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3 O PERCURSO LEGITIMATÓRIO DA PRÁXIS JUDICIAL: PRELIMINAR

3.2 O poder judiciário – garante dos direitos fundamentais

3.2.3 A função criativa dos tribunais e dos juízes na concretização dos direitos

Conformados a importância e os limites da função jurisdicional, importa traçar a relevância da função criativa dos juízes na concretização dos direitos fundamentais.

Seguindo esse caminho, é de se destacar que as proclamações nacionais dos direitos fundamentais cessam de ser meras declamações filosóficas no momento em que sua atuação é confiada, em concreto, aos tribunais, ou a tribunais constitucionais nacionais, de forma a expandir o âmbito do direito judiciário e aumentar a criatividade dos juízes. Cabe, então, ao tribunal investido da árdua tarefa de atuar a Constituição a tarefa de agir criativamente no sentido de fixar o conteúdo de tais enigmáticos e vagos preceitos, conceitos e valores positivados. Ao judiciário, assim, cabe preencher de sentido e conteúdo dos direitos fundamentais com vistas a garantir a sua máxima eficácia. 336

Contudo, em que possível a atividade criativa dos magistrados, é de se destacar que sua função é bem dispare do legislativo. Em sua atividade interpretativa, ou de concretização, os magistrados são chamados a esclarecer, integrar, plasmar e transformar, não raro criando novo direito, não significando isso em tarefa legislativa. Ambos os processos são diferentes. O juiz está vinculado a solução de casos concretos ou abstratos com imparcialidade, desde que, de maneira inicial, seja provocado pelas partes. O legislador é orientado por um processo específico (de caráter eminentemente procedimental) de confecção de normas generalizantes ou individuais imbuídas, em certos casos, de parcialidade.337

Todavia, em que pesem esses argumentos, algumas vezes os tribunais atuam mais numa função legislativa do que judiciária, quando exercem, em hipóteses de Cortes Supremas, o poder de emanar diretrizes gerais em tema de interpretação vinculantes para os demais Tribunais e até mesmo poderes. Nesses casos, destaca-se que a competência é fixada pela própria Constituição ao estabelecer os guardiões da Constituição e os guardiões da legislação federal.

336 Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto

Alegre: Ed. Sergio Antonio Fabris, 1993, p. 66-68. 337 Cf. Idem, ibidem, p. 74 e 75.

Nesse passo, é de se frisar que a competência dos Tribunais Constitucionais não pode derivar diretamente de princípios de direito suprapositivos que o mesmo tem desenvolvido. Eles, nesse processar, se desvinculam das regras constitucionais e vinculam os demais poderes, disfarçando um decisiocismo sob o manto de uma pretensa “ordem de calores”. Deve-se evitar a concepção da Constituição como uma Bíblia a ser deduzida pelos sábios. Desta forma, é interessante entendê-la como documento de institucionalização de processos e garantias fundamentais.338

Outro contra-argumento que se apresenta é o da teoria da concretização constitucional, fundada que está na superioridade da norma sobre o problema, de forma bem diversa da tópica. Por ela, mesmo que se fale de ordem de valores, deve-se assentar a sua positivação como ponto nodal, bem como a necessária adequação à realidade circundante, pontos que servem como aparas à atividade criativa do intérprete.339

Deve-se evitar, outrossim, na atividade de interpretação dos Tribunais Constitucionais, as restrições de direitos fundamentais por via de sopesamento de valores referidos a um caso concreto, o que não encontra amparo nas normas escritas, mas em idiossincrasias não-escritas dos aparatos econômicos e políticos.

Em suma, deve-se combater a informalização do direito, de sorte a não colocar a autonomia do sujeito em cheque diante da autonomia de sistemas funcionais, da intervenção casuística estatal. O judiciário não pode ser visto como guardião moral da sociedade, sob pena de extravasar o âmbito do jurídico e desqualificar a base social. O judiciário não pode se apropriar de todas as matérias, conformando-as como juridicamente relevantes, pois o recorte da realidade é processado pela norma. Em assim atuando, estaria ampliando o poder de sanção e coerção estatal sem legitimidade para tanto. Não se pode judicializar as relações sociais, mas socializar a justiça, respeitando um limite imanente, a não delegação de pontos de vista morais pela base social ao judiciário.340

338 MAUS, Ingeborg. “Justiz als gesellschaftliche Über-Ich - Zur Funtion von Rechtsprechung in der ‘vaterlosen‘ Gesellschaft“, in Werner Faulstich e Gunter Grimm (orgs.): Sturz der Götter. Frankfurt am Main:

Suhkamp, 1989, 1 ed., p. 121-149. Tradução de Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Paulo Antonio de Menezes Albuquerque. Recife: [s.n.], [ca. 2000].

