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4.1 HISTÓRIA DE VIDA E TRAJETÓRIA SOCIAL DAS PARTICIPANTES

4.1.1 Fátima: a concretização do projeto familiar

4.1.1.1 História familiar

Fátima está com 44 anos, é casada e tem quatro filhos. É a caçula de onze irmãos, sendo dez biológicos e um adotivo. Nasceu em Campo Maior, cidade situada a 40 (quarenta) Km da capital Teresina, Piauí e mora no Distrito Federal há 23 (vinte e três) anos, sendo 17 (dezessete) desses anos, professora concursada da SEEDF.

Fátima se identifica como oriunda de família humilde com poucos recursos financeiros. Sua mãe, apesar de ter estudado só até a 4ª série do Ensino Fundamental, por muitos anos foi professora no sítio em que moravam. Quando seu pai faleceu, Fátima estava apenas com 9 (nove) anos de idade. Ele era vaqueiro muito respeitado por sua honestidade e conhecido por sua bondade e disponibilidade para ajudar os mais necessitados. Sua mãe, apesar dos 11 (onze) filhos, ainda lecionava em sua própria casa para mais 30 (trinta) alunos.

Quando Fátima nasceu, seu pai, tentando melhorar de vida, vendeu a casa que possuíam e mudou com sua família para morar na periferia de Teresina PI. Fátima recorda que, mesmo com tantas pessoas morando juntas, não havia entre eles clima de discórdias. Os filhos eram muito unidos, ajudavam uns aos outros e aos pais, figuras parentais que obedeciam cegamente. Sua mãe, ao chegar em Teresina, envolveu-se com as irmãs de caridade e conseguiu um contrato para trabalhar como agente de saúde das obras assistenciais coordenadas pela igreja fundada pela Congregação Italiana Irmãs dos Pobres de Santa Catarina de Siena. Sua função como agente de saúde era de visitar as casas muito pobres para orientar as famílias; distribuir filtros de barro, remédios para vermes e leite em pó. Mais tarde, a Congregação das Irmãs de caridade com o apoio da prefeitura, fundaram um posto de saúde e a mãe de Fátima foi contratada para auxiliar os médicos. Com o passar do tempo, assumiu também as incumbências de aplicar injeções e fazer curativos e aos sábados cuidava da limpeza do posto de saúde. Assim, ela (a mãe) ficou conhecida por toda a população do bairro e nos finais de semana que o posto de saúde não funcionava ela aplicava injeção e fazia curativo em sua própria casa. Nesse contexto, foi construído o primeiro grupo escolar no bairro. Por intermédio das freiras e por ser muito conhecido e querido pela população do bairro, seu pai conseguiu um emprego de porteiro da escola.

Fátima e seus irmãos cresceram e permanecem unidos até hoje. Suas lembranças agradáveis da infância são da casa cheia de jovens tocando violão e ensaiando para os grupos da igreja. O engajamento de sua mãe como ministra da eucaristia e com as freiras foi o caminho para conseguir uma bolsa de estudo e garantir que Fátima estudasse em uma das escolas mais bem conceituadas do Estado do Piauí. A filha estudar em uma escola com esse porte representou para os pais de Fátima a realização de um grande sonho.

4.1.1.2 História escolar

Fátima estudou pela primeira vez, aos 7 (sete) anos. Ao entrar na escola, Fátima já sabia escrever seu próprio nome completo ensinado mecanicamente por sua mãe que tinha sido professora, apesar de ter cursado somente até a 4ª série. Para Fátima, o período da 1ª série ficou fortemente marcado em suas lembranças. Era uma escola pública pequena, próxima à sua casa, situada na periferia de Teresina PI. Totalmente o inverso da escola seguinte que concluiu o Ensino fundamental (antigo 1º grau). Essa era uma escola particular enorme, longe de sua casa, localizada no centro de Teresina PI.

Ela recorda nitidamente do dia em que se reconheceu lendo. Ela não vincula este episódio à pessoa da professora, mas sim à sua colega de turma. Tratava-se de uma colega de sala que aprendera ler antes dos outros. Fátima admirava a habilidade de leitura da colega e ficava curiosa para saber como ela conseguia realizar algo tão maravilhoso.

