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Marluce: a guardiã da tradição familiar de sacralização da escola

4.1 HISTÓRIA DE VIDA E TRAJETÓRIA SOCIAL DAS PARTICIPANTES

4.1.4 Marluce: a guardiã da tradição familiar de sacralização da escola

4.1.4.1 História familiar

Marluce é a filha do meio de um casal com 5 (cinco) filhos. Ela é brasiliense, morou e estudou no Gama DF até o período que estava cursando a 4ª série do Ensino Fundamental (antigo 1º grau). Seu pai é relojoeiro e sua mãe dona de casa. No Gama DF, sua família morava em uma boa casa própria com estabilidade financeira e seus pais sempre cumpriam as responsabilidades de cuidados e educação dos filhos, apesar da pouca instrução formal. Depois, devido a problemas com bebida, seu pai agia com agressividade, deixando as relações familiares conturbadas. Este temperamento agressivo do pai, sob efeito de álcool, era contrabalanceado pelas atitudes protetivas da mãe, uma dona de casa que, devido aos problemas financeiros da família, teve de trabalhar como doméstica. Mas, mesmo assim, garantiu o crescimento dos filhos em um clima de união fraternal e cooperação mútua.

Apesar da pouca escolarização, a mãe sempre foi para Marluce seu grande modelo de identificação com o conhecimento intelectual. Ela (a mãe) valorizava muito a escola, pois a via como a única oportunidade de ascenção social para os filhos, sendo muito presente em suas vidas escolares não medindo esforços para acompanhar seus aprendizados e incentivá-los a adquirir hábitos de leitura.

A trajetória social de Marluce é marcada por mudanças drásticas. Perdendo a estabilidade financeira, sua família mudou para o Novo Gama, município goiano que faz divisa com duas regiões administrativa do DF. Lá permaneceram até Marluce concluir a 6ª série, tendo estudado em escolas, municipal e estadual da localidade. Nesta ocasião, os pais de Marluce se separaram e os filhos foram morar com a mãe em Taguatinga DF, ocorrendo então, a aproximação com a família de sua mãe. Marluce considera que para sua vida acadêmica essa convivência foi muito positiva, devido ao valor que esses familiares sempre atribuíram aos estudos. Antes de concluir o Ensino Fundamental, Marluce começou a trabalhar na área do comércio para ajudar sua mãe, então separada. Mais tarde, sua mãe reatou com seu pai e todos voltaram a morar no Novo Gama GO, período em que Marluce mudou do curso do Ensino Médio que estava cursando no período do noturno para estudar o magistério durante o dia.

4.1.4.2 História escolar

Marluce entrou com 7 (sete) anos de idade para cursar a 1ª série em uma escola pública do Gama DF. Ao iniciar seu percurso escolar, ela já havia recebido as primeiras noções de escrita através do ensinamento de sua mãe e nas brincadeiras de escolinha com seus irmãos. Sua mãe, além de ser uma leitora assídua, também se preocupava em ensinar as letras do alfabeto classificando as vogais e consoantes, com o intuito de que ao entrar na escola, seus filhos dessem menos trabalho. Apesar de todo esse cuidado de sua mãe, Marluce enfrentou dificuldades de aprendizagem em seu processo de alfabetização. Em sua memória ficaram vivas as lembranças das queixas de sua professora para sua mãe. No entanto, hoje Marluce interpreta essa dificuldade como um bloqueio causado pelo medo que ela sentia da professora em razão de sua rigidez e aspereza no trato com os alunos.

O que mais marcou nesse período para Marluce foi principalmente a sua dificuldade em aprender na sala de aula, seu excesso de timidez que a mantinha afastada de seus pares e o uso constante da cartilha. Mesmo diante dessas dificuldades, Marluce passou para a 2ª série no ano seguinte. Ela recorda que nesse período contou com a ajuda de sua mãe, da irmã mais velha e dos recursos que a escola que era bem conceituada, dispunha. A partir da 2ª série ela não enfrentou mais dificuldades em aprender ao longo do seu processo de escolarização.

