• Nenhum resultado encontrado

2.4 A HISTÓRIA DE VIDA DO PROFESSOR E SUA PRÁTICA DOCENTE

2.4.2 História de vida e escolha da profissão de docente

Para Barus-Michel (2004), o sujeito social emerge da unidade mantida na instância do imaginário e do simbólico. Trata-se, portanto, de um projeto, uma “construção imaginária e uma representação mais ou menos elaborada daquilo que deve satisfazer as aspirações supostamente comuns e que as expressa”. (p. 59). Nesse sentido, “O grupo aspira a unidade designada do ‘nós’ ao mesmo tempo cada indivíduo que participa do grupo permanece enquanto tal, sujeito autônomo e organicamente definido.” (p. 62). No entanto, o sujeito social não invalida o sujeito individual, mas são dois modos de sujeito que se coabitam. Assim, um não pode se constituir sem o todo de onde o emerge, como o todo não se forma sem as partes que o compõe. Em outras palavras, a autora sugere que, o processo de subjetivação se dá pelo entrelaçamento destes aspectos (social e individual) levando o sujeito a negociar entre as

necessidades de pertencer à sua linhagem social e cultural ao mesmo tempo em que necessita construir seu processo de diferenciação e singularização.

Partindo dessa concepção de sujeito, cabe a discussão sobre como o sujeito professor vem negociando em meio à sua atuação, o atendimento de suas necessidades individuais e os apelos sociais a ele direcionados. Muitas pesquisas têm enfatizado a história de vida de professores. Na década de 90, Nóvoa (1992), apontava para o fato de que, a discussão a cerca da formação do professor precisava avançar da dimensão acadêmica e abarcar o terreno profissional que incluiria o entrelaçamento entre o desenvolvimento pessoal que caracteriza a vida do professor; o desenvolvimento profissional, referente à carreira docente; e o desenvolvimento organizacional que inclui a escola. Sobre a dimensão pessoal, o autor afirma que, esta ocorre na formação e implica em um esforço criativo sobre as trajetórias e projetos pessoais inerentes à construção da identidade, que será coabitada tanto pela dinâmica pessoal, quanto profissional. Isto significa dizer que, se tratando de uma pessoa, uma de suas partes importante é ser professor. Nesse sentido, a interação destas dimensões (pessoal e profissional), leva este sujeito a apropriar-se do seu processo de profissionalização atribuindo sentido ao quadro das suas histórias de vida que norteiam suas escolhas e atuação no cenário educativo.

Segundo Bueno (2002), no Brasil, a partir dos anos 80 houve um redirecionamento dos estudos sobre formação docente, em que a pessoa do professor ganhou lugar de destaque. Para a autora, este redirecionamento favoreceu o surgimento de uma vasta quantidade de obras e pesquisas tendo como foco a vida dos professores, suas carreiras e percursos profissionais, suas autobiografias docentes e o desenvolvimento pessoal dos professores, visando abordar seus aspectos subjetivos, que tinham sido esquecidos e ignorados. O estudo deste aspecto veio realimentar novos desenvolvimentos teóricos nessa área, que, segundo a autora, se encontravam enfraquecidos em função do desgaste causado pela ineficácia dos instrumentos até então disponíveis. Dessa forma, a subjetividade passou a ocupar um lugar privilegiado nestes estudos servindo como articuladora das novas formulações teóricas e dos métodos de pesquisa que passaram a explorar aspectos da subjetividade do professor, sendo os métodos que têm permitido investigar essa dimensão do comportamento humano, o autobiográfico e os estudos com histórias de vida.

Bueno et al. (2006), identificaram 40 (quarenta) trabalhos completos sobre o uso de história de vida e relatos autobiográfico de professores apresentados na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) de 1991 a 2001 e trinta e cinco nos congressos de Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDPE) de 1998 a

2000. Segundo as autoras isso representa um indicativo que o movimento e adesão aos estudos autobiográficos e história de vida se expandiam e cobria-se todo o território brasileiro.

Ao analisar as narrativas de professores em formação, Silva (2003) pontua que, este tipo de fonte é útil no sentido que revelam intimidades, particularidades e especificidades do trabalho docente que, por sua vez, não seria percebido a não ser no exercício da profissão. Para a autora, o fato de poder extrair informações do cotidiano profissional por meio das memórias dos sujeitos que vivenciam tal cotidiano, permite compreender sua forma de agir e interagir em seu contexto sócio cultural. Isto porque, suas memórias sofrem mediação existencial em que as relações com suas professoras se agregam aos sentimentos.

