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AS TRANSFORMAÇÕES NA CONFIGURAÇÃO SOCIAL E NO MODO DE VIDA DA COMUNIDADE DE MANDACARU

2.1 DA FAZENDA AOS SÍTIOS, DOS SÍTIOS À COMUNIDADE: O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO E FORMAÇÃO DA COMUNIDADE MANDACARU

2.1.1 A fazenda Mandacaru

A história de Mandacaru está intimamente ligada à história de vida de Manoel Antonio (Vô Neco, como é carinhosamente lembrando por seus netos). Figura

patriarcal cujo comando de sua parentela marcou o modo de vida e a constituição da Comunidade Mandacaru

O senhor Manoel Antônio nasceu no sítio Armação, entre Soledade e Boa Vista, em 1888. Conseguiu a mão de Maria de Fátima, filha adotiva de Francisco Ismael, fazendeiro da Ramadinha (hoje fazenda vizinha a Mandacaru), no ano de 1910 ou 191125. O sogro o chamou para “botar roçado” nas terras dele. Então o Manoel instalou-se junto ao sogro na Ramadinha, onde nasceu o seu primeiro filho em 1912. Mas pouco tempo depois ele se desentendeu com o sogro. Por isso ele voltou para o sítio de seu pai: Armação. Em 1925, ele vendeu a parte que lhe cabia da herança paterna e comprou 50 hectares de terra pertencentes à fazenda Pilar, vizinha da Ramadinha26. Instalou-se então como vizinho do sogro, trazendo a mulher Severina e 06 (seis) de seus 10 (dez) filhos.

Segundo seus netos, o Vô Neco dizia que aquele terreno alagava com facilidade. No local mais seco, do lado de um grande lajedo onde tinha uns pés de mandacaru, ele ergueu a sua casa. Alguns anos mais tarde, a esposa Maria de Fátima herdou uma parte da fazenda Ramadinha, vizinha da terra seu marido. Então Manoel comprou um terceiro pedaço e constituiu, assim, a Fazenda Mandacaru.

Maria de Fátima faleceu no parto do décimo filho. O Vô casou-se novamente, mas não teve filhos com a segunda esposa. Quando esta faleceu, ele casou-se pela terceira vez, desta vez com a irmã da primeira mulher. Também não teve filhos com a terceira esposa, mas ela trouxe mais um pedaço de terra como herança do seu pai Francisco.

No tempo do Vô Neco, toda organização social do espaço, do trabalho na terra e da vida social, era fruto de sua influência “patriarcal”. Assim, era recorrente a cooperação através das práticas sociais de reciprocidade. Segundo Ostrom (1998), esse tipo de cooperação baseia-se em normas e valores internos que são peculiares a cada grupo. Desta forma, a maneira como o Vô conduzia a vida na fazenda foi deixando marcas que caracterizaram o tipo de laço social que lá fora construído desde seus primórdios. Verificava-se naquele tempo a utilização da reciprocidade

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Não há precisão na data casamento. Em alguns relatos a data mencionada e de 1910 e em outro de 1911.

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horizontal (mutirões27, comilanças28, troca de dias de trabalho, pastos comunitários) e vertical (o voto no candidato do Vô, dependência financeira, assistencialismo).

A Fazenda Mandacaru do Vô Neco, era composta por parentes, agregados e meeiros. Estes podiam cultivar um roçado próprio, com a condição de trabalharem alguns dias por semana no roçado do Vô. Outros desses eram meeiros, ou seja, cultivavam roçado nas terras do Vô e dividiam a colheita com ele como forma de pagamento pelo uso da terra.

A produção agrícola na fazenda era basicamente de culturas de subsistência: feijão, milho, fava. Houve o período, por volta da década de 1950, em que as culturas de Algodão e Sisal foram introduzidas sucessivamente. Os campos dessas culturas eram de propriedade exclusivamente do Vô.

Meu pai quando se casou teve direito a ter seu próprio roçado. Quando era solteiro não tinha não. Ele me falava que na época boa do algodão e sisal todo mundo trabalhava para meu avô. Os roçados grandes pertenciam a ele e ele organizava tudo. Se desse errado ele assumia o erro (Calos, neto do

Vô)29.

A pecuária era uma atividade pouco desenvolvida na Fazenda Mandacaru. O Vô Neco mantinha um pequeno rebanho de bovinos, caprinos e ovinos para consumo próprio ou para vender em caso de uma necessidade financeira. Além desse rebanho havia as criações de animais de faxina30: galinha, pato, peru, guiné.

