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EXPO ‘98: UMA PROPOSTA DE REGENERAÇÃO URBANA

O PAPEL DO AZULEJO NA REGENERAÇÃO URBANA DA DOCA DOS OLIVAIS, EM LISBOA: DA EXPO ‘98 AO PARQUE DAS NAÇÕES

EXPO ‘98: UMA PROPOSTA DE REGENERAÇÃO URBANA

Idealizada sob o tema Os Oceanos – um património para o futuro, a Expo ‘98 tinha como objectivo restabe- lecer um vínculo entre o rio Tejo e a comunidade lisboeta através de um plano de regeneração urbana da zona ribeirinha de Lisboa. O local que acabou por acolher este grande evento cultural foi a área portuária e industrial, bastante degradada, que envolvia a doca dos Olivais.7 Com o intuito de transformar esta zona

num novo espaço da capital, que permanecesse após o término da Expo ‘98, este planeamento não se circunscrevia ao recinto onde seria realizado o evento, mas a toda à sua área circundante, e incluía diver- sos projectos urbanísticos multidisciplinares,8 constituídos por equipamentos culturais, espaços de lazer

e edifícios habitacionais. A preocupação com a gestão futura do recinto estava relacionada com a má ex- periência registada em exposições universais anteriores, em particular a Sevilha ‘92 (CAEIRO, 2014: 135; REGATÃO, 2010: 137). Procurando não repetir os mesmos erros e de modo a consolidar a regeneração urbana prevista no âmbito da Expo ‘98, a organização decidiu recorrer a propostas de arte pública / ur- bana como uma forma de atribuir identidade à área de intervenção, possibilitando assim a “qualificação estética e vivencial” deste “novo” espaço da cidade (CAEIRO, 2014: 136; LEITÃO, 2016: 48). Como afirma António Manuel Pinto, um dos comissários dos projectos de arte pública elaborados para a Expo ‘98:

“para além da problemática do espaço público urbano e da sua vivência, colocava-se também o problema da introdução válida de projectos de arte contemporânea a que genericamente chamamos de «arte ur-

6 Esta autora propõe mesmo um novo conceito, new genre public art.

7 Este sítio foi a terceira alternativa de localização deste evento (VELEZ, 1999: 31).

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bana»9 – no espaço público. Desejava-se a introdução de projectos artísticos que influíssem nas práticas

vivenciadas do território que se criava. (...) Tendo em conta toda a problemática que envolve o espaço público, os projectos para a zona de intervenção assumem assim uma vertente clara de humanização da paisagem urbana da nova cidade que resulta da reconversão da zona oriental de Lisboa. (...) O artista vê-se obrigado a questionar o valor social da sua obra e o lugar que esta ocupa dentro de uma lógica espacial” (PINTO, 1998: 13).

Das vinte cinco intervenções urbanas realizadas para este grande evento cultural, o azulejo esteve presen- te em cinco, e ainda em dois dos cinco pavilhões principais da Expo ‘98 – no Pavilhão de Portugal e dos Oceanos. Para além das interrogações que se levantam em torno do azulejo, importa questionar o progra- ma artístico da Expo ‘98 de um modo mais amplo: será que estas propostas cumpriram as premissas do programa de arte urbana, e os seus autores “questionar[am] o valor social da[s] sua[s] obra[s] e o lugar que esta[s] ocupa[m] dentro de uma lógica espacial” (PINTO, 1998: 13), contribuindo para a regeneração urbana desta zona da capital?

Marta Traquino considera, de uma forma global, que a maioria destes projectos artísticos frustraram o objectivo do programa não superando a função de decorativismo do espaço (TRAQUINO, 2010: 126). To- davia, no caso das intervenções cerâmicas, houve autores que trabalharam o espaço com o propósito de contribuir para o seu melhoramento urbano, e outros que optaram por não atribuir esta dimensão social às suas obras.

