• Nenhum resultado encontrado

As questões previdenciárias nos juizados especiais federais cíveis 31 Os juizados especiais federais cíveis (JEFs cíveis) foram criados em 2001 para

RELAÇÕES ENTRE OS PODERES NO ATUAL CONTEXTO DE DESENVOLVIMENTO

6 OS LIMITES DA REFORMA: GARANTIAS PROCESSUAIS E EFETIVIDADE DOS DIREITOS

6.3 As questões previdenciárias nos juizados especiais federais cíveis 31 Os juizados especiais federais cíveis (JEFs cíveis) foram criados em 2001 para

Do outro lado, a Presidência da República (PR) encaminhou o Projeto de Lei no 3.337/2004, que cria uma Lei Geral de Regulação no Brasil, e o Senado Federal vem discutindo a PEC no 81/2003, proposta pelo senador Tasso Jereissati, que visa constitucionalizar os princípios norteadores da atividade das agências re-guladoras.30 Se adotadas, essas mudanças legislativas deverão ter efeitos positivos para a prevenção de litígios nas relações de consumo nas áreas reguladas, uma vez que institucionalizam a participação dos representantes dos usuários e fortalecem a atuação das ouvidorias nas agências.

A questão, porém, é que esse tipo de litígio judicial envolve o tema mais geral da concessão ao setor privado de serviços públicos básicos, como água e esgoto, que passaram a ser vistos e tratados como mercadorias, e não como integrantes do rol de direitos básicos de cidadania. Frente às demandas dos cidadãos, continuarão a ser suscitadas importantes tensões e contradições na tomada de decisões pelo Judi-ciário, entre os critérios baseados nos direitos fundamentais e nos objetivos sociais fixados na Constituição, de um lado, e os critérios que norteiam o modelo das pri-vatizações e são adotados pelas concessionárias e agências que as regulam, de outro.

6.3 As questões previdenciárias nos juizados especiais federais cíveis31

Os JEFs cíveis compartilham com as experiências anteriores dos juizados informais o mesmo modelo de resolução de conflitos, que não somente igno-rou as preocupações expressas pelos estudos nacionais sobre o acesso à Justiça, como também negligenciou os riscos apontados pelo movimento internacio-nal (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). O modelo apresenta três característi-cas problemáticaracterísti-cas: i) a delimitação das causas, para fins de competência, pelo seu valor ou por sua menor complexidade; ii) os princípios de funcionamento adotados, que não levam em conta as especificidades dos conflitos que se lhes apresentam; e iii) a lógica individualizada do tratamento dispensado aos lití-gios, que adota soluções particularizadas, fragmentando conflitos sociais que, se vistos em conjunto, apontariam para soluções uniformes e gerais. Mas os JEFs introduzem inovação importante, uma vez que se colocam no campo dos conflitos diretos entre os cidadãos e o Estado por direitos sociais, e interme-diam as relações entre indivíduos e agências estatais responsáveis pela adminis-tração de prestações sociais.

Entretanto, é preciso reconhecer que essa intermediação se dá em um con-texto de grande desigualdade entre as partes. Os JEFs cíveis colocam, de um lado, organizações administrativas de grande porte, como o INSS, à qual cabe a determinação do sentido dos direitos para os casos concretos e a formulação dos cálculos dos benefícios, mas que atua segundo uma lógica fiscal de gestão de recursos e, além do mais, detém informações, recursos e pessoal especializado nos processos judiciais. Do outro lado da disputa, colocam cidadãos muitas vezes desprovidos de recursos materiais e de informação suficientes para reivindicarem seus direitos no mesmo patamar de condições, no que podem ficar prejudicados na eventual contestação das bases de cálculo e de gestão do INSS. Trata-se, pois, de desequilíbrios mais amplos do que aqueles que podem ser superados pela as-sistência jurídica gratuita.

Nesse modelo, a justiça social parece figurar em segundo plano em rela-ção à celeridade dos processos e ao descongestionamento dos tribunais comuns.

Desde seu primeiro ano de funcionamento, os JEFs têm recebido um número avassalador de processos referentes a direitos sociais, sendo 90% deles de natureza previdenciária (CJF, 2003). Em 2002, deram entrada cerca de 350 mil processos.

Um ano depois, esse número triplicou, passando de 900 mil ações. Em 2004, eles ultrapassaram a marca de 1,5 milhão, mantendo-se até hoje acima da marca de 1 milhão de processos distribuídos por ano.

Essa “explosão” de processos ajuizados nos JEFs parece não deixar dúvidas quanto a sua capacidade de atender demandas que anteriormente nem chegavam à Justiça. Tal capacidade se reafirma quando vistos os números de pedidos nega-dos pelo INSS, como mostra a tabela 9, que traz danega-dos de 2004, ano em que o número de processos distribuídos nos JEFs atingiu seu pico.

TABELA 9

Quadro comparativo entre pedidos negados no INSS e processos distribuídos nos JEFs – 2004

Região1 Negados no INSS Distribuídos nos JEFs Distribuidos nos JEFs/negados no INSS (%)

1a Região 555.263 451.046 81

2a Região 122.894 178.815 146

3a Região 390.897 640.988 164

4a Região 329.969 145.254 44

5a Região 241.856 117.544 49

Total 1.640.879 1.533.647 93

Fontes: CJF (2007) e Boletim Estatístico da Previdência Social.

Nota: 1 A divisão das regiões segue a da Justiça federal.

Diante desse número excessivo de processos, no entanto, os juízes coloca-ram em evidência as carências e os dilemas institucionais que limitam suas ações no tratamento das questões previdenciárias.33 Os dilemas são de dois tipos: um, entre a diversidade e a uniformização dos procedimentos e da aplicação dos direi-tos; outro, entre as relações de cooperação e de conflito entre os JEFs e as agências estatais responsáveis pela administração dos direitos previdenciários.

O dilema entre diversidade e uniformização se faz sentir especialmente no momento de delimitação das causas para fins de competência dos JEFs cíveis, no que os juízes podem aceitar ou não causas com valores maiores do que 60 salários mínimos. Uma das principais tentativas de uniformização dessa situação tende para a não aceitação de causas com valores que ultrapassem a alçada estabelecida.34

O Enunciado 49 do FONAJEF estabeleceu que o juiz pode controlar o valor da causa a qualquer momento em que verificar que o pedido ultrapassa 60 salários mínimos. Se o magistrado segue o enunciado, o cidadão que não sabe que sua causa ultrapassa o valor estabelecido pode esperar muito tempo até que o fato seja verificado, em função das deficiências das contadorias. Após isso, ou ele é encaminhado para uma vara comum ou é submetido a propostas de acordo com o INSS para renunciar ao excedente, caso queira solucionar seu problema em um tempo menor. Mas, se o magistrado não segue o enunciado, ele deve delimitar a causa de modo eficiente no momento de entrada. Se não conseguir,

33. Essas carências e dilemas encontram-se expressos em diversos relatórios de congressos e fóruns nacionais sobre os JEFs. Os dois primeiros são do CJF (2003, 2004) e os demais são do anual Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais (FONAJEFs) da Ajufe (2004, 2005, 2006), disponível em: < www.ajufe.org.br>.

34. Alguns juízes aceitam por entenderem que o menor valor de uma causa previdenciária não lhe retira a complexi-dade de tratamento. Outros juízes, no entanto, encaminham o cidadão para varas da justiça comum, ou lhes apresenta a possibilidade de renunciar expressamente ao excedente, quando já não tomam por implícito que o cidadão sabe que está renunciando ao excedente ao entrar no JEF (renúncia tácita). A Súmula 17 da TNU afastou a possibilidade de aplicação da renúncia tácita, mas os magistrados podem seguir ou não a recomendação, podendo transferir a respon-sabilidade para os cidadãos ou tendo que enfrentar as dificuldades de suas contadorias e gerar lentidão processual.

sujeita o cidadão à propositura de acordos com o INSS. Se o cidadão não aceita, o juiz tem que julgar a favor de uma das partes. Se julgar a favor do cidadão, sabe que o INSS provavelmente entrará com recurso, dando mais trabalho e lentidão aos JEFs, que terão que reutilizar os serviços das contadorias para verificação dos valores. Se o INSS não entrar com recurso, o valor pode ser pago em precatórios, no que se esvai a promessa da execução em 60 dias.