Souza e Uzêda (2009) afirmam que, os motivos que orientam as escolhas da carreira do magistério, não podem ser desvinculados do percurso pessoal e da formação do professor, ou seja, de sua história de vida. Nesta mesma linha de raciocínio, Nascimento (2007), afirma ser importante considerar que as escolhas profissionais não surgem em um determinado momento, mas são construídas no percurso histórico da vida objetiva e subjetiva de cada pessoa. Isto é, a partir de uma série de experiências cognitivas e afetivas envolvendo, identificações com figuras parentais, com os pares, com figuras idealizadas, além de toda a construção e internalização dos valores transmitidos nas diversas etapas de sua vida. Para a autora, as várias experiências interagem de maneira única e dinâmica em cada pessoa articulada com sua personalidade de forma não linear, construindo uma identidade compatível com a profissão a ser exercida.

Dalmaso (2010), ao investigar a história de vida de psicólogas pontua que a identidade individual encontra-se em processo permanente de formação em uma constante dependência dos fatores sociais. Sendo assim, há um entrelaçamento entre o contexto social e a participação ativa do sujeito que atribui sentido ao vivido. Este entrelaçamento permite ao sujeito construir recursos compatíveis com a profissão a ser exercida. No que se refere aos vínculos estabelecidos pelos sujeitos de sua pesquisa, Dalmaso (2010) relata que, as experiências infantis vividas no ambiente familiar permitiram desde muito cedo desenvolverem características importantes para essa profissão. A autora reitera que as habilidades referentes ao papel profissional do psicólogo foram construídas desde sua infância e continuaram sendo realimentadas no social.

Silva e Chakur (2009) afirmam que, a identidade profissional do docente se constrói lentamente em meio às apreciações e apropriações no seu contexto através de suas interações sociais e de sua prática docente defrontando-se com dificuldades, ambiguidades e confusões em relação à própria imagem e o papel desempenhado. Acrescentam ainda que, para a

identidade docente se estruturar de forma compatível com sua identidade pessoal, é necessário a tomada de consciência do que é pertinente à profissão. As autoras confirmam a existência da crise da profissão docente e de uma crise da identidade docente embora, esta nem sempre seja percebida em seus aspectos centrais pelos professores. E ainda, o nível de tomada de consciência com maior prevalência é o intermediário caracterizado pela confusão e ambiguidade apresentadas nas respostas em relação aos aspectos centrais e periféricos referentes à consciência da identidade profissional. Esses aspectos são refletidos nas dificuldades dos sujeitos em identificar o motivo central pelo qual se sentem incomodados ou que dificultam o trabalho, levando-os a confundir as causas da crise com atribulações cotidianas do ambiente profissional e pessoal.

Brasil e Galvão (2012), ao investigar a escolha profissional de professoras de Educação Infantil, através de método de história de vida, utilizando relatos orais e autobiográficos constataram que, os motivos encontrados foram associados ao fato de gostar de criança, a influência familiar, oportunidade, idealismo, encantamento e talento, entre outras coisas. Outro fator em destaque apontado pela pesquisa revela que, parte dos sujeitos entrevistados declarou começar a atuar na Educação Infantil por escolha consciente, enquanto outros foram levados aparentemente pelas circunstâncias. Os autores concluem que, os estereótipos ligados à, maternagem e profissão feminina aparecem de forma bastante acentuada. Assim como sentimentos relacionados às posturas ‘altruístas’, o que pode estar fortemente enraizado no paradigma de docência como missão.

As pesquisas de Souza e Uzêda (2009), também com profissionais da Educação Infantil e com a abordagem de história de vida demonstraram que, a atuação docente no início de escolarização carrega marcas culturais profundas associadas ao papel feminino de reprodução sexual com forte ligação ao trabalho doméstico de cuidados e socialização. O exercício da profissão docente ao ser associado a um contínuo fazer doméstico, produz um esvaziamento dos conteúdos da carreira profissional, uma desmobilização e uma visão simplista sobre o poder dos profissionais como agentes de transformação, segundo essas mesmas autoras. Este fato também foi discutido por Patto (2006), que descreveu o exercício da profissão docente como predominantemente feminino. Para a autora, o acúmulo de tarefas domésticas e de ensino leva o professor a uma limitação do seu ato reflexivo sobre sua prática.

Os dados informados por Souza e Uzêda (2009) sobre a escolha da profissão docente, não destoa da trajetória sócio histórico cultural que construiu a carreira do magistério, em que

o sujeito professor é apresentado como uma extensão do sujeito mulher, construído historicamente no seio de uma cultura patriarcal milenar.

