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República, instituições e democracia: o desafio do aprimoramento constante

Destaca-se, em primeiro lugar, a constatação de que a reflexão e a análise sobre a república deve estar referida ao conjunto de instituições que conformam o arcabouço institucional da democracia. Tal afirmação encerra um duplo signifi-cado. De um lado, embute a assunção de que, embora o ideário de construção da república esteja tradicionalmente associado a uma perspectiva de transformação cultural – e, no limite, ética – no âmbito das comunidades políticas, atualmente parece promissor centrar a análise nas instituições políticas. Estas, ao estabele-cerem marcos para a ação da cidadania e do próprio Estado, podem ser mais ou menos capazes de instituir o referencial republicano na gramática da vida social.

De outro, faz coro à percepção corrente de que a república se projeta hoje como um qualificativo da democracia, que é seu cenário inescapável. Sem se confundir com a democracia, é inegável que o referencial republicano acrescenta a esta uma qua-lidade fundamental, ao exigir que suas instituições se aprimorem constantemente no sentido de ecoar o interesse público.

Essa dupla constatação exige de analistas políticos e pesquisadores que ado-tem como objeto de reflexão sisado-temática não apenas o funcionamento rotineiro das diversas instituições políticas do país, mas também as transformações – miú-das ou de grande envergadura – por que estas passam, de modo que seja possível

avaliar se elas vêm se tornando mais republicanas. Muitos estudos comprovam, por exemplo, que, ao longo das últimas duas décadas, a democracia brasileira tem dado sucessivas provas de consolidação, seja do ponto de vista das regras instituídas ou da crescente adesão normativa dos cidadãos aos seus princípios.

Adicionalmente, o Brasil tem vivido não apenas a solidificação das instituições representativas, mas também a expansão de arenas participativas que possibilitam o envolvimento da sociedade nos processos de deliberação e implementação de políticas públicas, favorecendo o exercício da liberdade positiva tal como conce-bida pela tradição republicana.

A despeito desses avanços, cabe indagar se as instituições e os procedimentos da democracia têm sido capazes de refletir e dar vazão ao interesse público no país.

É notório o desgaste de instituições como os partidos, o sistema eleitoral, as relações intergovernamentais ou o compartilhamento do poderes de Estado. Sua credibili-dade tem sido abalada não apenas pelo desempenho insatisfatório, marcado, entre outros aspectos, por pragmatismo eleitoral excessivo, personalização do voto, (neo) populismo, ineficiência, morosidade, baixa qualidade dos serviços prestados. Outro conjunto de problemas que as afeta está relacionado à sua incapacidade de garantir o interesse público em primeiro lugar, expressa em fenômenos como corrupção, fisiologismo, falta de transparência, centralização do poder e insulamento do pro-cesso decisório em relação à sociedade. Conquanto sejam instituições basilares da democracia brasileira e que devem ser preservadas, seu aprimoramento envolve como desafio primordial o de torná-las mais republicanas.

Entretanto, o país também tem assistido a conformação de novidades rele-vantes em seu arranjo político-institucional. Destaca-se entre elas a judicialização da política, também observada em várias outras democracias contemporâneas.

Esse fenômeno vem sacudindo as interpretações mais sedimentadas sobre a dinâ-mica das relações entre os poderes de Estado e dividindo a opinião dos analistas.

Uns apontam o crescente recurso ao Judiciário para discutir temas políticos como uma ameaça as princípios democráticos e republicanos que garantem prerrogati-vas aos diferentes poderes do Estado. Outros veem esse fenômeno positivamente, como um tipo de inovação institucional que é benéfico à vida política e confere novos contornos às relações entre os poderes face às exigências contemporâneas para a defesa dos direitos da cidadania.

Na teoria da democracia, o recurso ao Judiciário é visto como ferramenta à disposição da cidadania para a defesa de direitos ameaçados pela ação do Estado.

