punitivista e repressivo na classificação

CAPÍTULO 1 – Segurança Pública e Política Criminal como espaços de ofensiva da

1.2 O posicionamento do pensamento punitivista e repressivo na classificação

A análise da clivagem política orientada pelo eixo esquerda-direita remonta aos tempos de Revolução Francesa. Tal classificação sofreu importantes e profundas metamorfoses nos últimos três séculos, englobando grupos e posicionamentos em vários pontos do espectro ao longo do tempo, se adaptando a contextos e estruturas particulares de diferentes sociedades. Esquerda e direita seriam mutuamente excludentes e só podem ser denominadas como tal por oposição, como contraponto ao lado oposto (BOBBIO, 2001; LUNA, KALTWASSER, 2014).

A definição ideológica esquerda-direita estaria, na visão de autores como Norberto Bobbio (2001) e Cas Mudde (2007), vinculado à questão da (des)igualdade: a direita, grosso modo, leria o fenômeno da desigualdade (econômica, social, racial, de gênero, dentre outras) com maior naturalidade, considerando ações concretas para minimizá-las ou erradicá-las com maior ceticismo. Por esta abordagem dedutiva e calcada em valores abstratos, a esquerda, por sua vez, se distinguiria por considerar os diversos tipos de desigualdade como estruturas socialmente construídas, fundamentalmente injustas, e que devem combatidas por meio de medidas concretas (também por meio da ação do Estado) (LUNA, KALTWASSER, 2014).

Para além do debate teórico, grande parte da literatura no campo da ciência política avalia a escala esquerda-direita como ainda sendo o indicador mais relevante e significativo de diferenciação e posicionamento ideológico nas democracias contemporâneas (BADESCU, SUM, 2005; POWER, ZUCCO, 2009). Tais rótulos ideológicos ainda possuem uma função simbólica, visto que podem oferecer atalhos informacionais úteis para as elites políticas e para o eleitorado em geral (ZECHMEISTER, 2006).

direita – que podem se associar e complementar a definição “ideológica – se orientam pelas posições de grupos políticos a respeito de políticas públicas concretas relacionadas a temas econômicos ou morais (o que é avaliado, de modo indutivo, pela análise de manifestos partidários ou por surveys com elites partidárias, como nos casos dos estudos de Power e Zucco (2009; 2011; 2012; 2014; 2017) – que serão utilizados no presente trabalho – e do Latinobarómetro (2018)); tal divisão também pode ser lida por uma chave “sociológica”, analisando esquerda e direita a partir de bases sociais e eleitorais específicas, com interesses e posições sociais relativamente bem definidas.

Entretanto, considerando as limitações estruturais para uma política eleitoral de direita calcada na manutenção de privilégios e na oposição à políticas de redução da desigualdade, esta precisa se valer de outros recursos para obter apoio político. Uma das principais estratégias utilizadas por este grupo é a mobilização programática de divisões políticas na sociedade não relacionadas à disputas redistributivas de renda e direitos sociais (LUNA, KALTWASSER, 2014). As principais disputas nesse âmbito são as referentes ao conservadorismo moral e o tema da ordem e da segurança pública.

Pierre Ostiguy (2009), em diálogo com esta interpretação, analisa que algumas outras discussões políticas centrais se relacionam intimamente com a divisão ideológica esquerda direita, como o liberalismo econômico, o conservadorismo moral/de costumes, e, o que é de maior interesse no presente estudo, questões relacionadas à autoridade e manutenção da ordem social.

O sentimento de medo e insegurança, assim como o desejo de “ordem” e retorno a um estado de coisas pregresso, idealizado e nostálgico há muito tempo é identificado como um propulsor para a direita política e o pensamento conservador, que não raramente canalizam tais sentimentos para a esfera pública e para plataformas político partidárias.