REGENERAR

Algumas das intervenções em azulejo no contexto da Expo ‘98 assumiram “uma vertente clara de humani- zação da paisagem urbana da nova cidade que resulta da reconversão da zona oriental de Lisboa” (PINTO, 1998: 13). Para tal, os diferentes autores tiveram em conta a especificidades do espaço, centrando-se sobretudo nas memórias de vivências anteriores, no estabelecimento de relações e diálogos com as áreas circundantes ou atendendo às funções e “iconografias” de cada local, como veremos de seguida, procuran- do naturalmente actuar ao nível da forma como o espaço iria ser apreendido pelos seus futuros fruidores. O trabalho de Pedro Cabrita Reis (n. 1956) para o viaduto da Avenida Marechal Gomes da Costa e a rotun- da EXPO 98, disso é exemplo (Figura 1). Respondendo ao desafio de intervir em dois espaços de circulação automóvel, o artista procurou que os automobilistas pudessem usufruir dos mesmos, optando por revestir o interior e exterior do viaduto com azulejos pretos e brancos, dispostos em xadrez, estendendo esta lógi- ca de aplicação à rotunda, onde inseriu duas estruturas em betão (uma paralelepipedal e outra cilíndrica) e dois muros com aberturas, que envolvem uma oliveira centenária (ALMEIDA, 2009: 88-89; JUSTO, 1998: 29; OLIVEIRA, 2000: 183-184). Ao manter esta árvore, Pedro Cabrita Reis evocava a paisagem ancestral deste espaço, onde em tempos existiram olivais. Para além de explorar a memória do sítio, o artista criou uma intervenção para ser percepcionada em movimento, mas a duas velocidades: uma mais rápida para o viaduto, através dos ritmos contratantes do revestimento cerâmico, e uma mais lenta para a rotunda, que é percorrida a uma velocidade menor, permitindo observar com mais pormenor a obra. Esta propõe inúmeros enquadramentos à paisagem envolvente, que derivam da articulação entre os cinco elementos que constituem este equipamento urbano e o ângulo de observação do condutor (Figuras 2 e 3) (LEITÃO, 2016: 64-65).

9 Salienta-se, que esta opção por designar as intervenções artísticas como “arte urbana” teve como objectivo diferenciar estas

obras da tradicional “arte em espaço público”, associada à estatuária em território nacional (REGATÃO, 2010: 138). Como tal, estes projectos enquadram-se mais na definição de arte pública e de design urbano, do que de arte urbana (NEVES, 2015: 131). Na contemporaneidade, esta indevida apropriação é muito frequente devido às fronteiras entre estes três conceitos

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Figura 1 - Parque das Nações, Viaduto da Avenida Marechal Gomes da Costa, Pedro Cabrita Reis, 1998 [foto: © Inês Leitão].

Figuras 2 e 3 - Parque das Nações, Viaduto da Avenida Marechal Gomes da Costa, Pedro Cabrita Reis, 1998 [fotos: © Inês Leitão].

A intencionalidade de envolver o transeunte com o espaço também foi trabalhada pelo arquitecto Álvaro Siza Vieira (n. 1933) no Pavilhão de Portugal, edifício que tinha a responsabilidade de transmitir “uma imagem emblemática e festiva” devido à sua função de acolher a representação portuguesa no evento (Figura 4) (SIZA, 1998: 39). Para responder a estas exigências, e inserir o conjunto edificado no espaço envolvente,10 Siza criou dois espaços diferentes: um edifício que acolhesse o pavilhão expositivo e uma Pra-

ça Cerimonial destinada a receber os grandes acontecimentos da Expo ‘98. Este último sítio é coberto por uma monumental pala em betão, suspensa por dois pórticos, onde foi aplicado o revestimento cerâmico.11

Utilizando o vermelho escuro para a fachada virada para o interior da Praça, e o verde-claro para a fachada voltada para o “exterior”, o arquitecto tinha como objectivo evocar a bandeira portuguesa, possibilitando, ao mesmo tempo, a identificação do pavilhão e da sua função (Figuras 5 e 6) (ALMEIDA, 2009: 92; LEITÃO, 2016: 68-69). Muito embora o azulejo tenha assumido esta ”iconografia”, também pretendia tirar partido do rio que lhe estava próximo, o Tejo, através de um jogo de reflexos que simulam os diferentes efeitos da água, e que, consequentemente, provocam uma constante mutação da superfície parietal do Pavilhão, consoante a deslocação dos transeuntes e a luz atmosférica que nela incide. Esta dimensão sensorial que a obra assume interpela o individuo convidando-o a interagir com o edifício e o próprio espaço.

