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I – O fetiche da propriedade

Esta palavra é pouco usada nas dis- cussões políticas, mas está muito freqüen- te na vida cotidiana, onde é conhecida como “feitiço”.

Se buscarmos em qualquer dicio- nário, vamos encontrar o básico desta definição. Fetiche: “Objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou produ- zido pela natureza, ao qual se atribui po- der sobrenatural e se presta culto”.

De forma simplificada, podemos dizer que, o fetiche é uma invenção hu- mana, ou criado por força da natureza que, pelo poder da imaginação, acrescen- ta-se aos objetos um poder que estes não tinham, a partir disso, passam a dominar as relações sociais.

Esta relação com o objeto se dá de múltiplas formas. Ao tratar do assunto, (ao contrário de Feurbach que tomou Deus como invenção humana, como pro- duto de sua imaginação ou objetivação), Marx, identificou nos produtos do traba- lho, a mercadoria, como referência, para demonstrar que nela se esconde algo “misterioso”, pois ela é “cheia de sutile- zas metafísicas e argúcias teológicas.”1

Significa então, que a mercadoria, contém em si uma força “estranha”, cri- ada pelo trabalho e pela capacidade hu- mana. A partir da sua constituição, a mer- cadoria torna-se “misteriosa” simplesmen- te por encobrir as características sociais do próprio trabalho, diz Marx, logo, ao

ocultar as características do trabalho em- pregado para produzi-la, ela adquire uma força que determina as próprias relações sociais.

Marx procurou interpretar através da “teoria do valor”, onde percebeu que, um objeto tem duplo valor: de uso e de troca.

Ao ir para o mercado, o objeto per- de o valor de uso e adquire um valor de troca. Este valor a princípio é calculado pelo “tempo social” gasto para produzi- lo. Como por exemplo, uma blusa de lã feita manualmente e um armário que um artesão faz, preparando ele mesmo a madeira. Se o armário levou 10 dias para ser feito e a blusa 8 dias, significa que, ao se comparar os objetos, os valores são diferentes, então, um dos dois merece um complemento no pagamento.

Com o passar do tempo ocorreram duas grandes mudanças: a) os produtos deixaram de ser produzidos individual- mente e muitos objetos foram feitos com a matéria prima produzida por outras pes- soas, sendo também vendidos por outras tantas, e ficou difícil calcular o tempo social gasto para produzir; b) Surgiu o dinheiro, e com isso um dos lados da tro- ca antiga, deixou de ser produto concre- to. O dinheiro tem um valor abstrato, pois não se sabe quanto tempo social existe em uma nota de R$ 1 real.

Mas o dinheiro também é uma mer- cadoria, porém com um poder “mágico” abstrato. Ele comanda as relações entre as pessoas. Qualquer coisa que não seja para uso próprio, ao ser produzida, tem o objetivo de ser trocada por dinheiro,

porque somente através dele é que se pode adquirir outro objeto que está na vitrine da loja, que faz as pessoas dialo- garem sobre ele; pensarem intensamente como se estivessem apaixonadas, modi- ficarem até mesmo os hábitos de com- portamento e de consumo se preciso for, para economizar e adquirir aquela mer- cadoria que tem um valor de troca esta- belecido em preço.

Então se forma o fetiche. Ao ver- mos o objeto na vitrine, seja um tênis ou uma camisa, vemos a mercadoria e não o processo de sua produção. Por isso as relações no mercado vão se dar entre as coisas e não entre as pessoas.

Se não vejamos, quando alguém vai à loja onde está a mercadoria exposta, dirige-se diretamente à vitrine e não ao dono, ou ao vendedor. O comprador quer encontrar-se com o produto e não com as pessoas. Essas, pouco interessa, ser- vem de meio para o encontro. O vende- dor, tem nome, problemas pessoais etc. mas isto tudo some. Tanto o vendedor quanto o comprador estão ali por causa das mercadorias, sem elas não haveria aquele encontro. Um tem o tênis para vender, o outro tem o dinheiro para com- prar. De onde vieram? Não importa.

Como este fetiche ocorre em nossa organização? Vejamos alguns dos diferen- tes aspectos.

a) Na propriedade individual da terra.

A propriedade da terra é um di- reito constituído pela moral e garantido pela lei.

Embora ela não seja paga em dinheiro pelo beneficiário da re- forma agrária, mas este empre- ga um tempo social determina- do para conquistá-la que lhes dá o direito a ser dono.

Embora a terra seja um bem da natureza, está no mercado como qualquer outro objeto, e o título de propriedade é a autorização para trocá-la por dinheiro, ou mesmo que não seja colocada à venda, o proprietário tem nela o objeto do fetiche, criado pela imaginação na diversidade de planos que faz.

Atribui-se à propriedade indivi- dual um poder sobrenatural. Ini- cialmente o latifundiário mobili- za todos os poderes humanos para garantir que a propriedade continue intacta. Depois de con- quistada e dividida, para que “ninguém pise” sobre ela, o pe- queno proprietário, cerca-a com arame e passa a vê-la como va- lor de troca, ou reserva de valor, herança etc.

Este poder sagrado dado à pro- priedade é que atrai o acampa- do. Dizer que ele não tem direi- to a seu lote, é como alguém pre- gar, em uma Igreja, que Deus não existe! De imediato, os que pensam diferente, vão para ou- tro local, onde se confirme o seu imaginário.

E por fim, o fetiche do valor de troca da propriedade da terra,

baseado no preço de mercado está sempre presente. Cada um calcula quanto deve valer o seu

lote se quiser trocar por dinhei-

ro.