Segundo os relatos dos netos do Vô, a criação de animais não era proibida para os parentes e agregados que residiam na fazenda. Eles podiam ter suas criações, mas tinham a obrigação de manejá-las e custear a alimentação de seus rebanhos.

Era muito difícil criar animais grandes. A alimentação era pouca e a seca acabava com tudo. Mesmo assim, o nordestino sempre teve o animal como uma garantia: se acontecesse o pior dava pra vender um bichinho e escapar. É por isso que sempre a gente seguiu a orientação do Vô em ter alguns animais. E é por isso também que ele permitia que agregados criassem em suas terras. Nos tempos de dificuldades, da seca entende, ele deixava até os vizinhos dar água aos seus bichos no tanque da fazenda.

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Sistema de trabalho não assalariado, realizado em comum entre parentes, vizinhos, amigos ou membros de um agrupamento social, em favor da comunidade toda ou de um dos membros, implicando então em obrigação moral de reciprocidade.

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Banquetes comunitários geralmente oferecidos por um membro da comunidade em situações de comemoração que podem ser sociais ou individuais.

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As falas utilizadas neste capítulo são fragmentos das entrevistas feitas com os Netos e Netas do senhor Manoel Antônio. Bem como, de alguns relatos de antigos agregados e de vizinhos do Vô.

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Não era muita coisa, mas quem tinha água como a gente era rico (Pedro,

neto do Vô).

O relato de Pedro, atualmente neto mais velho do Vô, evidencia o comando prudente e o tipo de solidariedade exercida pelo Vô. É comum, para os camponeses nordestinos, manter um rebanho, mesmo com dificuldades, para servi-lhes de reserva financeira ou poupança. Assim, permitir a criação de animais pelo agregado era uma forma de garantir seu sustento caso a seca se intensificasse. Ao contrário, o patrão tinha que se responsabilizar pela manutenção de todos aqueles que se encontravam sobre sua tutela.

Outra modalidade laboral exercida na fazenda era o trabalho e o manejo de alguns bens coletivos. O trabalho em mutirão funcionava bem, sob o comando do Vô, e era utilizado para construção e manutenção de estradas, barreiros, tanques de pedra e a colheita das safras. Quanto ao manejo coletivo, pode-se evidenciar o uso comum das águas e dos pastos.

Todo mundo ia pra os mutirões: o Vô mandava e a gente ia. Que tempo bom era aquele! Todo mundo trabalhava junto, todo mundo se ajudava [...] os mutirões serviam para tudo: pra colheita, pra limpar o tanque de pedra e as estradas [...] se trabalhava junto um dos outros e também vivia junto, dividia o pão na falta e na fartura (Carlos, neto do Vô).

O uso desigual e ao mesmo tempo comum das terras da fazenda evidencia as relações de poder, a hierarquização, bem como, a configuração social da Fazenda Mandacaru, composta por três grupos definidos social e economicamente, a partir do parentesco, do pertencimento, das relações de reciprocidade e da divisão do trabalho. São eles: O Grupo A, formado pelo Vô e seus filhos; o Grupo B constituído pelos agregados do Vô e o Grupo C, composto pelos meeiros31, trabalhadores sazonais com relações de trabalho bem definidas32

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O trabalho realizado entre meeiros é aquele onde um proprietário rural coloca a disposição de terceiros certa quantidade de terra por um período de tempo determinado. O produto plantado e colhido é divido pela metade entre ambas as partes. Vale salientar que o dono da terra não desempenha nenhum trabalho no cultivo daquela parcela emprestada.

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Não foi possível precisar o número de agregados e meeiros. Pois, segundo os entrevistados, havia uma rotatividade muito grande entre os membros desses grupos.

