• Nenhum resultado encontrado

MODOS DE PRESERVAÇÃO DE SÍMBOLOS IDENTITÁRIOS

NOVOS PROCESSOS DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA STREET ART

MODOS DE PRESERVAÇÃO DE SÍMBOLOS IDENTITÁRIOS

Apesar do caráter marginal da «comunidade graffiti», no seio da qual existe um sistema de regras e códi- gos próprios, estudado pela área da Antropologia (Campos, 2010), através da análise de pinturas que se têm mantido (ou não) e das reações desencadeadas por estes processos, podemos perceber a existência de uma tendência para a preservação das pinturas consideradas como simbólicas pela própria comuni- dade.

De facto, não obstante o facto de a questão da efemeridade ser absolutamente evidente e aceite por to- dos, quando alguns símbolos começam a ficar em risco, há um movimento que se cria para a sua defesa ou para lamentar o seu desaparecimento (quando já é tarde demais). Observamos então a sua preserva- ção in situ ou a sua contínua recriação simbólica. Longe dos princípios éticos em torno da questão de se preservar uma obra de arte efémera (GAYO, 2015, 99), que ditam a atuação dos profissionais da área da conservação e restauro, neste caso, a comunidade chama a si a responsabilidade da manutenção dos seus próprios símbolos.

Este tipo de identificação está relacionado com a já referida definição contemporânea de património. Nes- te caso, a comunidade identifica os seus elementos simbólicos/patrimoniais, e gere a sua preservação. Este processo é acelerado devido ao facto das suas gerações se sucederem muito rapidamente, por se tratar de um movimento predominantemente juvenil.

Neste artigo vamos falar de três processos de valorização distintos. O primeiro está relacionado com uma memória histórica justificativa da identidade da comunidade.

Um bom exemplo disso, é o conhecido menino, ou «ranhoso» do hall of fame das Amoreiras, em Lisboa. Esta pintura foi realizada em 1996 por Uber e tem perdurado até aos dias de hoje, algo que é absoluta- mente extraordinário neste contexto. À sua volta, tudo vai mudando, pintado e repintado, mas ali, naquele canto do muro, a figura do rosto de uma criança mantem-se sempre presente e marca a identidade da ci- dade. As camadas de tinta vão-se sobrepondo, preservando por baixo as pinturas mais antigas, afastadas dos nossos olhos, mas guardando a memória deste movimento artístico no nosso país.

Esta peça é importante, pois foi realizada por um elemento da primeira «geração» graffiti portuguesa, num contexto não institucionalizado, e pretendia ser uma crítica social ao centro económico existente naquela zona da cidade. Por outro lado, é um dos primeiros retratos portugueses pintados deste modo (alguns afirmam que é o primeiro).

Apesar de haver uma alteração dos elementos em torno do rosto, até 2010, a imagem original manteve- se à vista, tendo sido tapada em abril desse ano. Este acontecimento causou uma grande impressão na comunidade. Em consequência disso, ainda nesse mês foi realizada a primeira recreação, numa versão diferente, o Ranhoso v.2.1, acompanhado dos devidos louvores ao seu autor original. Na internet conse- guimos encontrar um testemunho deixado pelos autores desta segunda versão, datado do dia 23 de abril de 2010:

OUR TRIBUTE TO OUR TRIBE. and friends. O RANHOSO V.2.1

Uber painted this kid face more or less 14 years ago.... Amoreiras Wall. Many many people had paint in this wall and always had respect or some kind of special feeling on this kid face. also respect for the writer. ...

more or less one month ago it was crossed with a throw-up! ;( and after that more writers went over the spot... normal.

Painting don’t last forever... we know that and that’s why we take pictures!

but in the last 2 years we have been losing part of our culture.... so many cleaned walls.... Ice-Tea, Abraço, BAIRRO ALTO... and... “o Ranhoso”.

370

or it the fame mode.... and they are different.

In a place like Amoreiras if you go Over some painting you must do it BETTER AND BIGGER!!! we made our tribute...