Fátima recorda que a relação professor-aluno ocorria de forma bem distanciada com delimitação de fronteiras bastante claras. Não havia espaço para intimidades de conversar com a professora, contar os problemas. Era sem aproximação. A relação era baseada no poder de autoridade da professora e na obediência dos alunos. Fátima não se recorda das aulas e nem da metodologia utilizada por sua professora da 1ª série. Suas primeiras impressões a respeito da professora é que ela era uma pessoa distante e que devia ser respeitada. Todavia, um acontecimento modificou essas impressões e Fátima atribuiu a esse episódio, a causa dela ter desembaraçado o resto do ano em relação às aprendizagens. Trata-se de um passeio que a professora realizou com a turma nas redondezas do bairro em que situava a escola.

Na escola pública que Fátima cursou a 1ª série, a relação com os colegas era de igualdade, a diferença era marcada apenas entre professora e alunos. Já ao mudar de escola, quando iniciou a 2ª série, ela sentiu o choque não só em função da rigidez da professora de uma escola tradicional católica, mas também o choque cultural em que se via totalmente diferente de suas colegas tanto em relação à origem social quanto étnica racial, marcando

assim seu isolamento, sendo que, por timidez, medo e vergonha, não dirigia a palavra à professora, limitando apenas em responder a chamada. Entre seus pares, sentia-se um “patinho feio” sem nenhuma identificação com suas colegas de turma e da escola como um todo. Fátima sentia-se diminuída tanto pelos seus traços que revelava a condição econômica de sua família, não havendo ninguém a quem ela pudesse sentir-se semelhante, quanto pelos estereótipos de beleza transmitidos culturalmente como valor que dá prestígio a quem os possui sendo também representativo do que é ser saudável.

Ela reconhece que estudar nessa escola particular, em termos acadêmicos foi muito importante, pois lá ela teve oportunidades que jamais teria na escola pública como: estudar em uma escola de 4 (quatro) andares, com arquitetura barroca; participar de atividades de balé, vôlei, jazz, natação, pintura em tela, bordados etc. Contudo, tal investimento teve um preço bastante alto emocionalmente e sacrifícios econômicos da família. Seu pai, mesmo sem condições financeiras, tinha que atender todas as exigências em relação aos pedidos de materiais por parte dos professores, tirando recursos de onde não existia. Porém, na 3ª série, Fátima teve uma professora que fez toda a diferença para que ela pudesse suportar emocionalmente permanecer em um mundo tão alheio a tudo com que ela se identificava em seu contexto sócio cultural.

Na 1ª série, Fátima não se recorda se alguém de sua turma teve problemas em se alfabetizar. Mas recorda de um grupo de meninos que eram danados e que a professora não os suportava na sala e os mandava constantemente para a direção. Fátima supõe que os colegas que apresentavam problemas disciplinares podiam sim ter dificuldades nas aprendizagens, mas como esta questão não era visível para os alunos, não ficou nenhum registro em suas lembranças. Quanto à escola particular, Fátima acredita que os alunos que apresentavam necessidade de maior atenção em relação às aprendizagens, seus pais pagavam aulas de reforço fora da escola.

4.1.1.3 História da escolha profissional

A primeira influência para a escolha da profissão de docente, Fátima atribui à experiência vivida no ambiente familiar em que conviveu com sua mãe professora e dando aulas em sua própria casa. O segundo modelo de identificação que a influenciou foi sua professora da 3ª série em decorrência de sua afetividade com todos. Outro fato marcante na escolha profissional de Fátima refere-se à dificuldade financeira de sua mãe que, ao ficar viúva, não estava conseguindo manter economicamente os filhos menores. Fátima que já

havia iniciado o 1º ano do científico decidiu mudar para o curso de magistério, uma vez que, seria mais fácil conseguir emprego.

4.1.1.4 História da atuação profissional docente

Fátima concluiu o curso do magistério em 1987 e logo em seguida começou atuar na profissão docente em escolas particulares em Teresina PI, permanecendo até 1992, período em que seus irmãos a convenceram a dar continuidade aos estudos. Em Brasília DF, ingressou no curso de pedagogia. No ano seguinte à conclusão do curso, ingressou na carreira do magistério na SEEDF através de concurso público.

A forma de Fátima comportar-se frente a seus alunos está fortemente relacionada às suas experiências de interações sociais no âmbito familiar, em particular, aos estilos de interações de seus pais, principalmente em relação aos mais necessitados e à forma colaborativa entre os irmãos. Embora a influência familiar tenha um lugar de relevo, sua atuação também recebeu influência significativa de suas interações no contexto escolar tanto da polaridade positiva como negativa.