10 Quando Álvaro Siza Vieira projectou este pavilhão, ainda não se sabia o que iria ser construído na área circundante ao emble-

mático edifício. Perante isto, o arquitecto guiou-se pelos elementos que existiam, à época, naquela zona: o Oceanário de Lisboa (que estava em construção) e o rio Tejo.

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Figura 4 - Parque das Nações, Pavilhão de Portugal, Álvaro Siza Vieira, 1995-1998 [foto: © Inês Leitão].

Figura 5 - Parque das Nações, Pavilhão de Portugal, Álvaro Siza Vieira, 1995-1998 [fotos: © Inês Leitão].

Figura 6 - Parque das Nações, Pavilhão de Portugal, Álvaro Siza Vieira, 1995-1998 [fotos: © Inês Leitão].

Por sua vez, o designer Ivan Chermayeff (n. 1932) foi convidado a intervir num dos dois edifícios do Pavi- lhão dos Oceanos (actual Oceanário de Lisboa),12 outro local emblemático da Expo ‘98. Com o objectivo

de atribuir uma leitura integrada à fachada oeste do Edifício Administrativo deste espaço, Ivan Chermayeff criou um “um refrescante panorama da vida aquática” através de uma iconografia que remete para a fau- na e flora marinha, e que indica a função do Pavilhão (ALMEIDA, 2009: 86). Esta percepção só é possível a uma longa distância, pois se observarmos a fachada a uma curta distância estas formas assumem um

12 Projectado pelo arquitecto Peter Chermayeff (n. 1996), o Pavilhão dos Oceanos era composto pelo singular Edifício do Ocea-

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conjunto de símbolos informáticos, um dos assunto dominantes da actualidade (Figuras 7 e 8). O designer desafia, assim, o passeante a interagir com o espaço através deste jogo óptico entre proximidade e distân- cia, que confere um grande dinamismo à fachada. Ivan Chermayeff propõe também a duplicidade entre o passado e o presente, criando um conjunto de padrões que evocam o universo digital, sendo mesmo de- senhados a computador, mas pintados à mão, uma técnica tradicional, e inspirados na produção azulejar azul e branca, da primeira metade do século XVIII (CHERMAYEFF, 1997).

Figura 7 - Parque das Nações, Oceanário de Lisboa, Edifício Administrativo, fachada oeste, Ivan Chermayeff, 1996-1998 [fotos: © Inês Leitão].

Figura 8 - Parque das Nações, Oceanário de Lisboa, Edifício Administrativo, fachada oeste, Ivan Chermayeff, 1996-1998 [fotos: © Inês Leitão].

Corroborando esta intencionalidade, de regenerar a zona da doca dos Olivais, o Projecto das Sombras, inserido no Jardim da Água13, da autoria de Fernanda Fragateiro (n. 1962), pretendeu criar “um ambiente

de encontro e partilha através da exploração das características, funcionalidades e memória ancestral do espaço” (Figura 9) (LEITÃO, 2016: 138). Este revestimento cerâmico, caracterizado por sombras de algas - recolhidas no rio Tejo, no século XIX, pelo austríaco Friedrich Walwitsch - e excertos da lenda ren- da de bilros, foi aplicado em dois muros que circunscrevem um lago artificial (possível de atravessar). À semelhança de Álvaro Siza Vieira, Fernanda Fragateiro também explorou as características reflectoras do azulejo para simular o movimento e as capacidades de reflexão da água (Figura 10).

13 Fernanda Fragateiro, em conjunto com o atelier RISCO, criou os Jardins da Água um conjunto de espaço verdes onde-se

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Figura 9 - Parque das Nações, Jardins da Água, Jardim da Água, Projecto das Sombras, Fernanda Fragateiro, 1998 [foto: © Inês Leitão].

Figura 10 - Parque das Nações, Jardins da Água, Jardim da Água, Projecto das Sombras, Fernanda Fragateiro, 1998 [foto: © Inês Leitão].