“O RANHOSO” v.2.1

and the most amazing was that when we were painting there were common people coming to us and sending real props and telling that they were missing that kid... he was always there not only for the graf- fiti community but for all Lisbon... a SYMBOL.

RANHOSOS É O QUE SOMOS! ;) Respect History and ...

Make it Real ... MAKE IT ALIVE. BIG BIG UP

ARM we ARE (ARM, 2010)

Neste texto podemos identificar vários elementos que se enquadram perfeitamente no conceito de patri- mónio, e comprovamos a importância histórica desta pintura no seio da própria comunidade, bem como para a cidade.

Depois deste acontecimento, a pintura foi novamente coberta, levando o artista original a voltar ao muro, passados 15 anos, para fazer uma nova versão do pequeno rapaz que tinha sido inspirado da capa de uma revista nos anos noventa.

Mais tarde, a pintura foi repintada com a figura de um novo rapaz. Desta vez numa versão modernizada, segurando uma lata de spray de tinta. No entanto, esta versão não agradou à comunidade, e, passado pou- co tempo, Aspen reconstituiu novamente o menino «ranhoso», na versão que ainda podemos observar no local. Não existem registos visuais de outras ações entre estas duas pinturas, não devendo esta hipótese ser descartada.

Apesar de não se verificar a manutenção da pintura original, o tema mantem-se. Não conseguindo recupe- rar a materialidade original do objeto, a comunidade encarregou-se de preservar a sua simbologia no local, garantindo a existência deste elemento identitário, naquele sítio emblemático.

Outro exemplo da importância patrimonial dada a este tipo de arte surgiu nas reações ao desaparecimen- to de uma pintura do Hazul Luzah. Neste caso há uma valorização do artista que começa no momento final da obra (DIÓGENES, 2013), pintada três anos antes. Devido às iniciativas da Câmara Municipal do Porto, em 2013, esta pintura foi «apagada» com uma tinta amarela (MARTINS, 2013). Esta prática foi generali- zada pela cidade, mas não foi exclusiva deste local, ou mesmo do nosso país. Também no Brasil aconteceu e foi alvo de muitas criticas.

No presente caso, o ato foi fotografado e divulgado nas páginas da internet pelo próprio autor, levando a um grande debate sobre a diferença entre arte e vandalismo (DIÓGENES, 2015, 691). Novamente, para além da frase escrita mais tarde no mesmo local: «Aqui morava um “grafito”. Que descanse em paz», en- contramos outros comentários na internet, demonstrando a noção de património existente neste caso: Primeiro apagam o Hazul

Depois, a memória, A seguir, a liberdade E por fim, a cidade (A Agulha Inquieta)

Em 2016, o artista pintou novamente aquela parede, para celebrar o terceiro aniversário do desapa- recimento da primeira pintura. Apesar do tema não ser exatamente o mesmo, podemos ali encontrar uma identificação simbólica do local.

371

Outro caso que encontrámos, está relacionado com uma pintura realizada em memória do prematura- mente falecido MS Snake, por Sam the Kid, em Chelas. Esta morte esteve envolta em controvérsia, e, tal- vez por essa razão, o trabalho continua a manter-se no local, e é respeitado pela comunidade. Poderíamos atribuir a esta pintura um valor de memória intencional, segundo as definições de Riegl de 1903 (2013), por, neste caso, se pretender manter a imagem original, relacionada com um acontecimento específico. Outro aspeto importante, que também podemos ir buscar a este teórico, está relacionado com as ques- tões da degradação. De facto, tal como na obra antiga nos desagradam as manifestações recentes, nas obras contemporâneas, a degradação é entendida como desleixo (RIEGL, 2013). Por essa razão, quando abordamos a arte contemporânea esperamos sempre que esta esteja como se tivesse acabado de sair das mãos do artista. Por essa razão, acabamos por parar a evolução natural das obras no tempo, não aceitando a sua degradação natural, e assim «…modern murals may be in danger of being permanently caught in the present» (BRAJER, 2010;94).