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ASPECTOS SOBRE COMUNIDADE, COMUNIDADE RURAL CAMPONESA, MODO DE VIDA E IDENTIDADE DO CAMPONÊS

1.2 A RELAÇÃO ENTRE CULTURA E MODO DE VIDA

Antes de falar sobre o modo de vida camponês, é necessário tecer algumas considerações sobre a relação existente entre as noções de cultura e modo de vida na perspectiva construída pela Sociologia e pela Antropologia.

O entendimento do que seria a cultura é alvo de discussão acirrada na Sociologia e, principalmente, na Antropologia desde o século XIX. Apesar da dificuldade que os antropólogos enfrentam para definir cultura, não se questiona a sua existência. A cultura se desenvolveu a partir da possibilidade da comunicação e da capacidade de fabricação de instrumentos, capazes de tornar mais eficiente o aparato biológico do homem (KROEBER, 1917).

Conforme Kroeber (1917), a cultura desenvolveu-se paralelamente com o próprio equipamento biológico humano e é, por isso mesmo, compreendida como uma das características da espécie, ao lado do bipedismo e de um adequado volume cerebral, uma vez que parte da estrutura humana, a cultura define a vida, e o faz não através das pressões de ordem material, mas de acordo com sistemas simbólicos variados (KROEBER, 1917; GEERTZ,1989; LARAIA ,2004; CUCHE, 2002).

Segundo Laraia (2004), a cultura constitui uma utilidade, serve como uma espécie de lente através da qual o homem vê o mundo e interfere na satisfação das necessidades fisiológicas básicas. Embora nenhum indivíduo possa conhecer totalmente o seu sistema cultural, é necessário ter informações mínimas para operar dentro do mesmo. Esse conhecimento deve ser compartilhado entre os membros de um dado grupo cultural de forma a permitir a convivência entre eles.

É através do processo de socialização ou endoculturação que o homem interioriza os elementos culturais de seu grupo. A herança cultural, portanto, é desenvolvida através de inúmeras gerações e sempre condicionou o indivíduo a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade (LARAIA, 2004; CUCHE, 2002, ROCHER,1971; GEERTZ,1989).

A socialização é o processo pelo qual, ao longo da vida, a pessoa aprende a interiorizar os elementos socioculturais do seu meio, integrando-os na estrutura de sua personalidade sob as influências de experiências e agentes sociais significativos (ROCHER,1971, p. 30).

O processo de socialização passa por dois momentos: a socialização primária ocorre na primeira fase da vida e, geralmente a família é responsável diretamente por esta; e a socialização secundária, que é a continuidade do processo ao longo da

existência do homem, se realiza através da inserção do indivíduo em seu grupo de forma mais ampla.

Vale ressaltar que cada cultura é um sistema único. Entender a lógica de um sistema cultural depende da compreensão das categorias constituídas pelo mesmo. Não existe cultura superior ou inferior, desenvolvida ou subdesenvolvida, melhor ou pior. Existem culturas diferentes (LARAIA, 2004).

Um dos mais citados conceitos de cultura foi o elaborado por Edward B. Tylor em 1871. Ele definiu cultura como sendo todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética.

Tomado em seu sentido ecológico mais vasto, é um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade (TYLOR 1871 apud CUCHE, 2002, p. 35).

Ainda no século XIX acirra-se a discussão sobre a noção de cultura e de civilização. Grosso modo, a cultura era relacionada aos aspectos subjetivos aprendidos e compartilhados – normas, valores, crenças, costumes – e civilização aos aspectos objetivos – tecnologia, utensílios, arquitetura, modo de produção.

No século XX, surge um cenário fértil na Antropologia que foi decisivo para unir o entendimento de cultura e civilização numa mesma noção: a de cultura, reunindo os objetos culturais subjetivos e os objetivos com parte de um mesmo processo.

Kroeber (1917), em seu livro “O superorgânico”, define a cultura como todo trabalho humano. Ele elencou os principais elementos encontrados em uma cultura:

• a cultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do homem e justifica as suas realizações;

• o homem age de acordo com os seus padrões culturais. Os seus instintos foram parcialmente anulados pelo longo processo evolutivo por que passou;

• a cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes ecológicos. Em vez de modificar para isto o seu aparato biológico, o homem modifica o seu equipamento superorgânico;

• em decorrência da afirmação anterior, o homem foi capaz de romper as barreiras das diferenças ambientais e transformar toda a terra em seu hábitat;

• adquirindo cultura, o homem passou a depender muito mais do aprendizado do que a agir através de atitudes geneticamente determinadas;

• é o processo de socialização que determina o comportamento do indivíduo e a sua capacidade artística ou profissional;

• a cultura é um processo dinâmico e acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores. Este processo limita ou estimula a ação criativa do indivíduo.

É fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas distintas. Toda cultura pressupõe um modo de vida mínimo para se

realizar. Este modo de vida está relacionado às questões objetivas e subjetivas

articuladas pelos indivíduos juntamente com seu grupo a partir da interação socioambiental. Assim, o modo de vida não é só concretamente construído e reconstruído. Ele também depende de como as relações sociais são estabelecidas cotidianamente.

Para Cuche (2002), a noção de cultura, compreendida em seu sentido vasto, remete-se diretamente ao modo de vida e de pensamento de um grupo. Se considerarmos a relação do indivíduo com o ambiente ecológico em que está inserido, é possível afirmar que este ambiente traz algumas barreiras ou limitações que o indivíduo deve observar. Mesmo diante de um contexto de globalização ou mundialização econômica, onde é possível consumir determinados alimentos e mercadorias de regiões específicas e até mesmo extremas, ou adaptar tecnologicamente o ambiente físico a um nível desejado, ainda assim, não podemos dizer que um indivíduo da Groenlândia tem a mesma relação ambiental que um ser da região semiárida do Brasil.

As estratégias de convivência com ambientes diferentes produzem diferenças, nem que sejam sutis, no modo de vida. Assim, modo de vida pode ser entendido como: o modo pelo qual os homens produzem seus meios de

subsistência, dependendo da natureza e dos meios que eles encontram e têm de reproduzir. Este modo de produção não deve ser considerado, simplesmente, como a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, antes, de uma forma definida de atividade destes indivíduos, uma forma definida de expressarem suas vidas. Embora seja diretamente contemplado de forma objetiva pelo indivíduo, o modo de vida é entendido, significado e resignificado de maneira subjetiva. É o concreto pensado e refletido, incorporado valorativamente na cultura de um grupo.

Do ponto de vista da sociologia, uma das primeiras aproximações do tema com os conceitos de way of life – modo de vida – foi exposto por Morgan e retomado pelos teóricos criadores da economia política Marx e Engels em diversos escritos, entre os quais: A origen da família, da propriedade privada e do Estado, os textos sobre formações sociais pré-capitalista e O Capital.

A expressão “modo de vida”, que de certa maneira antecipou o uso do conceito de cultura, aproxima-se do que define a organização econômica da sociedade – meios de produção – ao passo que sua relação com os aspectos simbólicos, na teoria marxista, seria retomada por Georg Lukács e Antônio Gramsci com sua aplicação aos estudos da vida cotidiana e cultura popular com sua diversidade de recursos simbólicos.

Geertz (1989), enumera algumas propriedades desta trama conceitual que envolve desde comportamento aprendido e transmitido através de gerações, aos sistemas simbólicos, produtos, artefatos elaborados e formas de adaptação ao meio ambiente ou organização social dos grupos humanos.

Então, na perpectiva da Antropologia Cultural, a cultura e o modo de vida se aproximam de que forma? Não deve-se confundir estas duas noções15, o modo de vida aqui é entendido como um aspecto cultural de um dado grupo social. Aspecto este que se realiza através da relação estabelecida pelos indivíduos entre o objetivo – natureza ecológica, modo de produção, economia – e o subjetivo – significação, valoração do que é materialmente construido. É a partir da relação entre a cultura e o meio material que o indivíduo é socializado, produzindo sua identidade cultural.

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Noção porque não há um conceito que de fato possa contemplar o que é a cultura e modo de vida de um grupo.

A questão é entender a relação entre cultura e modo de vida do camponês sem cair na armadilha de conceber as sociedades camponesas como realidades a parte. Claro que não existe uma única cultura camponesa que se aplica a todos os grupos que podem ser denominados de camponeses. Assim, é mais apropriado, então, falar de Sociedades Camponesas devido à heterogeinidade desses grupos (WANDERLEY, 2000).

Porém, é possível falar que existe um ethos camponês e que os grupos camponeses compartilham certas singularidades que lhes conferem um certo modo de vida, possibilitando a construção de identidades flexíveis. Mais uma vez, deve-se ressaltar que estas afirmativas devem ser vislumbradas de forma relativizadora, principalmente porque compartilhar aspectos específicos não significa possuir características sociais que possam conferir caráter de exclusividade a um dado grupo.