No que se refere à relação professor-aluno no período de alfabetização, Marluce recorda de episódios que ficaram marcados pelos seus aspectos negativos interpretados como medidas de intimidação e cobrança exagerada. No entanto, ela reconhece que, em meio a essa aspereza e rigidez da professora, havia algo positivo, que era o seu interesse pelas aprendizagens de todos.

Marluce expõe que, ao longo do seu processo de escolarização a relação professor- aluno foi demarcada pelo distanciamento e delimitação de fronteiras bem definidas. De um lado, o mestre professor, do outro o aluno que para aprender precisaria ser disciplinado e acatar as regras impostas.

Em se tratando de atendimento específico para os alunos com maiores problemas em seus processos de alfabetização, Marluce relata que, a escola em si, por ser bem conceituada, tinha recursos que contribuíam para esse processo como: a sala do espelho, onde se explorava questões de fundo emocional; a biblioteca, a qual a turma visitava e participava de atividades incentivadoras; e a sala de recurso, para onde eram encaminhados os alunos que manifestassem dificuldades. Porém, em sala de aula, não havia nenhum tratamento nem individualizado, nem diferenciado. Era a mesma aula e a mesma exigência com todos.

Marluce sempre se comportou em sala de aula de forma tranquila e respeitosa. Porém seu comportamento, não se dava em função da aspereza e rigidez dos professores. Mas sim, em respeito à sua mãe que tanto valorizava a escola considerando-a sagrada e exigia dos filhos essa conduta. Para Marluce, essa veneração de sua mãe em relação aos estudos, faz parte de um padrão que vem sendo transmitido ao longo das gerações.

O comportamento exigente da professora de alfabetização de Marluce era compatível com o padrão de exigência da própria escola que primava pela disciplina e permanência dos alunos em sala e o respeito à hierarquia.

Marluce recorda que em sala de aula os alunos não se interagiam entre si. Todos sentavam em cadeiras individuais e ficavam em fileiras. Porém, em outros espaços da escola quando saiam para realizar alguma atividade, havia incentivo a essa interação. No entanto, embora todos sentassem separados, não havia por parte da professora atitudes de evidenciar nenhum aluno, nem de forma a exaltar nem a diminuir. Todos recebiam o mesmo tratamento.

4.1.4.3 História da escolha profissional

A escolha profissional de Marluce trata-se de uma construção que perpassa a sua história familiar e escolar ao longo de sua trajetória social. Desde cedo se identificando com sua mãe que tanto valorizava o conhecimento, em suas brincadeiras infantis, Marluce já manifestava o desejo de ser professora. Em um segundo momento significativo de sua trajetória, Marluce se depara com essa mesma valorização do conhecimento na figura da professora de alfabetização que, embora de forma ríspida, deixava muito clara a importância de se aprender, manifestada em suas exigências ao não admitir que, nenhum de seus alunos deixasse de cumprir as tarefas escolares. Nesse cenário, a aspereza da professora era contrabalanceada pelos recursos da escola que promovia atividades mais voltadas para as questões emocionais, assim como pela solidariedade da irmã que a ajudava e o esforço da mãe para que ela aprendesse. Essa experiência veio a influenciar o desejo de Marluce de ser professora alfabetizadora.

Ao se aproximar da família de sua mãe, ocorre o terceiro episódio onde o conhecimento é muito valorizado pelas pessoas de sua interação. Uma figura marcante nesse processo de identificação de Marluce é sua tia professora, que sempre dizia que ela (Marluce) tinha todo o perfil para se tornar professora.

Quando chegou a fase de cursar o Ensino Médio já com perspectivas de preparação profissional, as preferências de Marluce ficavam entre Comunicação Social, Pedagogia e

Direito. Em meio a essa indecisão, foi mais uma vez influenciada por sua tia a optar pela área do magistério porque seria um caminho mais fácil para atender ao campo financeiro. Marluce precisava estudar à noite para ajudar sua mãe financeiramente, razão que a obrigava buscar uma área de formação no Ensino Médio (antigo 2º grau) que não fosse o curso normal, já que este era disponível na Rede Pública do DF só em período integral. Assim, ela cursou o 1º ano no curso acadêmico. No ano seguinte mudou para o curso de administração, mas não se identificou com nenhuma dessas áreas. Sua tia, presenciando sua insatisfação com a formação, sugeriu que ela deixasse tudo e fosse fazer o magistério, mas Marluce dizia que não tinha como fazer isso porque precisava permanecer no emprego para ajudar sua mãe.

