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FEDERAÇÃO E RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS: A CONCEITUAÇÃO TEóRICA DA COORDENAÇÃO FEDERATIVA

DESENVOLVIMENTO FEDERATIVO E DESCENTRALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

2 FEDERAÇÃO E RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS: A CONCEITUAÇÃO TEóRICA DA COORDENAÇÃO FEDERATIVA

O federalismo é uma forma de organização territorial do Estado que define como as partes da nação devem se relacionar entre si. Trata-se de um modelo distinto do Esta-do unitário, a outra forma clássica de organizar politicamente o território. Nos países unitaristas, o governo central é anterior e superior às instâncias políticas locais, e as relações de poder obedecem a uma lógica piramidal. Nas Federações, ao contrário, vigoram os princípios de autonomia dos governos subnacionais e de compartilha-mento da legitimidade e do processo decisório entre os entes federativos.

Resumidamente, dois pontos distinguem os sistemas federativos no campo da teoria territorial do Estado. A primeira é que há neles mais de um governo agin-do legitimamente na definição e elaboração das políticas públicas. Desse moagin-do, mesmo havendo sempre algum grau de verticalidade e assimetria nas Federações, seu funcionamento envolve, em maior ou menor medida, relações contratualiza-das e negociacontratualiza-das entre os níveis de governo. Em outras palavras, a natureza do jogo federativo é produzir pactos entre seus componentes. Não por acaso, a própria palavra Federação deriva do latim foedus, que significa pacto (ELAZAR, 1987).

A segunda característica distintiva das Federações, em comparação aos Es-tados unitários, é que os governos subnacionais têm algum tipo de representação ou participação junto ao centro. Isto pode ser feito por via do Legislativo, em especial do bicameralismo; pela provocação de uma corte federal de Justiça, que pode se acionada para defender os direitos federativos dos pactuantes; e, ainda, pela atuação em fóruns compostos pelos Poderes Executivos dos entes federativos.

Essas duas características definem o principal objetivo de uma Federa-ção: compatibilizar o princípio de autonomia com a interdependência entre as partes. Tal combinação deriva não só de uma escolha pela forma como se governa o território, mas, principalmente, das condições que geram uma situ-ação federalista, em especial a existência de heterogeneidades que dividam uma

determinada nação, tais como: grande extensão ou diversidade territorial; co-existência de múltiplos grupos étnicos ou linguísticos; desigualdades regionais de caráter cultural, político ou socioeconômico; e/ou diferenças ou rivalidades no processo de formação das elites e das sociedades locais (BURGESS, 1993).

Qualquer país federativo instituiu-se desse modo para dar conta de uma ou mais dessas heterogeneidades. Se em um lugar em que houver tal situação não se constituir uma estrutura federativa, dificilmente a unidade nacional manterá a estabilidade social ou, no limite, a própria nação corre risco de secessão.

Para resolver os dilemas de ação coletiva envolvidos nessas heterogeneida-des, é preciso dar conta de uma segunda condição: construir uma ideologia na-cional, alicerçada por instituições, que se baseie no discurso e na prática da uni-dade na diversiuni-dade. Foi essa a resposta política que gerou todas as Federações, a despeito das diferenças de trajetória que marcam tais nações. É possível que em alguns momentos da história dos países haja dificuldades em fazer valer essa uni-dade na diversiuni-dade, que Elazar (1987) resume na fórmula self-rule plus shared rule. Mas, esse será sempre o desafio posto ao modelo federativo, e sua resolução passa pela discussão dos mecanismos de coordenação e cooperação federativa.

Em poucas palavras, a coordenação federativa é essencial, em qual-quer Federação, para garantir a necessária interdependência entre governos, os quais, por natureza constitucional, são autônomos. Essa questão envolve duas dimensões.

A primeira diz respeito à cooperação entre territórios, incluindo aí formas de associativismo e consorciamento. Trata-se da criação de entidades territo-riais, formais ou informais, que congregam, horizontal ou verticalmente, mais de um nível de governo. Com maior ênfase na experiência internacional, mas com crescente avanço no caso brasileiro, o associativismo territorial tem se de-senvolvido em torno de grandes dilemas de coordenação e cooperação entre os entes federados. Como exemplos, poderiam ser citados os arranjos montados em áreas de forte conurbação ou metropolitanização, em que são constituídas fortes externalidades negativas em uma grande área contígua. Também pode se verificar o uso desse instrumento em políticas de infraestrutura de maior envergadura, que atingem mais de uma circunscrição político-administrativa, como transporte intermunicipal ou saneamento básico. Exemplos nessa linha de articulação federativa ainda podem ser encontrados em áreas marcadas pela

“tragédia dos comuns” no plano ambiental, como acontece com as bacias hi-drográficas. E, por fim, formas de consorciamento e parceria aparecem em ações de ajuda mútua entre os entes federativos, tanto no que se refere à junção de esforços para lobby intergovernamental ou para ganhar maior capacidade de enfrentar um problema, como também em casos nos quais unidades mais desenvolvidas auxiliam outras com menor capacidade financeira ou de gestão.