TABELA 2-1

Tipologia dos grupos sociais e econômicos que faziam parte da Fazenda

Mandacaru33

TIPOS CLASSIFICAÇÃO TIPO RECIPROCIDADE

Grupo do tipo A Parentes diretos Horizontal

Grupo do tipo B Agregados Horizontal e Vertical

Grupo do tipo C Meeiros Vertical Fonte: Dados da pesquisa

As relações sociais e os laços de reciprocidade eram definidos pelo pertencimento ou não pertencimento aos grupos acima exposto no Quando 01. Quanto à reciprocidade, de acordo com Mauss (1966), ela é um tipo de sistema de relações de trocas baseado na lógica de dádiva. A dádiva compreende três momentos: aqueles do dar, do receber e do retribuir. Neste tipo de sistema, os bens circulam de forma horizontal ou vertical e o objetivo mesmo da circulação destes bens é a perenização dos laços sociais. A lógica da dádiva obedece a um tipo de determinação social específica, pois ao mesmo tempo em que é livre, é também obrigada; a doação é essencialmente paradoxal. Isto porque o retorno, ou contradádiva, não é uma obrigação de fato: ele é incerto, porém esperado. “As

trocas e os contratos são feitos sob forma de presentes teoricamente voluntários, mas na realidade compulsoriamente dados e retribuídos” (MAUSS, 1966:147). É o

receio de exclusão do sistema socioeconômico, por não cumprir com essa regra rígida de reciprocidade, que gera a obrigação da contradádiva. Portanto, a dádiva constitui o sistema das relações propriamente sociais na medida em que estas são irredutíveis às relações de interesse puramente econômico.

Sendo assim, o Grupo A, parentes diretos do Vô, desfrutava de relações de reciprocidade horizontal. Eles usufruíam das prestações de dádiva oferecidas pelo Vô e retribuíam na mesma medida. As atividades sociais, culturais e econômicas

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É importante destacar que a categorização dos grupos em A, B ou C é uma criação idealizada e não a realidade em si. Os tipos ajudam a vislumbrar a realidade com mais precisão sem pretender ser a descrição fidedigna do real. Para Weber (1999), o tipo ideal é um instrumento metodológico, um modelo, que orienta o cientista a guiar-se na diversidade do real.

eram divididas igualitariamente entre eles e o Vô. Muito embora Manoel Antonio fosse o líder, os bens tangíveis e não tangíveis eram de todos os membros da família, e todos tinha clareza deste fato. Assim, toda e qualquer ação cometida pelos membros da família, mesmo sob o comando do Vô, resultava em ações para o bem do grupo familiar em apreço.

Já o Grupo B, dos agregados, participava das relações dadivosas de forma horizontal e vertical. As prestações horizontais eram oferecidas através de moradia na fazenda, do usufruto de alguns recursos naturais (frutas, pastos, água), e do uso da terra para cultivar e criar. A devolução era feita por intermédio do trabalho na fazenda: os agregados tinham que cultivar o roçado do Vô, participar dos mutirões e de qualquer atividade designada por ele. Já a verticalidade era estabelecida através de favores oferecidos ou exigidos pelo Vô e que jamais poderiam ser devolvidos de maneira equivalente: empréstimos financeiros obtidos diretamente com o seu Manoel Antonio ou com algum compadre indicado por ele, voto no candidato por ele apoiado, cumprimento das ordens vindas de cima para baixo e prestações assistencialistas em forma de alimento e remédios em períodos de escassez.

E o Grupo C, dos meeiros, desfrutava das prestações de dádiva apenas verticais. Os meeiros não compartilhavam a vida cultural e nem desfrutavam de qualquer recurso da fazenda. Eles usavam apenas a terra para cultivar e em troca devolviam a metade do lucro obtido em forma de grãos. Para manter o consentimento de cultivar a terra tinham que devotar obediência ao Vô, retribuído em forma de voto, empréstimos e assistencialismos. Como não dependiam tão diretamente do Vô, a quebra da relação de reciprocidade era frequente. Nem sempre a dádiva era retribuída como o “patrão” esperava.

Havia uma distinção social entre os agregados e os meeiros. Os primeiros em geral eram sobrinhos e afilhados. Estes podiam cultivar um roçado “de graça”, mas tinham que alternar o trabalho do seu próprio roçado com a lida no roçado do Vô. Os segundos desenvolviam apenas o trabalho de meia, onde o “lucro”, ou seja, a safra por eles colhida era dividida pela metade com o Vô34.

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Segundo nossos entrevistados, o que “amarrava” o meeiro ao proprietário era, sobretudo, o dinheiro. Antigamente (no tempo do algodão) os proprietários, além de cederem terra, emprestavam dinheiro para o meeiro. Era, sobretudo, isto, mais do que a cessão da terra, que fazia com que o meeiro tivesse que negociar o seu produto com o proprietário. Assim, ainda hoje é frequente o uso da denominação de “patrão” para se referir a quem empresta dinheiro para quem planta. Podia ser o

Nesse sistema de divisão do trabalho era possível obter uma colheita, sob a posse do Vô, cultivada com a mão de obra familiar e aquela obtida pelo trabalho de agregados e meeiros. Tinha também o produto das “meias”.

