• Nenhum resultado encontrado

O federalismo compartimentalizado 2

DESENVOLVIMENTO FEDERATIVO E DESCENTRALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

4.1 O federalismo compartimentalizado 2

Uma parte da Federação brasileira tem trilhado nos últimos anos uma forma compartimentalizada de funcionamento. A principal característica desse modelo é o predomínio de uma lógica intergovernamental que enfatiza mais a separação e a demarcação entre os níveis de governo do que seu entrelaçamento. O modelo descentralizador autonomista foi a causa mais importante desse fenômeno.

É claro que a descentralização tem produzido resultados positivos ao país.

Isto pode ser aferido pelas inovações administrativas feitas no plano local, que depois foram incorporadas por outros governos, e pela pressão por maior demo-cratização no nível municipal. Para além dessas conquistas, é inimaginável que o

2. Este subtópico é baseado em Abrucio (2005), Abrucio, Sano e Sydow (2010).

Brasil volte ao modelo centralizador, observada a impossibilidade de governar a nossa complexa conformação social e territorial a partir de Brasília.

Esse processo de descentralização, com atribuição de poder e autonomia aos municípios, gerou resultados bastante díspares pelo país, reproduzindo, em boa medida, a própria desigualdade que marca a Federação brasileira.

O fato é que os governos municipais ganharam autonomia, mas muitos deles não tinham condições administrativas, financeiras ou políticas para usufruir da nova condição. Não seria possível, portanto, estabelecer uma maior des-centralização sem a construção de mecanismos coordenadores.

O resultado imediato do modelo federativo da CF/88 foi, em linhas gerais, uma descentralização mais centrífuga, constituindo o que Daniel (2001) deno-minou de municipalismo autárquico. Este modelo partiria da suposição de que as prefeituras seriam capazes sozinhas de formular e implementar todas as políticas públicas. Isto é irreal, não só porque muitas localidades não têm capacidade orga-nizacional para assumir tais ônus, como também em razão de muitos problemas serem de natureza intermunicipal, interestadual ou até mesmo de impacto nacio-nal. De qualquer modo, a mentalidade autárquica gera uma situação em que a cooperação só é aceita quando os custos da não cooperação são muito altos, como no caso da gestão das bacias hidrográficas. Do contrário, a negociação exige mui-tos incentivos institucionais para produzir coordenação e colaboração.

O municipalismo autárquico é resultado de uma série de incentivos institu-cionais, nem sempre tão explícitos, colocados aos chefes dos governos subnacio-nais. Em primeiro lugar, os governantes locais não querem ceder poder sem ter certeza sobre as consequências para sua carreira política e para a própria autonomia da cidade. Além disso, do ponto de vista eleitoral os ganhos e as perdas só serão computados no plano municipal. Ainda no que se refere à competição partidária, é bom recordar que muitos prefeitos concorrem a deputado estadual ou federal contra os alcaides das municipalidades vizinhas. E, por fim, a competição pode ser mais interessante do que a colaboração. Isto acontece se não houver uma arbitra-gem federativa efetiva, como no caso da guerra fiscal, e se os custos puderem ser repassados a outros mantendo os benefícios colhidos, tal qual ocorre na “política das ambulâncias”, quando as prefeituras compram veículos para “invadir” a cidade vizinha, sem precisar arcar com o ônus do financiamento do hospital.

No fundo, nessa situação federativa o comportamento cooperativo somente será preponderante se ocorrerem, isolada ou simultaneamente, três coisas: a existência de uma forte identidade regional, alicerçada em instituições duradouras, de caráter estatal ou societal; uma atuação indutiva do governo estadual ou federal, oferecendo incen-tivos para a colaboração ou garantindo recursos apenas se houver parcerias; e, ainda, caso haja fóruns ou árbitros federativos que tomem decisões em prol da cooperação.

Mas a dificuldade cooperativa não se encontrava apenas na lógica municipalis-ta. Governos estaduais estavam, no primeiro momento da redemocratização, pouco propensos à cooperação. Entre 1982 e 1994, vigorou um federalismo estadualista no qual os estados puderam repassar, irresponsavelmente, seus custos financeiros à União, ao mesmo tempo em que a municipalização crescente reduzia suas respon-sabilidades em termos de políticas públicas (ABRUCIO; COSTA, 1999). Com o Plano Real, os governos estaduais entraram em forte crise financeira. O resgate das dívidas estaduais pela União enfraqueceu muito os governos estaduais, reduzindo o comportamento predatório dos estados, claramente delimitado pelas imposições ins-titucionais contidas na Lei da Renegociação das Dívidas (Lei Federal no 9.496/1997) e na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar Federal no 101/2000).