Uma segunda dimensão da coordenação vincula-se à conjugação de es-forços intergovernamentais no campo das políticas públicas. Nas Federações é comum haver mais de um nível governamental atuando em um mesmo setor. Essa situação de interdependência, que em si já demanda instrumentos coordenadores, torna-se mais complexa por conta de três fenômenos.

O primeiro refere-se à expansão do Estado de Bem-Estar Social pelo mun-do, em um processo que costuma envolver um grau importante de nacionali-zação das políticas, para reduzir desigualdades ou criar padrões e normas que possam fortalecer a competição da nação com outros países. Esse processo é mais intrincado nas Federações, uma vez que os governos subnacionais exigirão maior respeito à diversidade e à sua autonomia, razão pela qual uma parte da literatura afirma que o desenho unitarista é mais favorável à expansão do Welfare State (OBINGER; LEIBFRIED; CASTLES, 2005).

Essa maior intervenção do governo nacional na criação e desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social encontra-se em reconfiguração desde o momento em que passou a haver um maior empoderamento e democratização no plano local, fenômeno que ganhou força e se expandiu em várias partes do mundo a partir dos anos 1970. Sendo esse o segundo aspecto que tem interferido na di-nâmica intergovernamental das políticas públicas, cabe frisar que a questão aqui não é a substituição da nacionalização pela descentralização. Ao contrário, o que está em jogo é como fazer as duas coisas ao mesmo tempo, principalmente, mas não exclusivamente, nos países mais desiguais. Tal conclusão deriva de vários es-tudos, entre os quais o trabalho coordenado por Alice Rivlin para a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que afirma:

Há tempos ocorrem debates sobre centralização ou descentralização. Nós preci-samos agora estar dispostos a nos mover em ambas as direções – descentralizando algumas funções e ao mesmo tempo centralizando outras responsabilidades cruciais na formulação de políticas. Tais mudanças estão a caminho em todos os países (OCDE, 1997, p. 13).

Soma-se a esses dois aspectos a necessidade cada vez maior de aumentar a eficiência (otimização) e a efetividade (impacto) da gestão pública em todo o mundo, ao mesmo tempo em que se deve fortalecer a accountability demo-crática, isto é, a responsabilização dos agentes públicos (PETERS; SAVOIE, 2000). Esses objetivos são mais complexos em uma Federação, pois nela as ações governamentais são bastantes imbricadas, mas os governos gozam de grande autonomia. Nesta estrutura, tanto a responsabilização como a melho-ria do desempenho dependem de um compartilhamento bem definido das funções governamentais.

Surge então o que Pierson denominou de dilema do shared decision making:

para melhorar o desempenho governamental, é preciso compartilhar políticas en-tre entes federativos que, por definição, só entram neste esquema conjunto se as-sim o desejarem. Desse modo, a expansão de políticas públicas compartilhadas em sistemas federativos é bem mais complexa, pois, “no federalismo, dada a divisão de poderes entre os entes, as iniciativas políticas são altamente interdependentes, mas são, de forma frequente, modestamente coordenadas” (PIERSON, 1995, p. 451).

A busca por coordenação entre os níveis de governo envolve “(...) mais do que um simples cabo de guerra, [uma vez que] as relações intergovernamentais requerem uma complexa mistura de competição, cooperação e acomodação”

(op. cit., p. 458). Portanto, a coordenação federativa bem-sucedida é uma mistu-ra de práticas competitivas e coopemistu-rativas, as primeimistu-ras relacionadas à participação autônoma dos entes federados no processo decisório conjunto, com barganhas e controle mútuo entre os níveis de governo, e as últimas vinculadas às parcerias e arranjos integrados nos planos territorial e das políticas públicas. Cabe frisar que certas formas de competição e cooperação podem deturpar os princípios originários da Federação. Isto pode acontecer em casos de competição extremada, como a guer-ra fiscal, e em modelos uniformizadores de coopeguer-ração, os quais, ao fim e ao cabo, reduzem a autonomia dos governos subnacionais (ABRUCIO, 2005).

A questão da coordenação federativa é estratégica para o desenvolvimento do Estado brasileiro e tem se tornado mais importante nas últimas décadas, por conta da combinação de democratização, descentralização e ampliação das políticas sociais. O caráter inovador deste trinômio pode ser mais bem com-preendido a partir de uma visão sintética sobre as heterogeneidades constitu-tivas de nossa Federação e a trajetória das suas relações intergovernamentais.

3 OS PROBLEMAS DE AÇÃO COLETIVA DO FEDERALISMO BRASILEIRO: