• Nenhum resultado encontrado

Famílias Contemporâneas e formas de interação: a Coesão Familiar

PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO

CAPÍTULO 3 – Dinâmicas da Motricidade Humana na Família Contemporânea

3.3. Famílias Contemporâneas e formas de interação: a Coesão Familiar

Os indivíduos e as suas relações não são analiticamente separados da comunicação. Os relacionamentos são constituídos com base em práticas de comunicação, criando a linguagem, proximidade ou afastamento social. Os indivíduos acomodam-se ou adaptam-se aos outros e ao seu discurso, dependendo da sua perceção dos membros do grupo, de si e dos outros. A construção da identidade familiar também depende do discurso. A teoria dos padrões de comunicação familiar define duas dimensões de comunicação: orientação para a conversa, em que os membros da família são encorajados a participar; e orientação para conformidade, em que cada membro é levado à homogeneidade de atitudes, valores e crenças. Estas dimensões manifestam-se de formas diferentes em quatro tipos de família característicos: famílias consensuais (mais conversação, mais conformidade, a comunicação é encorajada, os pais escutam as crianças e todos os membros expressam as suas posições contudo as decisões são dos pais, os membros evitam os conflitos), famílias pluralistas (mais conversação, menos conformidade, pais não controlam, filhos têm poder de decisão), famílias protetoras (menos conversação, mais conformidade, os pais esperam que os filhos respondam à sua autoridade) e as famílias laissez-faire (menos conversação, menos conformidade, limitam o conflito, crianças tomam a maior parte das decisões) (Galvin & Braithwaite, 2014).

Kellerhals, Troutot e Lazega (1989) defendem que os casais estão sujeitos a constrangimentos sociais (códigos sociais, posição de classe e desiguladades de género) na forma como constroem as regras e as práticas nas interações familiares, uma vez que a vida quotidiana é ajustada a uma quantidade de tarefas instrumentais e de troca de serviços que delimitam as interações. As dinâmicas de interação parental referem-se à cooperação, comunicação e coordenação entre os progenitores ou figuras parentais. Kellerhals, Coenen-huther, e Modak (1987) propõem uma tipologia das interações

60

familiares articulada em três eixos: coesão interna, integração externa e regulação. A coesão interna indica como é que os membros do grupo familiar se relacionam entre si e tecem os seus laços. Os diferentes elos da coesão interna estabelecem diferentes hierarquias de pertença entre o “eu”, o “nós casal” e o “nós família”, e, ao influenciarem a construção de uma identidade individual e social, equilibram a autonomia tendo em conta os laços significativos na família. Outra dimensão do eixo de coesão é a hierarquização dos objetivos que dão significado à vida em comum: profissão, património, educação dos filhos, quando colocam a relação conjugal ao serviço de objetivos externos, ou objetivos internos: comunicação, reconforto, intimidade, gratificação afetiva e sexual, quando estão centradas na relação. A integração externa avalia se a família é aberta ou fechada. Nas famílias do primeiro tipo, o equilíbrio familiar é enriquecido pelas trocas externas; nas famílias fechadas, a abertura ao exterior é sentido como colocando em risco o consenso e a harmonia familiar. A forma como a cooperação é garantida na organização da produção da vida familiar é analisada pela regulação. Os papéis de cada progenitor nesta organização podem ser mais instrumentais (divisão de tarefas e responsabilidades) ou mais expressivos (gestão das relações). Estes últimos subdividem-se ainda em papéis de orientação (informações pertinentes, peso de cada um na negociação do quotidiano), de mediação (gestão de conflitos, redução de tensões nas relações quotidianas) e de apoio emocional (consolar, encorajar, cuidar do clima emocional) (Kellerhals et al., 1987; Marinho, 2011).

A partir da proposta anterior, Aboim e Wall (2002) analisaram as famílias a partir de dados de um inquérito, realizado em 1999, a 1776 mulheres portuguesas entre os 25 e os 49 anos a viverem em conjugalidade e com pelo menos um filho co-residente entre os 6 e os 16 anos. O estudo permitiu obter uma visão global do que se passa na família conjugal contemporânea em Portugal, comprovando uma multiplicidade de formas de interação na vida conjugal. Os autores dividiram-nas em seis tipos de funcionamento - paralelo, paralelo familiar, bastião, fusão aberta, confluente, associativo5 - dos quais

5 Seis tipos de funcionamento conjugal:

1. Tipo “paralelo”, caracterizado por uma autonomia desejada e sexualmente diferenciada e por fechamento ao exterior;

2. Tipo “paralelo familiar”, que conjuga o predomínio de práticas separadas a uma ligeira fusão familiar, a divisões de género assinaláveis, as intenções fusionais e a uma abertura média ao exterior; 3. Tipo “bastião”, fusional, fechado e marcado por papéis de género diferenciados;

61

nenhum se destacou em relação aos outros, sendo a existência de diversidade, a principal conclusão do estudo, ainda que os tipos de funcionamento centrados na autonomia fossem menos frequentes.