Pierucci (1987) identificou a força do discurso punitivo e em defesa da “garantia da lei e da ordem” como uma das bases do discurso da então “nova” direita política no período imediatamente posterior à ditadura civil-militar, naquele tempo associada ao janismo e ao malufismo (Jânio Quadros e Paulo Maluf, respectivamente prefeito e ex- prefeito de São Paulo naquele tempo):

“Ora bem, o sentimento de insegurança diante do crime, do risco da agressão ou da intrusão, diante da multiplicidade de fontes eventuais de ameaça e de perigo, engendra discursos cognitivos explicativos — vinculando insegurança (nossa) e imigração = intrusão (deles) —, mas também produz discursos de indignação moral contra a decadência dos costumes. Em ambas as ordens de discurso — e isto é impressionante — a base é sempre o preconceito social. Se

isto nada tem de novo como elemento definidor da direita, quer da autoritária quer da aristocrática, não deixa contudo de ser lastimável que na São Paulo dos anos 80 passe a aflorar este mal-estar racista, como fenômeno tão generalizável quanto o mal-estar "securitário"” (PIERUCCI, 1987, p. 32-33).

A pesquisa de Wiesehomeier e Doyle (2014), realizada ainda durante o período em que a maioria dos países da América Latina eram governados por partidos à esquerda do centro, mostrou o potencial de mobilização e engajamento político que questões relacionadas à criminalidade, segurança e ordem públicas poderiam permitir – produzindo dividendos eleitorais especialmente para a direita política. Ainda que haja maior probabilidade de eleitores à direita do centro aprovarem políticas de mano dura, há uma tendência de uma parcela do eleitorado considerar partidos de direita com maior credibilidade para tratar do tema da segurança pública e no combate à criminalidade (WIESEHOMEIER, DOYLE, 2014).

“Increasing public fear about rising crime presents parties of the right with the opportunity to mobilize heterogeneous electoral coalitions centered on issues of public security and increasing delinquency within society that have the potential to overcome the general left-right cleavage and deflate the traditional distributive campaigns of the left (…) Crime and public security are clearly issues that the right can exploit to overcome the general left- right cleavage, and to garner support beyond its core support base.” (WIESEHOMEIER; DOYLE, 2014, p. 50)

Esta janela de oportunidade para partidos de direita se apresentava ainda mais evidente no contexto latino-americano, com altos índices de homicídios e criminalidade violenta, e grande preocupação do eleitorado com o tema da segurança pública – mesmo naqueles tendentes à esquerda ou sem ideologia pronunciada:

“the Latin American electorate, irrespective of their ideology, considers crime as one of the most serious issues facing the region today, the ability of the right to exploit such topics for future electoral campaigns seems crucial. The parties of the right therefore have an opportunity not only to woo supporters of left- leaning parties with visions of public order and strong leadership, but also to appeal to those in the electorate who do not declare any ideological stance. (…) For those with an undeclared ideology, crime and delinquency are the most important problems facing the region today, and although the respondents who comprise this group share similar convictions to those on the left across a number of issues, when it comes to the exercise of power, the position of the undeclared citizen is similar to that of the right. The interaction of public insecurity and the attitude of undeclared voters toward the exercise of power potentially provides parties of the right with a solid foundation upon which to build electoral platforms that could appeal to this group.” (WIESEHOMEIER, DOYLE, 2014, p. 50-54)

Fica evidente, desse modo, o potencial de utilização, pela direita brasileira, dos temas da criminalidade, insegurança e defesa da ordem pública como recursos de atração

de grande parcela do eleitorado e como arma para atacar a esquerda e a atuação dos governos petistas na área.

Este comportamento ajuda a compreender também o fato de partidos e parlamentares à esquerda do centro também se utilizarem, por vezes, do discurso punitivo para angariar votos e ampliar apoios para além de suas bases eleitorais tradicionais – nesse sentido, uma estratégia possível é o recurso de buscar a proteção de bens jurídicos caros a setores progressistas (minorias sociais, criminalidade de colarinho branco) pela via penal.

1.3 O pensamento “securitário-autoritário” na academia, nas corporações policiais