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ASPECTOS SOBRE COMUNIDADE, COMUNIDADE RURAL CAMPONESA, MODO DE VIDA E IDENTIDADE DO CAMPONÊS

1.1 QUESTÕES SOBRE COMUNIDADE E COMUNIDADE RURAL CAMPONESA

1.1.2 Sobre a comunidade rural camponesa

Os principais estudos acerca das sociedades camponesas apontam para uma relativa autonomia das “sociedades camponesas em relação à sociedade

envolvente”. Em consonância com a principal formulação, acima exposta, de

Tönnies (1979) – distinção entre comunidade e sociedade – essa questão é tida quase como um dogma. Tem-se, de um lado, a comunidade como um lugar de aspirações comuns entre os indivíduos; do outro, a sociedade capitalista, com seu utilitarismo e competição do mercado. Segundo Wolf (1970), essa relativa autonomia insere o camponês num dilema, pois ao passo em que vive num mundo de cooperação, ele também entra em contato com a competição do mercado para vender o excedente de sua produção, e essa relação é sempre conflituosa, cabendo ao camponês manter o equilíbrio entre duas forças contrárias.

Mendras (1978) não caracteriza a sociedade camponesa de forma distinta de Wolf, elegendo cinco características que definem esse tipo de sociedade:

1. a autonomia relativa das coletividades camponesas frente a uma sociedade envolvente que as domina, mas tolera as suas originalidades;

2. a importância estrutural do grupo doméstico na organização da vida econômica e da vida social da coletividade;

3. um sistema econômico de autarquia relativa, que não distingue consumo e produção, e que tem relações com a economia envolvente;

4. uma coletividade local caracterizada por relações internas de interconhecimento e relações débeis com as coletividades circunvizinhas;

5. a função decisiva da mediação entre as coletividades camponesas e a sociedade envolvente.

De acordo com Mendras, esses cinco traços, ligados entre si, formam um modelo de coletividade que podemos denominar de comunidade rural. No entanto, essa relativa autonomia, bem como a integração parcial com o mercado, são aspectos das sociedades camponesas que não correspondem mais à realidade atual (WANDERLEY, 2000; ABRAMOVAY, 1992; SABOURIN, 2003 DUQUE & OLIVEIRA, 2003).

Esses estudos revelam que o camponês está cada vez mais integrado à sociedade e ao mercado, e que essa integração continua conflituosa, porém não descaracteriza completamente seu modo de vida. Há, também, o fato de indivíduos da cidade que foram morar no campo. Tanto a frequente inserção do camponês na cidade em busca de serviços e do mercado, quanto a ida dos citadinos para o rural, modificaram a paisagem social, de modo que, atualmente, fica difícil verificar esta relativa independência. Sendo assim, entendemos que não há barreiras delineadas entre comunidade e sociedade.

O meio rural espelha hoje o perfil social de cada uma das sociedades modernas avançadas, nele predominando, conforme o caso, a classe média, os operários, ou ainda certas categorias especiais, tais como os aposentados. Se as relações com a vida urbana não permitem que se fale mais em situações de isolamento e oposição, parece evidente que a resistência no meio rural expressa cada vez mais uma escolha que não é outra senão, como afirma Mendras, uma escolha por um certo modo de vida (WANDERLEY, 2000, p. 134).

É a problematização desse modo de vida que interessa particularmente este trabalho. Será que a idéia de interdependência entre comunidade e sociedade abre caminho para uma redefinição do que sejam sociedades camponesas, seu modo de vida e, por conseguinte, do que seja a identidade do camponês? De que forma os principais autores da sociologia rural podem nos trazer elementos conceituais para compreender a atualidade?

Redfield (1960) inspirou-se na hipótese do etnólogo norte-americano Kroeber, que define o camponês por sua inclusão em uma sociedade envolvente, para formular o entendimento das sociedades camponesas como um tipo específico de sociedade parcial constituída por uma cultura parcial. Na sua definição de camponês são evidenciados o apego a terra, os laços que formam a tradição e o sentimento pelas pessoas e pelo lugar:

Chamei camponês quem tem ao menos estas características em comum: sua agricultura está voltada para a manutenção (their agriculture is a livelihood) e é um modo de vida e não um negócio visando lucro. Vê-se um camponês como um homem que tem o controle efetivo de um pedaço de terra ao qual se encontra ligado há muito tempo por laços de tradição e sentimento (REDFIELD, 1960 apud ABRAMOVAY, 1992, p. 108).