Os conflitos que ocorriam entre os agregados e os meeiros evidenciavam a diferenciação social existente entre eles. Constantemente eles trocavam acusações mútuas de que um grupo era mais favorecido do que outro. Isto era expresso por brigas, comentários e fofocas depreciativas entre ambas as partes. Os agregados moravam nas terras da fazenda e, portanto, desfrutavam de alguns benefícios que os meeiros, por trabalharem apenas durante a safra, não possuíam, como por exemplo: o desfrute de recursos naturais tais como pastagem, água e frutos o ano inteiro. Embora os agregados não fizessem parte do grupo de parentes consanguíneos do Vô, eles gozavam de certas vantagens por manterem relações próximas dele, o que não acontecia com os meeiros.

A figura patriarcal do Vô, com sua força e seu poder de comando perante seus descendentes e agregados, era um elemento coercitivo que facilitava a cooperação entre três grupos tão distintos. Não é incomum encontrar nas falas de seus netos que eles trabalhavam em conjunto porque o Vô mandava. Os que não obedeciam eram punidos e até ameaçados de expulsão da fazenda.

O nosso avô, aqui, era tipo um rei. Quando ele dizia que alguma coisa tinha que ser assim, era assim que a gente fazia. Se tivesse errado era ela que errava e não nós. É depois ele reconhecia o erro dele. Mas se ele acertava, e quase sempre ele acertava, o acerto era só dele (Antônio, 56 anos, neto

do Vô).

No tempo da Fazenda do nosso avô o trabalho era muito, mas todos trabalhavam com gosto. Ele mandava e nós obedecíamos. Tinha muita gente aqui, sabe! Os filhos, genros e noras, netos, sobrinhos e aqueles vinham no tempo do inverno plantar de meia. Até esses tinha que obedecer nosso avô. Eu me lembro que uma vez um meeiro foi impulso da Fazenda

dono da terra. Mas em alguns casos, este último era apenas o intermediário. A forma em que era feita a negociação para saldar o débito distinguia patrões “bons” dos “ruins”. Tinha aqueles que exigiam que o meeiro pagasse já na safra “do legume” (sobretudo milho e feijão). Nestes casos, o pagamento era feito num momento em que o produto do roçado vale pouco. Assim, o saco de feijão que o meeiro comprou no verão com o dinheiro do patrão era pago com 2, 3 ou 4 sacos, já que o preço do feijão caia muito no momento da safra. Desta forma, esses patrões conseguiam acumular estoques importantes de grãos, que depois vendiam por preços bons, por eles terem condições econômicas para esperar um momento melhor. Os patrões “bons” eram aqueles que permitiam que o meeiro saldasse a sua dívida com a chegada da colheita do algodão em setembro ou outubro. Tinha ainda aqueles que permitiam que uma parte fosse paga com a “safrinha” do algodão, em dezembro.

porque meu avô mandou ele plantar milho e ele plantou feijão (Maria, 50

anos, neta do Vô).

Na época do Vô todo mundo se ajudava porque era obrigado por ele. A gente não concordava com tudo mas ficava quieto. Tinha aquele filho e aquele neto preferido por ele e de vez em quando a gente brigava muito, mas ele resolvia tudo (Pedro, 60 anos, neto do Vô).

Verifica-se todo um processo de identificação e ao mesmo tempo de diferenciação social. Identificar-se e diferenciar-se faz parte de um mesmo momento, qual seja o da formação da identidade dos atores sociais. Sentir-se parte de um grupo é o mesmo que não ser membro de outro grupo (ELIAS & SCOTSON, 2000). O fato de na fazenda existirem categorias sociais distintas, parentes, agregados e meeiros, gerou uma forma específica de identificação a partir, principalmente, da divisão do trabalho e do uso diferenciado da terra e dos roçados, bem como do tipo de relação de reciprocidades estabelecida com o líder: o Vô. No entanto, esta diferenciação social ainda era percebida entre seres humanos singulares, todos eram trabalhadores rurais que gozavam de posições sociais específicas por pertencerem ou não a um mesmo tronco familiar.