Com o retorno de sua família para o Novo Gama GO, surgiu a oportunidade de Marluce cursar o magistério em um turno durante o dia e trabalhar no outro período, sendo esta a primeira atitude concreta que definiria seu futuro profissional. Todavia, ao chegar no 3º ano do magistério, ela sofreu outro baque, uma vez que, em razão de sua jornada de trabalho, não estava cumprindo seus compromissos com a formação. Nesse cenário, outra figura enérgica passou a exercer uma influência decisiva na sua escolha, que foi seu professor de Estágio Supervisionado e de Estrutura e Funcionamento do Ensino. Ele exigiu dela a realização de seus trabalhos sob a pena de não concluir sua formação naquele ano. Marluce então deixou o emprego e concluiu essa etapa da formação com sucesso.

4.1.4.4 História da atuação profissional docente

A primeira atuação profissional de Marluce na carreira docente se deu imediatamente após concluir o curso normal através de aprovação em concurso público do município de Novo Gama GO, onde permaneceu por 15 anos, obtendo experiência em docência a maioria como alfabetizadora. Nessa mesma localidade, ela também exerceu a função de coordenadora e diretora. Em 2013 ela foi efetivada como professora na SEEDF também através de concurso público.

A definição do comportamento de Marluce frente aos seus alunos foi influenciada tanto pelo seu contexto familiar quanto escolar. Um traço marcante na sua forma de conduzir o trabalho docente é a primazia pela disciplina e respeito pela figura do professor. Outro traço também delineado por suas interações no âmbito escolar é o fato de não aceitar a origem social como justificativa das não aprendizagens, com base em sua própria história do processo de alfabetização e a discriminação sofrida durante o curso de graduação. Essa experiência teve um peso significativo na definição de sua forma de olhar para seus alunos oriundos de

contextos desfavorecidos economicamente, sendo fortemente influenciada pela valorização de seu desempenho por parte do professor.

Ao assumir a turma atual, em uma instituição escolar situada no bairro com maior índice de vulnerabilidade de Santa Maria, Marluce ficou assustada. Para ela, sua apreensão não se deu pelas condições econômicas porque já lhe eram familiares, mas sim pelas atitudes comportamentais dos alunos. A situação de desconforto perante o quadro encontrado fez com que Marluce reatualizasse as medidas disciplinares de seus antigos professores que eram enérgicos. Além do comportamento dos alunos desaprovado por Marluce, ela aponta como problema o número elevado de alunos e a heterogeneidade com muitos níveis de desenvolvimento cognitivo em relação à linguagem escrita reunidos na mesma turma. Seus sentimentos ao assumir a turma, foram de decepção e tristeza por ver suas expectativas em trabalhar na SEEDF frustradas. No entanto, ela sabia que teria de superar esses sentimentos e realizar o trabalho ao qual havia se comprometido. Atualmente, sente-se feliz com a turma e com o trabalho que vem realizando.

Marluce relata que sua postura profissional de acreditar no potencial do aluno e comprometer-se com seu aprendizado sofreu influência de sua experiência como mãe, buscando fazer por seus alunos o que espera de outros professores para com seus filhos. Outra questão que Marluce considera relevante para a definição de sua postura profissional é o fato de ter escolhido a carreira, entre outras opções, sendo que no mesmo período passou no vestibular para Comunicação Social e pedagogia e escolheu pedagogia porque estava totalmente identificada com a carreira do magistério.

Ela avalia o processo de aprendizagem de sua turma como sendo satisfatório mediante os resultados alcançados. Todavia, ressalta que, o desgaste do profissional ao assumir uma turma numerosa, com defasagem nas aprendizagens e com níveis muito diferentes é muito grande, uma vez que, as faltas de condições favoráveis exigem do professor um enorme desdobramento, o que acaba dificultando a realização de atendimentos mais direcionados para as necessidades que são muitas e variadas.