Ao reportar-se às suas experiências escolares traçando um paralelo com suas atitudes como professora, ela fez a tomada de consciência de que havia uma forma de exclusão velada que, graças a tantas outras interações positivas afetivamente, foi transformada em atitudes positivas para com seus alunos. Os sentimentos de exclusão vividos por ela fizeram com que ela desenvolvesse uma sensibilidade no olhar em relação a esse aspecto levando-a a intervir positivamente em favor daqueles que retratam sua situação vivida. Fátima reconhece que as atitudes solícitas, de aproximação de seus professores, também têm responsabilidade nesse processo. Principalmente sua professora da 3ª série, de quem ela preserva recordações muito positivas. Ela também resgata a rigidez dos outros professores para buscar construir um estilo diferenciado de interação com seus alunos.

Com a turma atual, Fátima iniciou o ano letivo com 26 (vinte e seis) alunos na turma e no mês de junho estava com 23 (vinte e três). Dentre os alunos da turma, dois já têm histórico de reprovação. Esses alunos são conhecidos pelos profissionais da escola em virtude de suas atitudes comportamentais por eles desaprovadas. No entanto, ela não aceita os rótulos fixados anteriormente e toma suas defesas publicamente. Para Fátima, a melhor forma de conduzir as situações conflituosas é através do diálogo, procurando ouvir os alunos para saber o que está se passando com eles.

Em relação à forma como os alunos interagem entre si, Fátima observou que no início do ano, os que possuíam maior desempenho cognitivo em relação à leitura e escrita, expunham os colegas que não liam de forma constrangedora. No entanto, a forma dela se aproximar desses alunos e suas atitudes de proteção para com eles foram assimiladas pelos demais alunos levando-os até mesmo a propor ajudá-los em suas atividades.

Em se tratando da condução do trabalho pedagógico da turma, Fátima destaca como fator complicador, a heterogeneidade dos alunos com níveis de desempenho cognitivo muito distantes. Para ela, o mais difícil é conduzir o processo de alfabetização dos dois alunos que já reprovaram anteriormente, em uma turma onde os demais já estão alfabetizados. Há por parte de Fátima certa descrença em relação às chances de sucesso desses alunos no processo de alfabetização e a opinião de seus colegas professores sobre as dificuldades deles soam como uma forma de endossar suas crenças, esgotando assim, as possibilidades de investimento por parte da equipe pedagógica, restando como recurso, o encaminhamento em busca de diagnósticos.

Para Fátima, o trabalho diversificado é muito complicado de ser feito em sala de aula. Outras estratégias que ela utiliza como recursos de aprendizagens são: separá-los em grupos por nível de desempenho; nomear a aluna mais avançada nas aprendizagens como monitora; realizar o trabalho em duplas produtivas colocando os que sabem mais com os que sabem menos; e, o mais comum, é o trabalho geral para toda a turma.

Fátima observa que, o fato dos dois alunos não estarem correspondendo às expectativas em relação aos seus processos de alfabetização, causa a eles sentimentos de tristeza e chateação. Com isso, ao ser solicitado algo que eles não dão conta de realizar, eles se isolam ou ficam provocando os colegas. Quanto aos seus próprios sentimentos em relação às dificuldades enfrentadas por esses alunos é de impotência, descrença e desânimo. Sente seus recursos esgotados, ou pelo menos não percebe que há algo ainda a ser feito que esteja em suas possibilidades.

4.1.1.5 Concepções sobre as dificuldades de aprendizagem

No que diz respeito às concepções de Fátima sobre as questões das dificuldades de seus alunos na alfabetização, ela pontua de forma acentuada o fato deles serem abandonados pela família que os deixam nas ruas por período prolongado e constante, sendo assim, desassistidos. Ela acredita que as causas das dificuldades de aprendizagens são diferenciadas. Para um de seus alunos, a causa seria mental; para outros, seria mais o contexto familiar

envolvendo o abandono por parte das figuras parentais, a falta de objetivos para o futuro, o estilo de suas interações familiares, a cultura dos pais em relação às expectativas sobre a escola e suas perspectivas imediatistas.

Embora Fátima aponte como principal aspecto dificultador das aprendizagens o contexto familiar, ela também reconhece a parcela de responsabilidade da instituição escolar que, apesar dos esforços que vem empenhando gradativamente, a escola e seus professores ainda não conseguiu cumprir seu propósito.