O caminho teórico aqui traçado ofereceu-nos uma visão mais abrangente dos componentes culturais que ao longo da história educacional foi definindo o papel social, a forma de atuação, posição social, os motivos que orientaram a escolha profissional e que contribuem para a formação da identidade docente. Embora muitas mudanças marquem esta trajetória, algumas premissas ainda permanecem imutáveis, como: o pouco prestígio da função de alfabetizar; a predominância feminina dando margem a uma associação com a maternagem, a desimplicação com a intencionalidade educativa; o acúmulo de funções que afeta o ato reflexivo, prevalecendo a postura de executor de tarefas pedagógicas; o forte viés das ciências naturais na concepção de uma ação puramente cultural, que leva a interpretar a atuação docente como sendo um ato missionário.

As pesquisas refridas acima voltadas para a história de vida de professores permitiu- nos reconhecer que esta forma de abordagem mostra-se capaz de possibilitar o acesso do pesquisador às referências que orientam os sujeitos em sua construção de significados, favorecendo elementos de identificação dos aspectos contextuais, relacionais, construtivos e subjetivos dos sujeitos que generosamente expõem suas trajetórias sociais e culturais permitindo encontrar alguns indicativos de resposta à demanda inicial do pesquisador. Todavia, para além da coleta fria de dados, nos permite penetrar com maior proximidade em suas intimidades em que a trajetória de um grupo social vai-se compondo a partir dos fragmentos de trajetórias singulares.

A partir desses apontamentos, consideramos que, debruçar sobre a história de vida (social e cultural) familiar e escolar desse sujeito professor atuante em contexto de vulnerabilidade e exclusão social, sob o olhar interpretativo da psicossociologia e da psicologia Histórico-Cultural, fornecerá elementos que nos permite contemplar os objetivos desta pesquisa ao mesmo tempo, promover uma discussão ética acerca desta dívida histórica da cultura promovedora e mantenedora de exclusão.

3 MÉTODO

A presente pesquisa adota a abordagem qualitativa por ser esta fundamentalmente interpretativa (Creswel, 2007), permitindo assim uma investigação em profundidade na busca da construção de um conhecimento construtivo-interpretativo que para González Rey (2005) é essencial na pesquisa qualitativa não somente no estudo da subjetividade, mas também na ciência em geral. Esse autor reconhece que o processo de construção da informação na perspectiva qualitativa sob a ótica epistemológica histórico-cultural define-se pelo caráter ativo do pesquisador e pela sua responsabilidade intelectual na construção teórica resultante da pesquisa. Nesse sentido, o processo de construção da informação passa a ser dirigido por um modelo representativo da síntese teórica em contínuo processo desenvolvido pelo pesquisador no entrecruzamento de sua própria trajetória com o momento empírico. Por via interpretativa, essa construção da informação não é isenta das representações teóricas, dos valores e intuições do pesquisador, portanto, mantem-se aberto ao momento empírico de seu trabalho e às novas ideias que surgem e que por vezes podem ser totalmente inéditas. (GONZÁLEZ REY, 2005).

González Rey (1997) afirma que, o paradigma positivista que predominou ao longo do desenvolvimento das ciências sociais não correspondia às reais necessidades de análise dos aspectos sociais, sendo que seus métodos de investigação tinham por objetivo legitimar determinados processos sociais, situando a perspectiva ideológica acima das necessidades e da trama social de acordo com cada momento de seu desenvolvimento. Para o autor, outra falha em utilizar os métodos epistemológicos positivistas é que suas formas de interpretar a realidade excluiam por completo a subjetividade, o que afetaria a compreensão das dimensões sociais complexas. Dessa forma, caberia aos problemas sociais ajustarem-se aos métodos, e não os métodos ajustarem-se às necessidades sociais. (GONZÁLEZ REY, 1997).

González Rey (2005) afirma que, toda pesquisa pode ser fonte de diferentes modelos teóricos sem afetar a legitimidade de um em detrimento do outro, uma vez que, o que legitima um determinado modelo é a capacidade de manter sua viabilidade e seu desenvolvimento diante de novos sistemas de informação empírica para dar sentido a qualidades distintas sobre o estudado.