O estilo de Marluce se relacionar com seus alunos, espelha-se, em parte, no tipo de relacionamento de sua professora de alfabetização. Todavia, ao mesmo tempo em que ela é exigente, enérgica, é também carismática, fazendo com que os alunos cumpram suas exigências não por medo, mas por não querer decepcioná-la. Ao contrário do distanciamento de seus professores, ela permite a proximidade de seus alunos e dá espaço para que eles expressem seus sentimentos, sempre tomando cuidado para não feri-los emocionalmente.

No que diz respeito às interações entre os próprios alunos, Marluce observou que, no início do ano, alguns agiam de forma individualistas, chegando a discriminar os alunos com maiores dificuldades e se sentindo superiores. Diante desses comportamentos, Marluce elaborou um projeto que pudesse aproximá-los e modificar as atitudes iniciais.

4.1.4.5 Concepções sobre as dificuldades de aprendizagens

Marluce identifica três grupos distintos em sua turma. O primeiro é composto pelos alunos que possuem laudo e já se encontram há dois anos na escola e não avançaram em seus processos de alfabetização. O segundo é o grupo dos imaturos, que ainda não adquiriram responsabilidade para com as atividades escolares e preferem ficar bricando. Marluce considera que isso está relacionado à própria idade e por ainda não ter experienciado situação de repetência escolar em decorrência da estrutura organizacional do BIA, que imporia à própria família exercer uma cobrança maior desses alunos. O terceiro é o grupo dos que atingiram um nível de maturidade em que eles próprios se cobram ocupar as mais altas posições nas aprendizagens. Para Marluce, o posicionamento dos alunos nesses grupos também apresenta uma relação com suas interações familiares. Isso porque, a família dos que se encontram no terceiro grupo é sempre presente e interessada tanto por suas aprendizagens, como para garantir que eles tenham os materiais necessários. Quanto aos que estão no segundo grupo, o fator financeiro não é determinante, uma vez que há alunos sem condições de ter o material e outros que vem sem o material não por falta de condições, mas por falta da família que não prioriza a escola.

Para Marluce, os principais aspectos que comprometem o processo de alfabetização estão relacionados com a estrutura política organizacional. Dentre as problemáticas do sistema de ensino, para ela, encontra-se, a quantidade de alunos nas turmas; permitir que professores despreparados para alfabetizar assumam turmas de alfabetização; a forma como os projetos são lançados na rede de ensino; a forma que a inclusão é inserida no sistema; e, a falta de sistematização dos projetos educacionais juntamente com a irreflexão por parte dos professores em relação à aceitação dos projetos governamentais que modificam de acordo com a mudança das lideranças políticas. Dentre outros aspectos que podem comprometer as aprendizagens, Marluce inclui situações traumáticas que causam impactos emocionais. Todavia, Marluce descarta as situações de pobreza e alcoolismo dos pais como responsáveis pelas dificuldades de aprendizagens, uma vez que, a própria escola poderá propiciar um ambiente que contribua com a superação mediante atitudes afetivas e de exigência dos

professores, podendo inclusive promover mudanças em seu contexto social. Por outro lado, Marluce reconhece que, o contexto familiar em que o aprendizado escolar não seja uma prioridade, irá interferir, mas não determinar que o aluno aprenda ou não. Em relação ao acesso a objetos culturais relacionados à linguagem escrita antes da entrada na escola, Marluce entende que pode ser um facilitador, mas a falta desse acesso não pode ser determinante para acentuar as dificuldades em alfabetização, sendo que se trata de situações que podem ser supridas pela própria escola. No entanto, quando a família e a escola negam esse acesso, torna-se um grande complicador.

Para Marluce os problemas de aprendizagens precisam ser de responsabilidade da escola como um todo e, o engajamento de toda a equipe de profissionais em uma ação coletiva faz toda a diferença. Outra questão que para Marluce é preponderante para a concretização das aprendizagens em processo de alfabetização, é o olhar especial na definição dos professores que conduzem essa etapa da vida escolar. Para ela, o alfabetizador precisa ter certas particularidades nem sempre exigidas em outros momentos de formação. Ele precisa ter um olhar sensível, de entrega; ter aptidão; ter conhecimento sobre o processo de alfabetização unindo formação teórica com experiência prática; gostar de alfabetizar e vontade de querer aprender.