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NOVOS PROCESSOS DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA STREET ART

PATRIMÓNIO E DE IDENTIDADE

Ao analisarmos as cartas internacionais, bem como inúmeras publicações e reflexões sobre o tema, verifi- camos a existência de uma evolução do conceito de Património ao longo do século XX. Longe do elemento individual, valorizado por uma determinada classe social, dentro de parâmetros muito definidos, até à abertura do conceito para «algo» identificado por uma comunidade que usufruiu de um determinado bem e lhe dá um significado simbólico muito específico, relacionado com um valor identitário. Ainda estamos a tentar perceber os problemas de difícil resolução que esta mudança de direção nos coloca, especialmente no que concerne à preservação destes bens.

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Entre as várias normativas internacionais, podemos referir a Carta de Cracóvia 2000 – Princípios para a Conservação e Restauro do Património Construído, onde encontramos a seguinte definição:

"Património: é o conjunto das obras do homem nas quais uma comunidade reconhece os seus valores específicos e particulares e com os quais se identifica. A identificação e a valorização destas obras como património é, assim, um processo que implica a selecção de valores." (Carta de Cracóvia, 2000)

Longe de um conjunto de atributos definidos previamente, que ditavam os valores atribuíveis a um objeto, dando-lhe o estatuto de património, esta identificação rege-se agora por conceitos muito mais latos, re- sultando num aumento de objetos ou acontecimentos aos quais se pode atribuir este estatuto. Um patri- mónio, agora encarado como o reflexo de uma comunidade, com a missão de fazer chegar às gerações futuras o seu passado, para lhes explicar o momento em que vivem (AVRAMI, MASON, TORRE, 2000;10). Já não selecionamos apenas os objetos do passado, mas também os do presente. Somo nós quem define o que nos irá representar no futuro, qual a melhor imagem para os nossos descendentes saberem quem fomos e se compreenderem a si próprios.

"This state of affairs is the postmodern context, where today’s “lifestyle” is being transmuted into tomor- row’s “cultural heritage,” and it prompts the identification of a number of interesting themes that are po- tential sites for the invention of new heritage." (PEARCE, 2000;63)

Este alargamento do conceito e, principalmente, do espectro temporal em que se enquadram estes bens a ser mantidos, traz novas questões para serem resolvidas a nível da sua preservação. O modo de intervir mudou e continuará em transformação (AVRAMI, MASON, TORRE, 2000;7), tal como a própria sociedade que valoriza os bens e tem espectativas diferentes sobre a sua mensagem simbólica. Este aspeto resulta numa interpretação arbitrária do objeto e muda os critérios de uma eventual intervenção de restauro. Deixamos ali marcada a nossa versão para o futuro, que interpretará o objeto tendo em conta as suas transformações ao longo do tempo, dependentes do enquadramento social e cultural de quem foi anterior- mente responsável pela sua manutenção. Esta valorização pode ser positiva ou negativa, e será a versão resultante desta interpretação que passaremos aos nossos sucessores, seja esta de preservação ou de degradação (LOWENTHAL, 2000;23).

Segundo François Hartog (2006) esta urgência de conservar tudo o que podemos do nosso presente, como se tivéssemos medo de perder a nossa memória coletiva, ou mesmo individual, é o resultado de uma confusão de tempos. De facto, esta vertigem em tomarmos medidas para a preservação dos objetos que nos representam pode estar relacionada com a rápida evolução social e tecnológica das últimas décadas. O passado tornou-se muito mais próximo e o futuro é já amanhã.

Cada vez mais assistimos ao aparecimento de novos tipo de património, ao que Marie Berducou (2013) designou como Emerging Heritage, incluindo o industrial, o técnico e o científico. Dentro deste grupo deve também ser integrada a arte contemporânea.

A preservação das obras de arte contemporâneas não é uma preocupação recente. Desde o século XIX, quando as práticas tecnológicas começaram a mudar, que os artistas manifestam preocupação com a manutenção das suas obras. O próprio Duchamp é um bom exemplo disso, apesar da aparente contra- dição, na sua produção existe uma reflexão sobre este assunto, refletindo-se na utilização de materiais e técnicas mais duradouros (POHLAD, 2000). Por outro lado, a desmaterialização da arte tem vindo a pro- vocar inúmeros problemas relativamente à sua conservação, não só pela prevalência do conceito sobre a forma, mas também devido à fraca qualidade dos materiais utilizados.