“(...) um conjunto de obras que remontam, qual duplo, o fenómeno óptico da refracção e de reflexão da luz provocado pela água. Ora deixando ver, ora apagando, ora reproduzindo, duplicando ou tornando translúci- do, cada peça, cada elemento no jardim responde em eco, ampliando-o ou diminuindo-o, infinitamente, aos motivos que a artista escolheu” (OLIVEIRA, 2000: 190).

Esta obra promove um ambiente de encontro e partilha através da exploração que a artista faz das parti- cularidades, funcionalidades e memória ancestral do espaço. O Jardim da Água convida os seus fruidores a vivenciarem o local, propondo-lhes uma constante descoberta do sítio, provoca pelas diversas mutações a que o local está sujeito, devido sobretudo ao Projecto das Sombras (LEITÃO, 2016: 138).

COLORIR

Como aconteceu com a maioria das obras de arte pública realizadas no âmbito da Expo ‘98, também no contexto da produção azulejar houve intervenções que apenas tiveram a intenção de se enquadrarem com o tema do evento ou, de alguma forma, colorirem um pouco da paisagem urbana. Todavia, estes aspectos distanciam-se da própria definição de arte pública e das intervenções que podem possibilitar a regenera- ção urbana.

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Na obra Navigatio Sancti Brendanni Abbatis, e apesar da artista ter a intencionalidade de explorar o tema principal da Expo ‘98, Ilda David (n. 1955) inspirou-se no livro medieval A Viagem de São Brandão,14 não

tendo tido nenhuma intencionalidade em inserir a obra no espaço, nem uma atenção para a forma como a obra iria ser recepcionada pelos utilizadores (Figuras 11 e 12) (ALMEIDA, 2009: 87; MENDONÇA, 1998: 93-95).15

Figura 11 - Parque das Nações, Oceanário de Lisboa, Navigatio Sancti Brendanni Abbatis, Ilda David, 1998 [fotos: © Inês Leitão].

Figura 12 - Parque das Nações, Oceanário de Lisboa, Navigatio Sancti Brendanni Abbatis, Ilda David, 1998 [fotos: © Inês Leitão].

O mesmo acontece com a obra Haveráguas, do surrealista chileno Roberto Matta (1911-2002), que, ape- sar de realizar este painel propositadamente para o evento, não parece ter tido uma preocupação com o contexto espacial ou os seus habitantes (Figura13).

14 É um livro que evoca às viagens marítimas de São Brandão, um santo irlandês do século X que navegou no Atlântico Noroeste

em busca dos lugares míticos perdidos.

15 Apesar desta obra estar localizada na entrada VIP à época da Expo ’98, actualmente foi colocada numa área habitacional na

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Figura 13 - Parque das Nações, Haveráguas, Roberto Matta, 1998 [foto: © Inês Leitão].

Situação idêntica regista-se ainda com o revestimento cerâmico idealizado por Pedro Casqueiro (n. 1959) para o viaduto da Avenida Dom João II (Figuras 14 e 15). O artista concebeu um conjunto de retângulos de dimensões e cores diferentes, mas com alguns dos lados ligeiramente inclinados, de modo a acompanhar a própria topografia dos dois muros do viaduto, que têm essa mesma orientação e, consequentemente, vão afunilando (ALMEIDA, 2009: 89). Apesar da procura de integração da obra no espaço, não há uma intencionalidade de trabalhar as suas dinâmicas, como refere o próprio artista:

Figura 14 - Parque das Nações, Oceanário de Lisboa, Viaduto da Avenida Dom João II, Pedro Casqueiro, 1998 [fotos: © Ana Almeida].

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Figura 15 - Parque das Nações, Oceanário de Lisboa, Viaduto da Avenida Dom João II, Pedro Casqueiro, 1998 [fotos: © Ana Almeida].

“pensei que seria para ser visto com velocidade, pensei vagamente, porque a maioria parte dos potenciais observadores são pessoas que vão dentro de um carro e que têm uma visão muito instantânea da obra. Assim, não existe um factor normalmente associado a recepção da pintura: a contemplação. É uma coisa que não é para ser complementada” (FARIA, 1998: 55).