339 Idem, ibidem. 340 Idem, ibidem.

Deve-se, assim, buscar um ponto de equilíbrio entre a evolução moral e a sua apropriação pelas decisões, sua judicialização, de modo a que a sociedade possa evoluir.341

Todavia, o magistrado não deve descurar dos parâmetros traçados pela norma, do programa normativo.

Depois de levantadas as aparas que devem permear a atividade criativa dos tribunais, levanta-se, nesse momento, como contra-argumento daqueles que não entendem possível a criação do direito pelo judiciário, a possibilidade da norma inaceitável, judicialmente criada, poder ser corrigida ou ab-rogada mediante ato legislativo ou por meio de revisão constitucional.342343

Deve-se ter em vista, aliás, que o processo decisório jurídico não é governado por normas universais, mas sim moldado e constituído por padrões mutáveis e auto-organizados, os quais se encontram freqüentemente articulados como regras mas são de fato apenas "regularidades", padrões que orientam e são produzidos pela ação.344

Ao decidir, o juiz deve ter em vista uma esfera de implicação, caracterizada por uma forma relativamente certa e um conteúdo relativamente incerto. O discurso legal, dentro dessa esfera de implicação, dependeria de uma técnica que torna possível criar a ilusão de certeza em uma esfera de incerteza, o que seria operacionalizado por premissas ocultas que se movimentam na esfera de implicação. 345 Essas premissas, na concepção de Müller,346 seriam

carreadas como pré-compreensão.

Ao julgar o caso concreto, portanto, o juiz deve adaptar a lei às necessidades atuais, não significando uma tradução arbitrária desta. Compreender e interpretar significam conhecer e reconhecer um sentido vigente, delimitado pelo contexto histórico.347 O juiz

341 MAUS, Ingeborg. “Justiz als gesellschaftliche Über-Ich - Zur Funtion von Rechtsprechung in der ‘vaterlosen‘ Gesellschaft“, in Werner Faulstich e Gunter Grimm (orgs.): Sturz der Götter. Frankfurt am Main:

Suhkamp, 1989, 1 ed., p. 121-149. Tradução de Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Paulo Antonio de Menezes Albuquerque. Recife: [s.n.], [ca. 2000].

342 Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores. Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto

Alegre: Ed. Sergio Antonio Fabris, 1993, p. 100-101.

343 Some-se a este argumento os carreados na subseção 4.1.2.

344 SOBOTA, Katharina.“Don't Mention the Norm!”. International journal for the semiotics of law, IV/10, 1991, p. 45-60. Tradução de João Maurício Adeodato. Recife: [s.n.], [199-].

345 Idem, ibidem.

346 Vide subseção 4.2.

347 Nesse passo, merece destaque a assertiva de Reale: “O direito passa a refletir a historicidade do homem, que é o único ente que é enquanto deve ser, sendo o valor da pessoa a condição transcendental a toda a experiência ético-jurídica.” REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 2 ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 1971, p. 63.

contextualiza o texto com a realidade circundante procedendo à aplicação do direito e à criação da norma jurídica. “A decisão do juiz que ´intervém praticamente na vida´, pretende ser uma aplicação justa e de nenhum modo arbitrária da lei; deve pautar-se, portanto, em uma interpretação justa e isso inclui necessariamente a mediação de história e atualidade na compreensão.”348

Desta forma, a tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação. Esta complementação produtiva do direito está reservada ao juiz, o qual, como todos os membros da comunidade jurídica, encontra-se sujeito aos limites da lei.

Assim, é de se citar Gadamer no sentido de que “na idéia de uma ordem judicial supõe-se o fato de que a sentença do juiz não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de uma ponderação justa de conjunto.”349 É por isto que existe segurança no mundo jurídico.

Portanto, o que se colhe do exposto é a importante atribuição do judiciário em tornar concretos os valores e conceitos jurídicos indeterminados carreados pela Constituição, desde que observadas as pautas de adequação com a realidade e com o programa normativo.350 O

judiciário, desta feita, não pode inovar em descompasso com a realidade, muito menos com o estabelecido na norma. A criação do direito por esse poder, então, só é permitida nos casos em que a norma o admita, a realidade dê sustentação e a interpretação se molde ao valor justiça, não apresentando viés arbitrário. É esta plêiade de aspectos que dá fundamento normativo, o fato do poder emanar do povo, real, o aspecto de Estado Social carente de implementação do Brasil, e justo, a garantia dos direitos e preceitos fundamentais, a fomentar uma legitimação ampla e em defesa de direitos subjetivos por meio da ADPF.

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