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RELAÇÕES ENTRE OS PODERES NO ATUAL CONTEXTO DE DESENVOLVIMENTO

3 TRAJETóRIA INSTITUCIONAL DO ESTADO BRASILEIRO E O LUGAR DO PODER EXECUTIVO

2.1 Medidas provisórias

A prerrogativa legislativa mais poderosa do presidente brasileiro é o seu poder de editar medidas provisórias, uma forma de decreto normativo, tal como previsto no Art. 62 da atual Constituição. Do ponto de vista estratégico, a principal ca-racterística da medida provisória (MP) é o fato de ela ter efeito legal imediato, embora seja necessária a sua posterior confirmação pelo Congresso. Nos últimos 20 anos, as regras do processo legislativo da MP sofreram duas modificações im-portantes, que se descreve brevemente a seguir.

No texto original da Constituição de 1988, a única condição imposta ao uso da MP era que ela somente poderia ser usada em situações de “relevância e urgência” – não havia qualquer restrição quanto ao seu conteúdo. Os procedimentos legislativos também não estavam explicitados. Originalmente, entendeu-se que para cada MP editada seria designado um relator do plenário do Congresso – Câmara e Senado em sessão conjunta – para fazer uma recomendação ou pela aprovação, ou pela rejeição da medida. A MP seria então votada no Congresso sem a possibilidade de emendas, sendo que partes do seu conteúdo poderiam ser rejeitadas. O prazo para deliberação era de 30 dias, ao fim do qual a MP perderia eficácia caso não tivesse sido votada.

Fosse por falta de aprovação ou por rejeição, a perda de eficácia da MP implicaria o Congresso regular os eventuais efeitos legais produzidos durante a sua vigência.

2. Sobre a questão da representação, ver os capítulos 1 e 2 do volume 3 deste livro.

Os congressistas regulamentaram o processo legislativo da MP em maio de 1989. Naquela oportunidade, alguns dos procedimentos inicialmente adotados foram modificados de forma substancial. Em vez de a análise da MP ser realizada por um relator de plenário, ficou definido que uma comissão mista ad hoc seria formada para se pronunciar a respeito da constitucionalidade e do mérito da medida no prazo de 20 dias. À comissão foi concedido o poder de propor texto alternativo ao original e as emendas de plenário passaram a ser permitidas.

A segunda reforma significativa do rito legislativo da MP ocorreu em se-tembro de 2001, por meio da Emenda Constitucional (EC) no 32. A principal motivação dessa reforma foi a prática intensa da reedição mensal de MPs não vo-tadas. Embora o texto constitucional previsse a perda de eficácia das medidas não votadas no prazo, havia o entendimento de que a reedição imediatamente após o prazo constitucional era procedimento válido.3 O problema é que, a partir de meados de 1994, o que era exceção tornou-se regra, não tendo sido raras medidas reeditadas por mais de 24 meses consecutivos. A EC no 32 proibiu explicitamente a reedição, mas alargou o prazo de tramitação das MPs para 60 dias, prorrogável apenas uma vez por igual período. A reforma incluiu outras alterações importan-tes. A apreciação conjunta no Congresso foi substituída pela em separado, com passagem inicial pela Câmara e com o Senado exercendo o seu papel tradicional de Casa revisora. Atrasos passaram a ser penalizados com o trancamento da pauta da casa em que estivesse tramitando a MP, quando esta não tivesse sido votada em até 45 dias da data da sua publicação. A regulamentação, pelo Congresso, dos eventuais efeitos produzidos pelo texto original de MP alterada, rejeitada ou não votada passou a ser opcional. Finalmente, a nova redação da Constituição proibiu explicitamente o uso de MPs para questões relativas à cidadania, aos direitos po-líticos, à legislação eleitoral, ao direito penal e processual civil, à organização do Judiciário e do Ministério Público e ao orçamento.

O uso intenso do instituto da MP pelos sucessivos governos (tabela 2) tem sido objeto tanto de análises acadêmicas como de críticas de vários setores da so-ciedade civil, além, é claro, dos partidos de oposição. Vários analistas veem no fato de a MP ter “força de lei”, importante vantagem estratégica para o presidente em relação ao Congresso. De acordo com Limongi e Figueiredo (2003, p. 65), “o executivo é capaz de alterar o status quo unilateralmente, criando um fato consu-mado que, em certos casos, torna a rejeição do decreto praticamente impossível”.

Nas palavras de Monteiro (1995, p. 66), “a prerrogativa da edição de MP (...) é essencial na determinação do resultado final da interação estratégica do executivo e (sic) a legislatura”. Mas, ao contrário do que estes autores sugerem, as vantagens

3. Conforme parecer publicado no Diário do Congresso Nacional de 1o de março de 1989 – citado em Limongi e Figueiredo (1999, p. 138).

estratégicas que a MP confere ao Executivo na determinação do resultado do pro-cesso decisório não são tão grandes, especialmente no que diz respeito à capacidade do Executivo de obter um resultado que, para o Congresso, seja pior que o status quo ante. Além da interferência na agenda parlamentar, no sentido de definir sobre o que o Congresso deve deliberar e quando, no máximo, devido à vantagem do iniciador (first-mover advantage),4 o Executivo pode obter uma política que é a melhor para ele entre aquelas que o Congresso prefere ao status quo.