A arte efémera, procurando uma transitoriedade, um nascimento e uma morte, opõe-se ao conceito de objeto de museu, onde a sua preservação é uma das principais prioridades - como se a peça pudesse ficar «congelada» para o usufruto das gerações futuras. No entanto, e apesar desta vontade dos seus criado-

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res, muitas vezes assistimos à sua entrada nesta «instituição», mesmo com a autorização do artista, o que cria inúmeros problemas aos responsáveis pela sua preservação dentro do Museu.

Recentemente, juntou-se a este grupo a street art. A sua multiplicação pelas ruas da cidade, bem como a sua importância simbólica dentro de um grupo marginal, veio atribuir-lhe novos valores que levaram ao desenvolvimento de muitos estudos, com contribuições de várias áreas. Já anteriormente fizemos o para- lelo com os princípios enumerados por David Throsby (2000;29). Na altura destacámos o valor estético, relacionado com o desenvolvimento de um novo gosto, especialmente identificado pelas novas gerações; o valor espiritual, atribuído através da identificação simbólica dos elementos representados e das suas mensagens; o valor social, por ali ser realizada uma ligação ao «outro» e se poder encontrar um sentido de identidade; e o valor simbólico, por refletir um significado identitário de uma geração (ALVES, 2014). Este último aspeto, resulta numa valorização histórica dentro do grupo, como veremos adiante.

A facilidade com que as imagens destas manifestações artísticas circulam no mundo virtual, resulta na instituição de um novo gosto estético, definindo os novos movimentos artísticos contemporâneos que, ao se afastarem da marginalidade, entram no mercado da arte, onde acabam por alcançar o estatuto de objeto artístico e, por essa mesma razão, adquirem um valor económico.

Ao ganhar este estatuto, a efemeridade destes objetos começa a tornar-se, em si, um conceito abstrato. De facto, a própria identificação destes objetos como perenes pode ser posta em causa. Para Fernando Figueroa Saavedra «El carácter efímero que se asigna al graffiti de modo general es una convención social heredera del concepto de infamia y que se proyecta, hoy por hoy, para fortalecer esa férrea dicotomía en- tre arte de calle y museo-mercado del arte.» (SAAVEDRA, 2015, 10). Escondida por detrás desta questão, a desresponsabilização pela preservação da street art tem sido uma constante.

No entanto, rapidamente se começam a desenvolver laços identitários que levam à necessidade da sua preservação. Passamos a considerar estes elementos como património e, ao se tornarem símbolos da nossa identidade, não podem ser, de modo nenhum, desvalorizados. Por outro lado, dentro da própria «comunidade graffiti», fortemente hierarquizada, começa a existir a sobrevalorização de determinados indivíduos, como líderes ou como representantes das primeiras manifestações deste tipo de expressão artística em Portugal, levando à exaltação e desejo de permanência dos seus testemunhos, dos seus con- tributos para a marcação da imagem da cidade.

Esta diferente abordagem na valorização do nosso património é explicada por Ulpiano Meneses. Este au- tor chama-nos a atenção para a multiplicidade de valores atribuíveis a um monumento. Não só do ponto de vista dos que se vão alterando ao longo do tempo (ALVES, s.d.), mas nos diferentes valores dados por quem usufrui de modo distinto deste mesmo património. De facto, o modo como convivemos com um monumento é diferente quando ele faz parte da nossa rotina, da nossa história, da nossa identidade, ou quando somos o «outro» que o visita, que vem de fora e o vai entender, obviamente, de um modo diferente (MENESES, 2010). Esta questão é fundamental para se perceberem as reflexões que vamos apresentar seguidamente.

Existem duas abordagens à street art. Por um lado, temos uma visão institucionalizada, por outro, uma marginal. O primeiro caso e as estratégias que se têm vindo a desenvolver por todo mundo, já foram por nós estudadas anteriormente (ALVES, 2014), carecendo, essa abordagem, de uma óbvia atualização - se percorrermos as páginas da internet, vemos multiplicarem-se as intervenções de proteção da pintura mural contemporânea por todo o lado. Relativamente à questão marginal, há ainda muito por perceber. A observação atenta da realidade que nos circunda, bem como das contribuições e opiniões que vamos encontrando na internet, uma ferramenta essencial para o estudo social das comunidades nos dias de hoje, permite-nos realizar algumas reflexões de extrema pertinência para o entendimento moderno do conceito de património, bem como a abertura para a aceitação de outros modos de preservação não institucionalizados.

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