O entendimento de Kroeber e Redfield acerca das sociedades camponesas como uma part-society with part-culture, ou seja, como uma sociedade parcial constituída por uma cultura parcial, tornou-se insuficiente. Com o intenso intercâmbio do mundo rural com a sociedade envolvente, tem-se cada vez mais uma miscelânea de valores que influencia ambos os lados. Segundo Wanderley (2000), se a ideia de cultura parcial já era relevante quando era possível verificar a relativa autonomia da comunidade em relação à sociedade, com a penetração do mundo rural no urbano e do urbano no rural, não se pode, de forma alguma, pensar em cultura fechada e independente. No entanto, há um modo de vida camponês que é verificado com muita ênfase no afeto a terra, nas relações sociais de proximidade e na tradição (BRANDÃO, 1999; WANDERLEY, 2000; SABOURIN 2005; WOORTMANN, 1985; DUQUE & OLIVEIRA 2003).

Já Mendras (1974), levanta a questão do pertencimento e do interconhecimento como itens fundamentais na composição de uma comunidade rural. “O camponês vive toda a sua vida e todos os aspectos desta em uma coletividade local, pouco numerosa, que é uma sociedade de interconhecimento, isto é, ele ali conhece todo mundo e todos os aspectos da personalidade do outro” (MENDRAS, 1974, p. 15). Para ele, cada membro está ligado aos demais por uma forte relação bilateral de conhecimento global e possui consciência de ser conhecido do mesmo modo. O conjunto dessas relações forma um grupo ou uma coletividade.

Em Shanin (1980, p. 64), encontramos a ênfase na família e na cultura tradicional como responsáveis por um modo de vida específico. Ele descreve o

campesinato como uma entidade social com quatro facetas essenciais e interligadas: a unidade familiar como a unidade básica multifuncional de organização social, trabalho na terra, uma cultura tradicional específica e diretamente ligada ao modo de vida das pequenas comunidades rurais. Para ele, a comunidade rural pode ser entendida como:

Um grupo humano localizado territorialmente, o qual se une por laços de interação social e interdependência, por um sistema integrado de legitimação, de normas e valores, e pela consciência de ser distinto de outros grupos que são similares (SHANIN apud MENEZES, 1996, p. 58).

Wolf (1955) chama atenção para outro aspecto relevante: a questão da comunidade rural como entidade reguladora de uma conduta estabilizadora.

A comunidade nivela (...) as diferenças de riqueza que poderiam intensificar as divisões de classe no interior da comunidade em detrimento da estrutura corporativa e, simbolicamente, reassegura a força e a integridade de sua estrutura aos olhos de seus membros (WOLF, 1955, p. 458).

James C. Scott (1976) e Samuel Popkin (1979) acirram um debate sobre a conduta do camponês. O primeiro defende a postura de que o camponês possui uma conduta moral e o segundo de que o camponês não age a partir de valores coletivos, mas através do uso de sua razão instrumental.

Scott (1976) expressa em sua obra “The moral economy of the peasant”, baseada em Chayanov, Wolf, Moore e Shanin, uma economia e uma sociologia da ética da subsistência do camponês que se baseia no princípio de “segurança em primeiro lugar” ou risco mínimo, e na noção de justiça permeada na rede de reciprocidade que se baseia nas relações de parentesco, vizinhança e amizade, bem como na noção de subsistência como uma reivindicação moral.

A idéia básica sobre a qual meu argumento se fundamenta é tanto simples quanto, eu acredito, poderoso. Ele emerge de um dilema central e econômico das unidades camponesas. Vivendo próximo à margem da subsistência e sujeito as imprevisibilidades do clima e das demandas exteriores, a unidade camponesa tem pouca manobra para um cálculo de maximização do lucro da tradicional economia neo-clássica. Tipicamente, o camponês cultivador procura mais evitar um risco que poderá arruiná-lo do que tentar um grande investimento que pode ser arriscado e fatal. Em termos de processo de decisão, seu comportamento demonstra aversão ao risco, ele minimiza a probabilidade subjetiva de perda máxima (SCOTT apud MENEZES, 2004, p. 03).