A partir de análise mais minuciosa do efeito do poder constitucional de decreto5 sobre o resultado do processo decisório, Negretto (2004, p. 540-541) concluiu que, se o Legislativo pode alterar o decreto, o presidente é capaz de obter uma política fora do conjunto de políticas aceitáveis pela maioria legislativa somente se a validade do decreto não exigir a aprovação do Legislativo e aquela maioria não for suficiente para derrubar o veto presidencial. No Brasil, somente durante curto período – entre a promulgação da Constituição, em outubro de 1988, e a primeira regulamentação da MP, em maio de 1989 – os congressistas não puderam alterar os textos das MPs. Desde então, a primeira daquelas con-dições – a validade do decreto não exigir aprovação – somente existiu antes da EC no 32, em virtude da possibilidade de facto de reedição de MPs não votadas, o que transferia para o Congresso o ônus de formação de maioria para rejeitar a medida. Quanto à segunda condição apontada por Negretto, como no Brasil o veto presidencial requer maioria absoluta para ser derrubado, mesmo antes da EC no 32 não era possível para o Executivo impor ao congressista mediano uma política menos preferida que o status quo.6

Outra implicação da análise de Negretto é que, se a aprovação do Legislativo é necessária, a vantagem do iniciador diminui bastante quando o decreto precisa ser aprovado em duas casas legislativas com preferências diferentes, em lugar de apenas uma (2004, p. 541). A razão é que, no primeiro caso, o presidente precisa obter o apoio de duas maiorias potencialmente diferentes, enquanto que no se-gundo, somente de uma. A partir desse resultado, pode-se dizer que, ao transferir a deliberação da MP para as duas casas legislativas separadamente, a EC no 32 reduziu a capacidade de influência do presidente sobre o processo decisório.

4. Supondo que o presidente e um grupo de legisladores têm propostas diferentes, ao submeter a sua por meio de MP, e devido a ela ter força de lei, o Executivo coloca imediatamente a sua proposta em primeiro plano.

5. Por poder constitucional de decreto entenda-se a prerrogativa constitucional do Executivo de efetuar mudanças legais em políticas públicas sem prévia delegação do Legislativo (NEgRETTO, 2004, p. 535). A MP é um caso particular de poder constitucional de decreto. Não estão incluídos nesta categoria nem os decretos que regulamentam a exe-cução de leis (Art. 84, inciso IV, CF/88) nem os decretos administrativos (Art. 84, inciso VI, CF/88). No trecho que se segue, usa-se o termo decreto para descrever os resultados da análise de Negretto. O termo MP é usado na aplicação daqueles resultados ao caso brasileiro.

6. Pelo teorema do eleitor mediano (BLACK, 1948), desde que as preferências ideais dos legisladores possam ser alinhadas ao longo de um único eixo, a política escolhida pela maioria será a equivalente à mediana daquelas preferências.

À luz desses resultados, pode-se concluir da breve descrição da evolução do instituto da MP que a ação do Congresso tem sido orientada para preservar a sua capacidade legislativa. Ao regulamentar o processo legislativo das MPs, o Congresso reafirmou o seu poder de emenda. Por meio da EC no 32, resgatou a obrigatoriedade da sua aprovação para a validade das MPs e, com a regra de tramitação em separado, assegurou a cada casa legislativa o seu poder de veto.7 No geral, pelas regras da MP que prevaleceram na maior parte dos últimos 20 anos, e dado o limitado poder de veto do presidente, não se pode afirmar que o Executivo tenha sido capaz de sistematicamente aprovar políticas públicas que não estivessem entre as preferidas pelo Congresso.

Ainda assim, é válida a afirmação de Limongi e Figueiredo (2003, p. 65) de que a MP pode criar “um fato consumado que, em certos casos, torna a rejeição do decreto praticamente impossível”. Este parece ter sido o caso, por exemplo, da MP no 1.182, de 17 de novembro de 1995, que permitiu ao Banco Central financiar com dinheiro público fração substancial do déficit bilionário do Banco Nacional, de forma a viabilizar a sua aquisição por outra instituição financeira privada. Esta MP foi editada em um sábado e, na segunda-feira seguinte, quando o Congresso se reuniu, a transação financeira que viabilizava a venda do Banco Nacional já havia se consumado, tornando a sua reversão, senão impraticável, ao menos altamente custosa. Em um caso como este, a capacidade do Congresso de alterar a MP torna-se irrelevante de fato para assegurar que o Executivo não executa-rá política pública contexecuta-rária à preferência da maioria parlamentar. Note-se, porém, que a efetiva perda, pelos legisladores, da capacidade de alterar – ou rejeitar – uma MP depende de circunstâncias observáveis empiricamente, isto é, de a medida produzir consequências concretas e de estas serem de reversão muito custosa. Isso tudo em tempo curto o suficiente para que o Congresso não tenha condições de, por exemplo, rejeitar a medida de pronto. São fortes, no entanto, as indicações de que tais condições ocorrem apenas raramente, o que torna a relevância empírica da afirmação de Limongi e Figueiredo no mínimo questionável.