Se houve uma mudança positiva na relação com a União, reduzindo o comportamento predatório, isto não se pode dizer da ação coordenadora dos es-tados junto aos municípios. No período entre 1995 e 2006, atividades coorde-nadoras ou de entrelaçamento com os governos locais não foram, no geral, uma prioridade, pois se imaginava que tais ações poderiam implicar mais gastos, em um momento de contenção de despesas (ABRUCIO; GAETANI, 2006).

Os governadores enfrentam dilemas quanto ao custo das transações fe-derativas, para atuar na coordenação dos municípios. Isto porque eles têm de induzir ou participar de ações intermunicipais em regiões em que pode haver aliados e adversários. Como dividir politicamente o bônus e o ônus dessas ações? Haveria, então, três possibilidades para os governos estaduais: não atu-ar em prol da colaboração intergovernamental; fazê-lo apenas em lugatu-ares com maioria governista; ou apoiar iniciativas de maneira informal, evitando uma ação institucional mais duradora, de modo que o Executivo estadual possa abandonar esses acordos com as cidades, caso ocorra um impasse político.

Mesmo havendo dilemas para a cooperação, é importante ressaltar que surgi-ram no último quadriênio algumas experiências de coordenação estadual junto aos municípios. Entre os casos em que isto ocorreu institucionalizadamente, destacam-se o Acre, o Ceará, o Espírito Santo e o Mato Grosso. Embora se trate de um fe-nômeno embrionário, talvez uma nova realidade federativa esteja se constituindo.

Aparentemente, esse processo resulta de dois aspectos. O primeiro é a superação do ponto crítico do ajuste fiscal, com os governadores voltando a atuar na produção de políticas públicas, o que leva necessariamente a propor parcerias com as cidades, dado que houve municipalização em vários setores. Além disso, houve um incre-mento, nos últimos anos, de uma série de estímulos ao entrelaçamento intergover-namental, seja pela via do associativismo territorial, seja no desenho das políticas públicas. Isto começa, paulatinamente, a afetar a forma de governança dos estados.

O governo federal não tinha igualmente muitos incentivos à cooperação logo após a CF/88. Havendo perdido recursos e poder, adotou a estratégia de simples-mente repassar encargos, principalsimples-mente aos municípios. Além disso, em termos estruturais, não é simples montar parcerias com os governos subnacionais pelo país afora, seja pela dificuldade de relacionamento com governantes oposicionistas, seja pela necessidade de arbitrar as divergências entre os membros da própria coalizão governista, que apoiam o presidente, mas são adversários no plano local.

Para que a União evite ou pelo menos reduza o dilema federativo, é funda-mental, antes de mais nada, adotar um modelo de intensa negociação e barganha.

Afinal, o não envolvimento dos governadores e prefeitos leva ao fracasso dos proje-tos, seja na formulação, seja na implementação. Outra maneira de evitar um imbró-glio político é fazer que existam regras bem claras nas políticas públicas, de modo que elas dêem universalidade às ações junto a estados e cidades, diminuindo a quei-xa de favorecimento político e facilitando a adesão de oposicionistas aos programas do governo federal. Além disso, a criação de arenas ou instituições federativas mais estáveis pode favorecer formas sólidas e confiáveis de parceria e consorciamento.

A partir do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), a União começou a perceber os problemas de sua visão meramente defensiva sobre a Federação, em particular na área da saúde pública e, em menor medida, na educação. Essa cons-ciência sobre a necessidade de maior coordenação federativa ampliou-se nos dois mandatos do presidente Lula, migrando para outras áreas, como assistência social e segurança pública. Neste período, a adoção de novas institucionalidades terri-toriais ganhou força, com a edição, por exemplo, da Lei dos Consórcios Públicos (Lei Federal no 11.107/2005). Esses avanços convivem, entretanto, com dificulda-des de negociação e barganha federativa, muitas vezes porque o Executivo federal continua tendo uma percepção bastante centralizadora da Federação, e em outras pela falta de arenas ou árbitros para dirimir os conflitos intergovernamentais.

O fato é que o aprendizado institucional da Federação brasileira, em maior ou menor velocidade, tem levado os níveis de governo a entender os limites do modelo descentralizador meramente municipalista e da prática intergovernamental com-partimentalizada, com cada nível de governo agindo apenas nas suas “tarefas”, sem entrelaçamento em problemas comuns (ABRUCIO, 2005). Isto tem levado a altera-ções no plano das políticas públicas, em especial com adoção do conceito de sistema, e no aumento de estruturas formais e informais de cooperação intergovernamental.

É preciso ressaltar, no entanto, que cooperação intergovernamental, vertical ou horizontal, não pode ser feita em detrimento da autonomia e da capacidade de barga-nha dos entes. O desafio de instituir um federalismo mais cooperativo no Brasil está em fortalecer os incentivos à parceria e ao entrelaçamento, mantendo um jogo intergo-vernamental que dê participação e capacidade de negociação aos estados e municípios.