O estudo classificou também as formas de coesão das famílias em função dos seus principais subgrupos (ou seja, “quem faz o quê e com quem?”) e revela diferentes formatos (separado, fusional, polivalente) das práticas familiares de coesão. Estes diferentes formatos das práticas familiares de coesão comportam divisões de género que podem caracterizar-se por uma maior ou menor diferenciação dos papéis conjugais, tanto em matéria de trabalho (doméstico e profissional), como de construção de espaços de autonomia pessoal através de atividades realizadas individualmente. A análise efetuada concluíu que o modelo de «dupla profissão e trabalho doméstico feminino» abrange cerca de 38% dos casos, evidenciando o peso da dupla jornada de trabalho das mulheres no mundo profissional e doméstico.Relativamente à construção da autonomia pessoal, através das atividades desenvolvidas fora de casa, o estudo demonstrou a existência de uma tendência para a desigualdade.Um quarto dos casais deste estudo apresenta uma autonomia construída apenas no masculino, uma vez que as mulheres não referem quaisquer atividades realizadas sem a companhia do cônjuge. O modelo polivalente é também caracterizado por práticas separadas, contudo, enquanto o homem sai quase sempre a sós, a mulher sai sobretudo na companhia dos filhos, permanecendo desta forma «dentro da família» na sua qualidade de mãe (Aboim & Wall, 2002).

No que se refere às intenções, a fusão conjugal é prevalente (61,0% de casos): privilegia-se a semelhança e a partilha de momentos, gostos e amigos. Por outro lado,a autonomia relativa (combinação da autonomia com a fusão ) é manifestada em 30,2% dos casos e a autonomia explícita verificou-se em apenas 8,8% dos casais que privilegiam a autonomia tanto ao nível do dinheiro como dos lazeres, gostos e amigos. O

4. Tipo “fusão aberta”, onde a fusão é forte, a divisão de papéis é relativamente igualitária e a integração externa é permeável a diversas saídas e convívios;

5. Tipo “confluente”, caracterizado por práticas polivalentes ligadas a uma regra fusional, por papéis de género pouco diferenciados e por abertura forte;

6. Tipo “associativo”, que conjuga práticas polivalentes expressivas, intenções explícitas de autonomia, papéis de género pouco diferenciados (sobretudo a nível do trabalho profissional) e abertura forte ao exterior.

62

posicionamente voltado para a autonomia está patente na realidade portuguesa, contudo as lógicas fusionais predominam. No que se refere ao modo como as famílias se integram no exterior, quanto ao volume das saídas e dos convívios com familiares, amigos, vizinhos, mais de metade das famílias analisadas (56,6%) inclinam-se para o fechamento. As autoras concluíram, ainda, que a diversidade de formas de interação é variável em função dos contextos socioeconómicos, estando a fusão mais presente em meios populares e a autonomia em grupos mais qualificados a nível escolar e profissional (Aboim & Wall, 2002).

Bell e Bell (1982) utilizaram o conceito de coesão para mostrar como os conflitos no casal determinam os modos de relacionamento com os filhos adolescentes e influenciam o seu desenvolvimento. Os autores apresentam uma proposta de operacionalização inovadora para a resolução de conflitos no casal, defendendo que cada membro do casal pode ter um relacionamento autónomo com os filhos. A partir do eixo da coesão define quatro classes de famílias: balanced – equilibrada (a distância entre os membros do casal e entre estes e os filhos é equilibrada); scapegoating – bode espiatório (há mais proximidade entre os membros do casal do que entre estes e os filhos); coaligation – aliança (um dos membros do casal procura os filhos para apoio emocional e cria distância entre o filho e o outro membro do casal); e adolescent close – adolescente próximo (os filhos estão mais próximas de cada um dos membros do casal do que estes entre si). Os dois últimos, coaligation – aliança e adolescent close, evitam

problemas conjugais e focam a atenção no filho.

Também Widmer et al. (2002) procuraram definir os principais tipos de funcionamento familiar que caracterizam os casais, compreender quais as dificuldades associadas a cada casal e qual o modo de gestão das perturbações apresentadas por cada um. Os autores revelaram que as famílias tornaram-se nómadas, do ponto de vista de construção cultural, e, consequentemente, as suas normas de funcionamento também.

Para além das dinâmicas de coesão parental e conjugal existem outras dimensões que podem influenciar a vivência familiar. A conciliação entre a vida profissional, as tarefas e os cuidados do quotidiano e as atividades físicas e desportivas e/ou de lazer revela-se mais ou menos complexa em função do número de menores

63

existentes no agregado doméstico e dos compromissos inerentes a cada membro. Um melhor funcionamento familiar pode estar relacionado com a prática de AF moderada a vigorosa ao fim de semana, tendo em conta a preservação do tempo para manutenção das tarefas quotidianas, enquanto uma maior satisfação no que diz respeito às amizades pode estar relacionada com a prática de AF moderada a vigorosa durante a semana (De La Haye et al., 2014).

A estrutura e o funcionamento familiar têm um impacto importante na saúde pública a nível fisiologico e psicológico. Na saúde fisica revela-se através da introdução de bons hábitos (alimentação, sono, higiene, etc.) e também da regulação do stresse. Na saúde mental, a qualidade das relações familiares tem maior repercurssão ao nível do desenvolvimento cognitivo, altamente mediado por assimiliação cultural, e que afeta os indivíduos, através da modelação parental e socialização de valores, sendo que o papel da prática de AF em contexto familiar é um elemento fundamental na promoção da coesão familiar (Arias & Punyanunt-Carter, 2017).

Para que as intervenções baseadas na família tenham um impacto positivo, deve ser dada atenção adicional à identificação de estratégias que promovam atividades físicas que atraiam membros da família de diferentes idades, no mesmo programa ou ambiente (Advisory Committee, 2018).

A qualidade das interações familiares é aprofundada no último ponto deste capítulo, através da apresentação da Escala Coesão e Flexibilidade Familiar (FACES IV).