Segundo Scott, o princípio de segurança em primeiro lugar se aplica a todos os camponeses e mais precisamente aqueles que vivem numa linha de subsistência. Scott não entende o mundo camponês tradicional como igualitário, longe disto, o autor põe em ação mecanismos redistributivos que se fundamentam num conjunto de normas, entre as quais se encontra a de que, em momentos de catástrofe, os mais ricos protegem os mais pobres. Sendo assim, é no interior das comunidades, nos padrões de controle social e reciprocidade que estruturam a conduta diária, que a ética da subsistência encontra expressão social (ABRAMOVAY, 1990).

Enquanto Scott parte de uma lógica segundo a qual o camponês assume uma postura anti-risco diante das adversidades, Popkin em “The rational peasant afirma, categoricamente, que o cálculo camponês não tem uma lógica puramente defensiva. Com base no aporte teórico do individualismo metodológico, ele diz que o camponês calcula em termos de custo/benefício o conjunto de suas ações. Para Popkin, o camponês é capaz de investir e não deposita suas esperanças no sentido alheio de justiça e em seu cumprimento pela reciprocidade. O camponês monta suas estratégias a partir de seus interesses individuais, ele escolhe racionalmente as ocasiões em que investirá na comunidade ou em sua propriedade.

Os camponeses planejam e investem incessantemente, tanto no ciclo produtivo como em suas próprias vidas e atribuem grande prioridade aos investimentos da velhice. Além de decidir entre investimentos de curto e longo prazo, eles escolhem também, no curto e no longo prazo entre investimentos públicos e privados. Os camponeses, por um lado, decidem se vão investir em crianças, animais, terra e outros bens familiares ou individuais ou, por outro lado, se vão gastar seus excedentes através do ‘village’, em programas de seguro ou bem estar ou em melhoramento no ‘village’ (POPKIN, 1979, p. 423 apud ABRAMOVAY, 1990, p. 312-313).

Muitas críticas foram feitas às teorias de Scott e de Popkin. Quanto ao primeiro, umas das críticas mais contundentes afirma que sua teoria só se aplica em casos de camponeses inseridos em sociedades pré-capitalistas ou em situações atuais muito excepcionais. O sistema de solidariedade exposto por Scott coloca o camponês numa constante teia de subordinação e dominação a partir de uma conduta de aceitação voluntária da dependência.

Em suma, para Scott, a ação coletiva do campesinato, a aceitação voluntária de sua própria dependência, assim como a revolta contra a corrosão desta ordem desigual, mas solidária, fundamentam-se num código ético, cuja base material é a miséria e cujo resultado é a garantia de subsistência (ABRAMOVAY, 1990, p. 309-310).

Já o segundo, desvincula o camponês da rede de relacionamento de reciprocidade e da cultura da qual faz parte, percebendo-o como um indivíduo que apenas maximiza seus interesses e preferências (MENEZES, 2004).

É possível perceber que todas estas definições das sociedades camponesas e do camponês, se forem entendidas separadamente, possuem em si algumas limitações de ordem prática. Porém, de forma conjunta, elas nos oferecem elementos que ajudam a entender os principais aspectos do modo de vida e da identidade do camponês, a saber:

1. o sentimento de pertencimento e de interconhecimento; 2. a interdependência estabelecida entre os sujeitos; 3. o apego a terra, como lugar de vida;

4. a família como unidade básica de produção e consumo;

5. a cultura tradicional como responsável por um modo de vida específico voltado à reciprocidade e à solidariedade,

6. a comunidade rural como entidade coesa e reguladora;

7. o camponês como portador de conduta racional, porém permeada por uma lógica moral própria;

8. a inter-relação estabelecida entre a sociedade envolvente e a comunidade.

Os elementos, acima elencados nos fornecem os principais subsídios para adentrarmos na discussão sobre o modo de vida e a construção das identidades culturais na contemporaneidade. Vale lembrar que a comunidade rural camponesa e o camponês são aqui pensados como agentes sociais significativos que fazem parte dos processos sociais que atingem a sociedade de forma ampla.