Esta contradição é oriunda do modelo de reforma agrária insti- tuído pelo Estado e o mercado no capitalismo. Não é permitida a estatização da terra, funda- mentalmente porque a proprie- dade dela tornou-se simples mer- cadoria. Então ela adquire um valor de troca regional, que não se apega à quantidade de benfeitorias, fruto do trabalho, mas ao preço estabelecido por medidas, hectare, alqueire etc.

b) No recebimento dos créditos

O crédito é dinheiro, e como tal tem um valor abstrato. Mas ele, a partir do recebimento, tem va- lor de troca absoluto.

Por que em primeiro lugar, in- duz a desconfianças e a desa- venças internas a partir de sua liberação?

Porque as mercadorias (o dinhei- ro e o objeto sonhado, roupa, colchão etc) “querem se encon- trar” e, cada “credor”, ( assen- tado) precisa levar a sua parte ( o dinheiro) para o mercado. Então, com a mercadoria dinhei- ro na mão, o imaginário dá vida aos objetos que passam a influir nas relações sociais e políticas e perde-se a oportunidade do pla- nejamento e do crescimento co-

letivo.

Deixa-se não só de perceber o tempo social gasto para produ- zir aquelas mercadorias adquiri- das, como também, há muita re- jeição para fazer um novo bem de uso com tempo social ou tra- balho coletivo.

c) Na produção e venda da pro- dução.

A produção agrícola também, ao ser trocada por dinheiro, vira mercadoria. Perde com isso o poder de competição moral como alimento, que não deveria ser mercadoria.

Quem produz o alimento não o vê como tal, mas como uma mer- cadoria que deve ser trocada por dinheiro, que possibilitará a aqui- sição de outra mercadoria sonha- da.

A produção então não é vista como um meio de combate e enfrentamento, mas apenas como uma possibilidade de ir e conse- guir espaço no mercado. Logo, a escolha do que plantar se funda- menta primeiramente na potencialidade de lucro. Neste sentido, o uso dos mesmos insumos e da matriz tecnológica do agronegócio, é a perda da no- ção do significado do alimento como relação social e política. Isto influi diretamente nas rela- ções sociais. Ou seja, a socieda- de que compra não diferencia, nem percebe que benefícios a

reforma agrária lhes traz.

d) No desejo e o prazer individu- al da compra

O desejo de liberdade diz respei- to a negação de aplicar coletiva- mente o tempo social para pro- duzir novas mercadorias ou bens de uso.

Como as relações se dão entre as mercadorias e não entre as pessoas, ou seja, as pessoas são intermediárias para levar as mer- cadorias ao mercado, as relações humanas “perdem” a importân- cia, e, a relação entre mercado- ria e dinheiro, ganha força. Em uma sociedade de consumo exacerbado, fazer pelos outros no coletivo ( compras por exemplo) ou impedir que alguém se colo- que como intermediário, para, ir ao mercado trocar mercadorias, é tirar dele o direito sagrado de se relacionar com a “divindade” que há nas mercadorias. Fazer compras no capitalismo é um pra- zer, e cada um quer ter o seu. Isto ocorre porque, para o capi- tal, antes de ser uma sociedade de pessoas, há uma sociedade de mercadorias que precisam se re- lacionar para gerar lucro. Daí vem um dos aspectos da resistência em relação à cooperação.

e) Na perda do espírito da convi- vência social.

A cooperação no sentido mais primário frente a propriedade da

terra, é vista como ameaça aos planos individuais e não como meio para diminuir os sacrifícios e aumentar as facilidades. Contrariamente ao operário que produz lado a lado com outro operário, onde a sua obrigação diária está determinada pelas ho- ras trabalhadas, o restante está livre para visitar as mercadorias que pretende comprar no fim do mês com o salário que receberá. O camponês cooperado tem ou- tras obrigações, com reuniões, planejamentos, trabalho voluntá- rio etc. que ocupa seu tempo e o impede de exercer a sua “liber- dade”.

Então se revolta toda vez que a coletividade limita seus interes- ses particulares e por isso, busca sempre alternativas de individu- alizar-se e isolar-se cada vez mais.

Podemos então concluir este tó- pico, chamando a atenção para a necessidade da mudança da fi- nalidade do trabalho. Se ele está voltado para a produção de mer- cadorias, as relações sociais es- tarão sempre revestidas do feti- che da troca material por dinhei- ro.

Se ele for visto como meio de transformação da sociedade, as ações sejam elas no campo da produção, na educação nas es- colas ou no esforço da preserva- ção ambiental, ganham o signifi-

cado de meios de combate ao poder da classe dominante. A superação do fetiche ou deste poder que as coisas tem sobre as pessoas, como se tivessem uma força sagrada que as domina, somente virá pelo avanço da consciência da inutilidade desta relação. Como bem disse Marx: “...O reflexo religioso do mun- do real só pode desaparecer, quando as condições práticas das atividades cotidianas do homem representem, normal- mente, relações racionais cla- ras entre os homens e entre este e a natureza...”2

Ou seja, somente no dia em que as pessoas conseguirem livremen- te estabelecer, através da coope- ração e da convivência, o con- trole do que fazem e, planeja- rem conscientemente a sua uti- lidade, estarão em condições de superar o fetiche e deixar de ser dominados pelas mercadorias. Somente se conseguirá retirar o fetiche da mercadoria quando ela deixar de ser um objeto de troca e passar a ser um bem de uso, neste caso, a produção de ali- mentos para uso benéfico da so- ciedade é o primeiro passo.