Figura 2-1: Casa-sede da fazenda Fonte: Oliveira (2006).

A casa-sede da fazenda era o ponto de referência para todos que lá moravam, trabalhavam e para os que vinham de fora, visitar ou fazer negócio com o Vô. Além de abrigar a família, pai, mãe e filhos pequenos, havia o espaço para alguns meeiros que trabalhavam no roçado durante a semana.

Planta da casa-sede da fazenda Mandacaru: residência do Vô Neco35

Figura 2-2: Planta baixa da casa-sede da fazenda

Fonte: Oliveira (2006).

Além de ser o lugar destinado à moradia e ao consumo, nesse espaço eram celebrados os rituais sagrados, bem como os profanos. Geralmente as reuniões religiosas ocorriam na forma de novenas, nos dias de alguns Santos, tais como: São José, Santo Antonio, São João e São Pedro, como também no mês de Maio, dedicado à Virgem Santíssima. Algumas novenas festivas, como a de São João e São Pedro, eram seguidas de um baile. Já os casamentos e os batizados eram verdadeiros acontecimentos religiosos e sociais, pois o Vô solicitava a presença do Padre da Paróquia que comparecia a sua casa e nessa ocasião rezava a Santa Missa, casava e batizava os que necessitavam desses sacramentos.

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A casa-sede da fazenda foi modificada pelo neto do Vô: o Pedro. Hoje, só existe a parte frontal, os fundos e os lados abrigam uma construção nova. Hoje, ela é a sede do Projeto de Máquinas Agrícolas. A reconstituição da planta da casa foi possível com o que ainda está preservado e a partir do relato de Pedro e de sua esposa Didi.

Sala principal

Armazém Sala interna

Quarto Quarto filhos

Cozinha

Quarto dos meeiros

Faxina Alpendre Alpendre pocilga Galinheiro Terreiro Terreiro

Outro festejo importante, que coincidia com o início das festas juninas, era a pamonhada coletiva. Esta festa ocorria nos anos de inverno bom e celebrava o trabalho e a boa colheita. Nesta ocasião, os homens colhiam o milho e o feijão verde e as mulheres eram encarregadas do preparo dos alimentos, enquanto o resto da família ficava na sala ou no terreiro proseando. Este era um espaço de sociabilidade impar, pois as crianças presenciavam de forma mais contundente o lugar e as funções que cabiam a cada gênero.

A gente também sabia fazer a festa, era muito bom. O Vô festejava com todo mundo várias datas santas: a Semana Santa, o São João, o São Pedro, o Natal, os casamentos, os batizados [...] e tudo que era importante pra esse povo (Didi, 58 anos, esposa de Pedro, neto do Vô).

No mês de maio a gente fazia novena para Nossa Senhora. O oratório era enfeitado com fitas e a ladainha era rezada com muita fé. O povo de perto vinha para as novenas rezar e conversar sobre o que tava acontecendo nas vidas deles. Meu Pai conheceu minha Mãe numa novena na casa do Vô

(João, 58 anos, neto do Vô).

Tinha festa de todo tipo. De dia e de noite. De dia eram os almoços com muita comida boa. Às vezes ele mandava matar até um bode e várias galinhas e no mês de junho tinha pamonha e canjica. De noite, o forró corria solto: sanfoneiro, sabe. Lembro de uma vez, eu era moleque, que veio um violeiro que cantava repente e versos bonitos. Veio gente de toda vizinhança ver [...] O Vô gostava de festa e ele dançava um forrozinho até bom. Tinha o costume de juntar a “netarada” que nascia naquele ano e chamava o Padre para batizar tudo de uma vez. E o banquete do Padre era garantido. Minha Mãe dizia que o Vô gostava de dar “pitaco” nos padrinhos dos Netos, não podia ser qualquer um não, tinha que ser gente boa (Pedro,

60 anos, neto do Vô).

Nesses eventos podiam ser percebidas toda a vitalidade cultural e simbólica, bem como as tradições de um aglomerado de pessoas que mais se configurava como uma “família ampliada ou extensa”36, cujos laços sociais passavam pelo crivo moral de um chefe que organizava toda a vida social dos seus parentes e agregados numa forma de cooperação favorecida pela coerção do patriarca.

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Tipo familiar que vai além da família nuclear – pai, mãe e filhos – e se estende por todo um aglomerado de pessoas que formam um grupo maior composto por parentes consangüíneos e afins.