Para Demo (2012), a opção por uma abordagem qualitativa ou quantitativa, não se vincula a um pensamento de maior ou menor eficácia de uma sobre a outra, embora culturalmente ao longo da história, ora valorizava a quantidade, ora a qualidade como mais importante. No entanto, as duas são dimensões essenciais. Com tal raciocínio, não se trata de

eleger o método qualitativo por considerá-lo mais eficaz. Mas sim, por este melhor corresponder aos objetivos e a forma de abordagem dos sujeitos desta pesquisa, justamente pelo objeto de estudo que requer uma análise pautada na intensidade e profundidade. Para Demo (2012), o conceito de intensidade, assim como os demais conceitos comporta um sentido ambíguo. Contudo o que distingue fenômenos marcados pela intensidade é o fato de em primeiro lugar não se esgotar na extensão; em segundo por ser marcado pela profundidade, pelo envolvimento e pela participação. O que para o autor, não significa que a extensão revela um sentido superficial. Nesse sentido, a intensidade é inerente à complexidade onde se mescla seus componentes de maneira ordenada e desordenada, múltiplos e ambíguos. Tais fenômenos marcados por suas dinâmicas contrárias fazem com que a energia advinda dessa contradição, alcance resultados que ultrapassem sua origem.

Demo (2012) apresenta três passos para a análise metodológica qualitativa: contextualização sócio-histórica, análise formal e interpretação. Para o autor, a contextualização sócio-histórica trata-se de situar a história à qual o fenômeno foi construído, contribuindo para se compreender a implicação do pesquisador com seu objeto de estudo. A análise formal propõe um aprofundamento sobre os dados apresentados na contextualização permitindo assim, “entender sua gênese, seu lugar e espaço de atuação, seu percurso de formação, sua visão e expectativa por parte da sociedade à qual está inserida.” (P. 60). Em seguida, os dados são formalizados e definidos os indicadores que permitem a interpretação. Segundo Demo (2012), nesta fase identifica-se o que os dados qualitativos querem dizer: Que significados estão embutidos? Qual a mensagem que eles contêm? Nesse sentido, a interpretação representa uma negociação que envolve o material analisado e a subjetividade dos sujeitos (pesquisador e participante).

Para esta pesquisa fizemos uso de história de vida das participantes como recurso para a compreensão de um fenômeno social, utilizando entrevistas semiestruturada e relatos autobiográficos. Conforme aponta Gaulejac (2009), a abordagem metodológica que utiliza história de vida, e tem sua inscrição na confluência da psicanálise, da psicossociologia e da sociologia, não tem como objetivo a revelação da verdade, mas sim, propiciar situações coletivas que visem tanto à compreensão pessoal quanto acadêmica, através dos relatos da história de vida do sujeito focado em questões específicas. Todavia, o que de fato importa é se estas interpretações são portadoras de sentido.

Segundo Bouilloud (2009), os relatos de vida encontram-se intimamente vinculado ao estilo autobiográfico. Para o autor, a autobiografia é em sua essência a “escrita do eu”. Contudo, a história de uma personalidade inicia-se em uma realização social. Dessa forma, o

relato autobiográfico articula história pessoal com a vida intelectual, o que permite uma compreensão das articulações entre história e tempo presente; vida passada e atividade atual. Por essa abordagem, compreendemos que, analisar a história de vida de professoras através de relatos autobiográficos sobre suas experiências passadas como alunas, nos permitiu compreender as articulações deste vivido, com as relações presentes, no seu papel de professora.

Para Silva (2004), a teoria e prática metodológica evidenciam um amálgama do aspecto pessoal com o aspecto profissional. Nesse sentido, reitera a autora, os relatos orais e escritos revelam instrumentos valiosos de coleta de informação que, por se misturar o pessoal com o profissional, não se pode ser observado externamente, uma vez que se trata de informações produzidas no âmbito da subjetividade. Segundo a autora, narrativas sobre história de escolarização, poderão oferecer instrumentos eficazes para a formação docente. Este raciocínio corrobora os resultados de nossa pesquisa, sendo que, as informações obtidas nas narrativas da história familiar e escolar de nossas participantes nos ajudaram a identificar os componentes que delinearam o estilo relacional da interação entre o sujeito professor e alunos em contexto de vulnerabilidade e exclusão. Compreendemos que estes achados necessitam ser incorporados ao processo de formação para a docência, como condicionantes de uma prática educativa em situações adversas, levando o sujeito em formação a ser capaz de reconhecer o aluno como sujeito coabitado pelas entidades social e individual (Barus-Michel, 2004), produzido na e pela cultura em um processo dinâmico de interação com o social e os sgnos culturais disponibilizados em sua comunidade de pertença, que através da incorporação dos elementos culturais e sociais, modifica sua estrutura psicológica superior podendo assim, transformar a realidade e ser por ela transformado. (VYGOTSKY, 2007).