Ao lado de princípios como a possibilidade de alternância no poder e a liberdade de expressão, o recurso à justiça compõe o leque de medidas que visam o respeito à minoria e caracterizam a política democrática como um jogo pautado em garan-tias mútuas pactuadas entre as partes. Contudo, observa-se que a principal regra destinada a regular a produção de orientações para a decisão sobre os assuntos

públicos – isto é, a regra da maioria – exclui sistematicamente alguns da vontade geral assim constituída. Esta minoria se vê limitada a mobilizar seu poder de veto ou a atuar a posteriori, recorrendo ao Judiciário. À medida que mais e mais aspectos da vida social são politizados e, pela dinâmica democrática, submetidos ao crivo da maioria, no balanço mais geral, o que assume a forma de interesse público é, de fato, um consenso que expressa uma vontade parcial, mesmo que majoritária.

Esse fracionamento institucional da vontade promovido pela regra da maio-ria é problemático do ponto de vista republicano, que exige, ao mesmo tempo, um contexto institucional de não dominação (PETTIT, 1997; BIGNOTTO, 2004) e a “implicação efetiva de todos na expressão e realização do bem comum”

(CARDOSO, 2004, p. 46). Ainda que a lógica democrática torne os consensos obtidos politicamente sempre provisórios, o referencial republicano lembra os atores políticos de que é sempre necessário buscar a construção de alvos mais uni-versalizantes. Neste sentido, a república cobra da democracia o aprimoramento constante do jogo político para promover a incorporação crescente de todo o con-junto de pretensões legítimas que compõe o intricado tecido social no processo de formação do interesse público.7

Nessa chave interpretativa, a judicialização da política pode ser compreen-dida como um movimento que permite compensar o “déficit republicano” do jogo democrático. Quando se apresentam ao Judiciário pleitos que questionam o mérito de medidas tomadas pelo Executivo ou pelo Legislativo, exige-se deci-sões que vão além do reconhecimento de direitos em favor de indivíduos, mas que podem representar a reversão no sentido de justiça de resoluções tomadas na arena política ou administrativa. É exatamente o que se passa nos casos em que se demanda judicialmente ao poder público a disponibilização de tratamentos ou medicamentos ainda não incorporados ao sistema de saúde, ou quando partidos políticos com representação no Congresso Nacional questionam judicialmente a constitucionalidade de leis que foram aprovadas pelo próprio Legislativo ou de políticas públicas adotadas pelo Executivo. A par de outros processos societais – incluindo mudanças processuais relevantes no âmbito do direito –, e a despeito de todos os custos que costumeiramente a judicialização da política é acusada de gerar, ela pode ser tomada como uma inovação institucional que contribui para a vida republicana, pois, além de garantir a defesa de direitos afetados pela ação polí-tica de maiorias, permite a aquisição de novos direitos em temas que, por falta de consenso na sociedade, o legislador não tem condições de enfrentar – como lembra Werneck Vianna (capítulo 1) –, ampliando, assim, o escopo do interesse público.

7. Integridade não significa ausência de conflito entre as partes constitutivas da comunidade política. Como afirma Bignotto (2004, p. 39), “na ótica republicana, o político se funda no conflito constante das partes que compõem o corpo político e ganha seus contornos institucionais e históricos na medida em que se chega a uma configuração de direito que os acolhe”. O desafio, neste sentido, é incorporar o conflito como fundamento da vida política que não pode ser reduzido à dimensão institucional, mas requer seu processamento na própria construção do bem comum.

Essas considerações visam reforçar a constatação referida anteriormente de que a institucionalização da república requer o aprimoramento – e até mesmo a radicalização, ainda que incremental – da política democrática, na direção da democracia como aprendizado republicano, defendida por Cohn, capaz de torná-la mais apta a refletir o conjunto do demos, a comunidade política em sua integri-dade. Neste sentido, se a república ainda se mostra como experiência incompleta no país, a tarefa que se apresenta para os analistas e os pesquisadores diz respeito não apenas a avaliar o desempenho presente das instituições básicas da democracia brasileira. Um passo importante a ser dado é também o de identificar as inovações institucionais que têm potencial para favorecer o enraizamento da vida republi-cana – e até mesmo prospectar os caminhos a serem trilhados neste sentido, em face das mudanças institucionais que se anunciam de tempos em tempos no país.