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VIDA E NA IDENTIDADE DOS CAMPONESES

4.1 UM NOVO (CON)VIVER EM MANDACARU: a transformação no sistema produtivo camponês

Em entrevista concedida em abril de 2010, Pedro de 60 anos, um dos netos mais velhos do Vô Neco e líder comunitário, falou sobre as mudanças ocorridas em Mandacaru a partir da implementação das novas tecnologias. Na ocasião, ele preferiu que a entrevista fosse realizada no roçado de sua propriedade e não na sala de sua casa, pois ele argumentou que queria falar de suas experiências através da demonstração de exemplos concretos, da sua prática laboral cotidiana e, para Pedro, nada melhor do que dar uma olhada em seus experimentos para comprovar seu discurso.

Saímos da casa em direção ao roçado quando de repente, antes que fizesse qualquer pergunta, ele começou a falar sobre sua vida antes da implantação das novas tecnologias e das práticas agroecológicas introduzidas na Comunidade. Então disse Pedro:

Quando eu era jovem fui morar no Sul e deixei minha mulher aqui com meu primeiro filho. Tive que ir buscar trabalho porque a terra aqui não dava mais nada. [...] era um sofrimento e nós já estávamos quase passando fome. Deixei o pouco de dinheiro que consegui com a venda de poucos animais que tinha e fui para o Sul. Lá uns parentes me receberam e me arranjaram

um emprego de servente de pedreiro. Fui trabalhar, mas no final do mês a minha despesa comia meu salário e não sobrava quase nada para mandar para casa. [...] eu me revoltava, minha filha, não é mole não! Trabalhar, trabalhar e ficar longe de casa para não dá em nada, viu! É duro! Um dia ouvi uma pessoa de lá dizendo que os nordestinos eram uns “passa fome”. Eu me revoltei com a estória e pensei: será que não é possível sobreviver na minha terra? Foi quando eu voltei pra cá e nunca mais quis ouvir falar em ir embora para o Sul. As novas iniciativas me deixaram ficar aqui. Produzir, viver e ter orgulho de dizer que sou um homem do campo e que vivo da agricultura no Cariri [...] (Pedro, membro da Comunidade).

Ainda caminhando pelo roçado, Pedro mostrava sua barragem subterrânea, a horta orgânica, as caixas de cultivo das abelhas nativas, os silos de trincheiras, as cercas verdes e de telas, o roçado de milho, de feijão e de mandioca, os animais maiores (bovinos, ovinos e caprinos), os animais da faxina (galinhas, patos, guinés, perus), a cisterna de placas, tanque de pedras, a pequena reserva de mata nativa e tudo que existia na propriedade, fazendo da mesma um estabelecimento onde a agricultura familiar era praticada de forma diversificada e ecologicamente sustentável. Após explicar-me como tudo funcionava, Pedro exclamou:

Tá vendo tudo isto! Nada existia antes da assistência técnica do STR e com o PATAC. A terra não produzia porque a gente queimava e usava veneno. Esta área, próxima à barragem subterrânea, era toda degradada e apenas em sete anos eu recuperei ela que hoje é uma área produtiva, é viva tá vendo? [...]. Hoje eu não acabo mais com a mata e aproveito muito bem os frutos que ela me oferece. Quando chove, dá para aproveitar toda biomassa e armazenar nos silos de trincheira, como você viu. Aí eu posso criar os animais grandes e pequenos. Como você mesma pode olhar com seus olhos, né! Não dá mais para passar fome. A diversificação da produção sustenta minha família e ninguém precisa ir pra miséria do Sul (Pedro,

membro da Comunidade).

Na volta para casa, Pedro relatou que essa não era apenas a realidade de sua vida e de sua família e sim de toda a Comunidade Mandacaru que, segundo ele, nos últimos dezoito anos vinha passando por um longo processo de transformação das práticas camponesas tradicionais, baseadas na agricultura convencional, para as práticas agroecológicas, fundamentadas na diversificação da agricultura e no respeito ao meio ambiente ecológico. Ele ainda enfatizou que a mudança ocorrida na Comunidade só foi possível graças às transformações na maneira de pensar e agir de seus membros:

Não adiantava o técnico chegar aqui e mandar a gente mudar, dizendo que seu conhecimento era melhor que o nosso. O trabalho do PATAC foi diferente, eles chegavam e nos ouviam e depois juntavam as ideias com as nossas. Era nosso conhecimento também, sabe! Aí uns se tornaram Agricultores Experimentadores com eu e o compadre Augusto. Eu digo e

afirmo: tudo mudou aqui, mudou prá melhor (Pedro, membro da

Comunidade).

O relato de Pedro abre para algumas reflexões a respeito do impacto da intervenção técnica e metodológica dos atores externos no cotidiano de Mandacaru, bem como da apropriação das novas práticas sociais e tecnológicas feita pelos camponeses. De certo, é inegável que Mandacaru passou por um amplo processo de mudança configuracional após a interferência dos atores externos. No entanto, é preciso evidenciar que as mudanças só foram possíveis através da intensa cooperação entre os mediadores e os camponeses da Comunidade.

Figura 4-1: Barragem subterrânea de Pedro produzindo em pleno período de estiagem.

Fonte: Arquivo próprio

Na fazenda, a estrutura fundiária era bastante concentrada, mas a organização social, imposta por seu Manoel Antônio (o Vô Neco), permitia um uso equilibrado dos recursos naturais e econômicos. A morte do líder levou à divisão da fazenda em parcelas individuais, provocando outra forma de concentração da terra: a compra de terra de vizinhos por parte de alguns herdeiros, criando certa diferenciação social e econômica entre os herdeiros. Forçados pela necessidade, a maioria dos legatários, com pouco espaço produtivo, abandonou suas práticas tradicionais de pousio67 – que permitiam a regeneração dos solos – e intensificou suas culturas a partir do uso de insumos químicos, isso sob a influência do modelo da “revolução verde”.

67

Os custos altos dos insumos químicos e as pequenas parcelas de terra comprometeram a sustentabilidade ambiental e econômica do sistema de produção executado em Mandacaru.

Vale lembrar que, quando a agricultura dita moderna precisa incorporar sempre mais insumos para manter sua produtividade, desgastando os solos e poluindo os rios, no caso da agricultura familiar tradicional, o equilíbrio natural do ecossistema favorecido pela biodiversidade - adaptada às características de cada parcela da propriedade - evita a proliferação de “pragas” e proporciona uma produtividade por hectare que, em vez de diminuir com o tempo, vai aumentando. Ela é mais eficiente na gestão dos recursos naturais e menos dependente. É precisamente esse equilíbrio que estava rompido pela diminuição das parcelas e pelo exemplo da agricultura dita moderna (DUQUE E OLIVEIRA, 2010, p. 02).

Quase todos os camponeses adotaram as novidades da “revolução verde”, dentro de suas possibilidades68: insumos e defensivos químicos nas lavouras. Em pouco tempo de uso destes produtos, suas lavouras passaram a produzir cada vez menos e suas dívidas, na loja de produtos agrícolas de Soledade, aumentaram cada vez mais.

68

As possibilidades das novidades da Revolução Verde eram limitadas, pois se tratava da pequena agricultura que não se enquadrava no modelo de mecanização da Revolução. Restava-lhes usar apenas os pacotes de insumos químicos.