O dilema entre a cooperação ou conflito com o INSS, por sua vez, traz outras situações controversas para os magistrados. A combinação do excesso de processos com a complexidade dos direitos pleiteados e com o modelo inadequa-do para o tratamento desses direitos leva os magistrainadequa-dos a recorrerem a uma série de medidas, que passam a construir uma relação de cooperação e de diálogo com as agências. Embora tal tentativa possa ter o intuito de “conscientizar” as agências acerca de um melhor tratamento aos cidadãos e aos seus direitos, as tentativas de cooperação se dão mais em busca da celeridade e eficiência dos procedimentos, no que os juízes podem incorporar as concepções das agências, mais prejudicando os cidadãos do que defendendo seus direitos. Por outro lado, quando os juizados op-tam por conflitar com as agências em favor dos cidadãos, a efetivação dos direitos fica sujeita às fragilidades da infraestrutura e do modelo dos JEFs cíveis.

As relações de cooperação entre os JEFs cíveis e as agências estatais podem se dar de diversas maneiras. O INSS pode auxiliar os JEFs nos serviços com as contadorias e perícias, instalando pequenos postos ou enviando servidores para trabalhar nos juizados. Tais medidas vêm suprir as deficiências de infraestrutura dos JEFs e evitar que se acumulem processos parados à espera de cálculos, permi-tindo a celeridade no andamento processual. Por outro lado, o próprio réu fica responsável pela feitura dos cálculos e pelas perícias para a produção das provas, o que pode constituir um procedimento injusto para o cidadão. Ainda neste tema, os JEFs também podem, caso utilizem os contadores do INSS ou as suas bases de cálculo, cooperar com a agência em função dos índices utilizados para os cálcu-los dos benefícios e da utilização do fator previdenciário. Outra maneira do JEF favorecer o INSS, ainda que não tenha o intuito de assim o fazer, é proferindo sentenças ilíquidas, por meio das quais se dá abertura para recursos por parte do órgão administrativo, fazendo o cidadão esperar ainda mais para obter seu benefício. Por fim, os JEFs cíveis podem favorecer as agências com a realização das audiências de conciliação, no que a feitura de acordos permite que o INSS proponha valores menores aos cidadãos, sob o argumento de que assim poderão receber o benefício mais cedo.

Por outro lado, têm-se as consequências das relações de conflito. O JEF pode ir contra a agência estatal, ao permitir e sentenciar causas maiores que 60 salários mínimos, condenando a entidade a pagar o valor, nem que seja em precatórios.

Ainda que tal atitude vá a favor do cidadão, o INSS poderá entrar com recurso e

ainda ter respaldo na lei para ganhar sua causa, pois, em tese, não se pode admitir nos JEFs cíveis causas maiores que 60 salários mínimos. Os JEFs cíveis podem tam-bém ir contra as agências, ao utilizar índices mais favoráveis aos cidadãos ou não calcular os benefícios com o uso do fator previdenciário, mas aqui também se abre a possibilidade do recurso.

Assim, os JEFs cíveis constituem bons exemplos de resultados positivos e tam-bém dos limites das reformas que buscam aumentar a eficiência do Poder Judiciário.

Os dilemas apontados dão ideia de como a efetivação dos direitos sociais de cidada-nia fica sujeita a um conjunto de condições materiais e interpretativas cujas saídas nem sempre são favoráveis ao entendimento e à participação efetiva dos cidadãos.

Seus direitos passam a ser negociados com as agências estatais quando estas podem inserir nos JEFs sua própria lógica de tratamento dos direitos sociais, resultando em uma ampliação do acesso à Justiça que é problemática e dúbia. Embora a questão do acesso esteja aparentemente resolvida, visto o alto número de processos distribu-ídos, a forma como são tratados os direitos nestes juizados e a forma como eles são realizados colocam em xeque as possibilidades de se ter nos JEFs um modelo para a realização, ao mesmo tempo eficiente e efetiva, dos direitos de cidadania.