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2 POR UMA ANÁLISE DEDUTIVA DO CONCEITO DE PRECEITO

2.5 O princípio da dignidade da pessoa humana como elemento de conformação dos

2.5.1 Evolução histórica do conceito de dignidade da pessoa humana

Estudado o caráter sistêmico dos direitos fundamentais, declinada a concepção de preceito fundamental, detalhadas a eficácia, aplicabilidade e aduzidas algumas linhas sobre a concepção concretizante dos direitos fundamentais (espécies de preceitos fundamentais), compete adentrar na base de todos os direitos fundamentais, no princípio mais importante da Constituição Federal, com vistas a formular o melhor manuseio da ADPF. O princípio da dignidade humana,223 elemento de conformação dos demais direitos fundamentais, representa

este importante conteúdo a ser explanado.

Assim, iniciando essa subseção, passa-se à análise da evolução histórica do princípio da dignidade da pessoa humana.

Eduardo Ramalho Rabenhorst, adiantando um primeiro posicionamento do que seja dignidade da pessoa humana, relata: “a dignidade é acima de tudo uma categoria moral que se relaciona com a própria representação que fazemos da condição humana, ou seja, ela é qualidade ou valor particular que atribuímos aos seres humanos em função da posição que eles ocupam na escala dos seres.” 224

223 Destaca-se que, como tratado na subseção 1.2.1., o caráter de direito fundamental está ligado à proteção do

princípio da dignidade da pessoa humana.

224 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília

Levantada esta primeira conceituação, da qual se extrai, dentro de uma perspectiva filosófica, a forte carga moral e valorativa da dignidade humana - caráter exclusivo de nossa espécie – passa-se a uma análise histórica da evolução do conceito de dignidade da pessoa humana.

Nos primórdios, vêem-se no pensamento cristão as primeiras sinalizações de uma universalização de tratamento igualitário entre os homens. São Paulo, em sua Epístola aos Romanos, pregava: “pois sou devedor tanto a gregos como a sábios, tanto a sábios como a ignorantes” (Romanos, 14). Ora, se todos os homens são criaturas de Deus, eles são iguais enquanto criaturas. Se há desigualdade entre os homens, ela é resultante de uma imperfeição aparente, já que o logos divino fez de todos os seres humanos livres e iguais.225226

Séculos depois, é digna de destaque a concepção kantiana, embasada na autonomia da vontade, entendida como a faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis - um atributo apenas encontrado nos seres racionais - constituindo-se num “moderno” fundamento da dignidade da natureza humana. 227

Dentro das concepções abrangentes da autonomia da vontade, importa trazer à colação os seguintes posicionamentos de Kant:

o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado como um fim. Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja experiência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é objeto de respeito).(itálico não presente no original) 228

Pode-se falar, então, que, na perspectiva kantiana, a dignidade humana se funda no lugar que o homem ocupa na escala dos seres. Diferentemente das outras criaturas vivas, nós, humanos, podemos ultrapassar o estágio da simples animalidade e identificar, tanto em nós

225 Cf. RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília

Jurídica, 2001, p. 25.

226 Em que pese esta igualdade cristã, vê-se que esta religião legitimou a estratificação social ora existente e o procedimento perseguidor da inquisição, o que só no presente século veio a ser desmerecido com o pedido de perdão do falecido Papa João Paulo II.

227 Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. in: Os Pensadores – Kant (II),

Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 134 e 141.

mesmos como nos nossos semelhantes, uma mesma essência livre e racional, isto é, uma idêntica humanidade. E é precisamente o reconhecimento dessa humanidade aquilo que Kant chama de respeito, ou seja, uma máxima restrição que nos obriga a não rebaixar os nossos semelhantes ao estado de mero instrumento para a consecução de uma finalidade qualquer. 229

Sintetizando as etapas históricas de legitimação da dignidade da pessoa humana, Rabenhorst é elucidativo:

contudo, na perspectiva cristã, tal dignidade encontra sua justificação em uma certa natureza divina do homem, isto é, no fato de este representar uma unidade substancial entre matéria e espírito, criada conforme a imagem e semelhança de Deus. Já para Kant, a dignidade se alicerça na própria autonomia do sujeito, isto é, na capacidade humana de se submeter às leis de sua própria potência legisladora e de formular um projeto de vida de forma consciente e deliberada.230

Dentro da concepção kantiana, pode-se ver a idéia de uma comunidade moral, uma comunidade universal da qual fazem parte todos os seres racionais, submetida à sua potência legisladora racional.

Todavia, vislumbra-se que a concepção kantiana, diante da força dada à racionalidade como elemento distintivo, acaba por apresentar um aspecto negativo, pois prega uma desvalia dos seres irracionais - meros meios - elevando os seres racionais a fins em si mesmos, donde decorre o valor em dignidade destes. Portanto, não caberia em se falar de dignidade com relação aos animais – meio, instrumentos - o que hodiernamente se mostra incompatível, considerando-se todo o arcabouço legal protetivo dos animais e da natureza em geral.231

Esta teoria, por outro lado, apresenta como ponto positivo o fato de a dignidade humana tolher a coisificação de um ser humano em relação ao outro, ou seja, um ser humano é fim e não meio para o desenvolvimento de outro. Este é o mérito que se extrai de sua formulação.

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