Existe diferença significativa entre o Estatuto da Cidade e o Código
Civil relativamente ao direito de superfície quanto ao limite temporal da
concessão. É que pelo primeiro a concessão poderia ser feita por tempo
determinado ou indeterminado (art. 21 da Lei 10.275/01), enquanto que o
segundo
prevê expressamente (art. 1.369, caput do CC) que essa deve ser
por tempo determinado.
Observe-se que, embora ocorra diferença entre o Código Civil e o
Estatuto da Cidade no particular, o legislador não permitiu nos dois
371 Em sentido próximo: Luiz Guilherme Loureiro (Direitos reais: à luz do Código civil e do direito
registral. São Paulo: Método, 2004, p. 278).
372 Analisando a omissão legislativa, Marcelo Terra fez a seguinte consideração: “Nada obsta,
porém, que o proprietário disponha em testamento sobre a constituição do direito de superfície em favor de um herdeiro ou de um legatário, tal como se dá, por exemplo, na instituição da propriedade horizontal por testamento (Lei n. 4591/64, art. 7º)” (Contribuição aos Estudos do XXVIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, Foz do Iguaçu - PR, de 17 a 21 de setembro de 2.001, p. 29 – texto cedido gentilmente pelo autor).
373 Direitos reais. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 393. A posição supra segue a mesma linha de Pires
de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1987, v. 3, p. 595).
ambientes legais a constituição de direito de superfície perpétuo. A leitura
de qualquer dos diplomas informará que o direito de superfície em nosso
ordenamento será sempre temporário
374. Pensar em contrário, com todo
respeito, significa criar ambiente propício para a violação da função social
da propriedade e reavivar um dos pontos mais embaraçosos da
enfiteuse.
375De toda sorte, não podemos fechar nossos olhos e negar que há
uma incompatibilidade e alguns problemas que advém das redações dos
artigos 1.369 da codificação e do artigo 21 da norma estatutária. Com
efeito, o Código Civil de 2002 – ao contrário de alguns ordenamentos
estrangeiros
376− não estipulou um prazo máximo para a duração do direito
de superfície, e tampouco um prazo padrão, na ausência de estipulação no
contrato, em evidente contramão ao princípio da operabilidade. Igual
situação é observada no Estatuto da Cidade que também não traça
elementos a respeito de duração da concessão por prazo determinado.
Ademais, como já gizado, no Estatuto da Cidade há a autorização
de feitura de concessão por prazo indeterminado, o que, não só caminha na
contramão da operabilidade, mas, involuntariamente, permite burla ao
princípio da eticidade. Na ausência de prévio ajuste contratual quanto ao
prazo, a resolução poderá se efetuar de forma unilateral, com o risco de ser
374 Parecendo concordar, confira-se: Melhim Namen Chalhub (Curso de direito civil: direitos reais.
Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 159); Carlos Roberto Gonçalves (Direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 5, p. 412), Luiz Guilherme Loureiro (Direitos reais: à luz do Código civil e do direito registral. São Paulo: Método, 2004, p. 279-280), e Marco Aurélio S. Viana (Comentários ao novo Código Civil: dos direitos reais, arts. 1.225 a 1.510. 2. ed. Coordenação de Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 16, p. 547).
375 Há quem defenda que o nosso sistema admite o direito de superfície perpétuo, o que
absolutamente não aceitamos. Sobre o caráter temporário do direito de superfície remetemos o leitor ao capítulo 9 (item 9.2), trecho do estudo em que examinamos com mais detalhe o tema. Sem prejuízo, a questão também foi interpretada sob o foco do aparente conflito entre o artigo 1.369 do Código Civil e o artigo 21 do Estatuto da Cidade ao final do presente capítulo, fazendo- se a análise apegados à função social da propriedade (itens 7.14, 7.15 e 7.16).
376 Em exemplo, o Código Civil do Peru fixa o prazo máximo de noventa anos (artigo 1.030) e a
legislação argentina o de cinqüenta anos (artigo 6º - Lei 25.509/01). Confira-se a temática nos Capítulos 3 e 9.
altamente nociva a uma das partes e à própria função social da propriedade
(e do contrato). Sem termo final, não havendo inadimplemento contratual, o
destino para a resolução do contrato estaria no uso da válvula do artigo 473
do Código Civil
377a fim de que a regra protetiva do parágrafo único possa
ser aplicada, evitando que algum dos contratantes (normalmente o
superficiário) seja prejudicado com a resolução antes de transcorrido prazo
compatível com os investimentos efetuados
378. Diferente não poderia ser,
pois permitir resolução por denúncia vazia (sem inadimplemento da outra
parte) conspiraria contra a cláusula geral de função social dos contratos,
que na espécie tem relação também com a função social da propriedade,
podendo colocar em jogo os conceitos éticos e de equilíbrio insertos em
toda codificação, especialmente na parte contratual e no direito de
propriedade.
Portanto, sem distinção quanto à fonte legal, o intérprete, ao
analisar o tempo contratual, precisa considerar o valor agregado no imóvel
pelas implantações, as condições contratuais, os investimentos efetuados
pelas partes, assim como a boa-fé (art. 422 do CC) aplicando-se regras de
equilíbrio e eticidade.
Por fim, merece consignar que uma das alterações introduzidas pela
Lei 11.481/07 pode levar o interprete do Código Civil a uma situação
377 “Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita,
opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.”
378 Não se trata, portanto, de hipótese vinculada ao artigo 397 do Código Civil (“Art. 397. O
inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor. Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial”), pois esse dispositivo está vinculado à mora, e a resolução do contrato de superfície pode ocorrer por denúncia vazia, ou seja, sem qualquer motivação de inadimplemento. No sentido, também entendendo pela aplicação do artigo 473 do Código Civil: Silvio de Salvo Venosa (Direito civil: direitos reais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, v. 5, p. 392). Contra, entendendo pela aplicação do dispositivo que descartamos (artigo 397): Marco Aurélio Bezerra de Melo (Novo Código Civil anotado. Coordenação de J. M. Leoni Lopes de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 225).
conflitante. Com efeito, a lei em destaque incluiu o parágrafo 2º no artigo
1.473 do Código Civil, para afirmar que a duração do gravame real que tem
como objeto o direito de superfície e o direito real de uso não poderá ter
prazo superior ao fixado na concessão, caso este seja “determinado”,
admitindo-se, via de talante, a pactuação indeterminada.
379Pela rápida leitura do parágrafo 2º do artigo 1.473 do Código Civil,
verifica-se descompasso do dito disposto com o estampado no artigo 1.369
da codificação, pois como já visto, o legislador fixou no último que as
concessões superficiárias serão sempre por prazo determinado. Dessa
forma, há um cochilo do legislativo que coloca em jogo a própria coerência
interna do Código Civil, não existindo outro caminho senão a aplicação
restritiva do parágrafo 2º do artigo 1.473 do Código Civil. A solução
apontada é perfeitamente possível na hipótese, já que a interpretação
restritiva, segundo Francesco Ferrara, é viável nas seguintes situações: “1
o)
se o texto, entendido no modo tão geral como está redigido, viria a
contradizer outro texto de lei; 2
o) se a lei contém em si uma contradição
íntima (é o chamado argumento ‘ad absurdeum’; 3º) se o princípio, aplicado
sem restrições, ultrapassa o fim que foi ordenado.”
380-381No caso em tela, ocorre a primeira situação, pois a aplicação geral
da norma (§ 2º do art. 1.473) conduz a revogação tácita de outro dispositivo
do mesmo diploma, sendo o último (o artigo 1.369) regra diretriz do direito
de superfície, não podendo ser afastada por um artigo que regula (apenas)
um dos desdobramentos do instituto.
379 Art. 1.473 – “Art. 1.473 (...) IX - o direito real de uso; X- a propriedade superficiária (...) § 2º Os
direitos de garantia instituídos nas hipóteses dos incisos IX e X do caput deste artigo ficam limitados à duração da concessão ou direito de superfície, caso tenham sido transferidos por período determinado.”
380 Conf. Como aplicar e interpretar as leis (tradução do Tratatto de dirrito civille italiano. Roma,
1921, do Professor Francesco Ferrara, por Joaquim Campos de Miranda) Belo Horizonte: Líder, 2002, p. 43.
381 Adotando a mesma posição do professor italiano, confira-se Jose Antonio Ninõ (La