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5.3. Os princípios do Código Civil de 2002

5.3.1 Princípio da socialidade

O princípio da socialidade altera a visão individualista constante no

Código Civil de 1916, a fim de que os institutos e as relações privadas não

possam ser desvinculados de um sentido social, com a prevalência de

valores fundamentais da pessoa humana. Há, aqui, grande influxo das

diretrizes constitucionais no âmbito do Direito Privado e, o contrário de um

raciocínio apressado, a socialidade não veio surgir em detrimento do direito

individual, perdendo este espaço para o Poder Público, como se em

verdadeira “reforma marxista”. Na realidade, o proprietário que usa e abusa

de sua propriedade causando danos ao meio ambiente, assim como o

empresário que se utiliza da pessoa jurídica da qual participa para burlar ao

mercado, acabam por criar um ambiente que transbordará o (seu) arbítrio

individual, justificando a limitação da (sua) soberania em razão de

sentimentos individuais que se aglutinam em sociedade.

278

Sendo assim, o princípio da socialidade e o individualismo hão

sempre de ser confrontados em ângulos mais extensos, “impondo a relação

concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a

278 Com a evolução da sociedade houve a preocupação na revisão dos conceitos dos principais

personagens da vida privada (o contratante, o proprietário, o pai de família, o testador e o empresário). Por exemplo, a mudança de pátrio poder para o poder familiar (em decorrência da própria alteração social, com a emancipação da mulher).

pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa

ordem global de comum participação”.

279

A aplicação do princípio da socialidade permitiu o encravamento de

novas situações no Código Civil, entre as quais, podemos tirar o exemplo

da posse qualificada que, pelo resultado em benefício à sociedade, importa

em análise que extrapola a relação puramente intersubjetiva do proprietário

e do possuidor. Resumidamente, se as acessões e/ou benfeitorias

introduzidas pelo possuidor criarem bônus social (=resultado positivo à

sociedade), a posse respectiva se qualificará, gerando situação de

vantagem em benefício do possuidor

280

. Tanto assim que, configurando-se

a posse qualificada, poderá surgir − entre outros efeitos − a diminuição dos

prazos da prescrição aquisitiva (usucapião), consoante disposto ao longo

dos artigos 1.238 e 1.242

281

. A mesma posse qualificada cria a inédita (e

controvertida) figura prevista nos parágrafo 4º e 5º do artigo 1.228

282

,

permitindo que grupo de possuidores tenham acesso a excepcional forma

de aquisição onerosa da (extensa) área, compelindo, portanto, o

279 Conforme Miguel Reale (O Projeto do novo Código Civil: situação após aprovação pelo Senado

Federal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 7-12).

280 Teori Albino Zavascki afirma que a posse qualificada é “marcada por elemento fático

caracterizador da função social: é a posse exercida a título de moradia e enriquecida pelo trabalho ou por investimentos” (A tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil. In: Martins-Costa, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 844).

281 “Artigo 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu

um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos

se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”. “Artigo 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele

que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente,

desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimento de interesse social e econômico”. (destacamos).

282 “Artigo 1.228. (...) § 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel

reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou

separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. § 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao

proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores” (destacamos).

proprietário a vendê-la em valor justo, capaz de representar a área em

testilha.

283

Da correta leitura do princípio da socialidade, facilitada pelo uso dos

exemplos apresentados, é possível se afirmar que Código Civil de 2002

enalteceu a importância dos institutos de direito privado para a sociedade.

Quando se cogita em funcionalização de figuras como o contrato e a

propriedade, há evidente preocupação na proteção de tais institutos pela

relevância que possuem para toda a sociedade. Por exemplo, ao se evitar a

onerosidade excessiva (com o afastamento do locupletamento ilícito), em

influência do princípio da socialidade, enaltece-se a importância da

manutenção do contrato sempre em condições de equilíbrio mínimo, pois

assim haverá a correta circulação de riquezas que é vital para a sociedade,

coibindo o enriquecimento (sem causa) de um contratante em detrimento

do empobrecimento (injustificado) do outro, uma vez que o resultado de tal

situação se refletirá nocivamente em toda a sociedade.

283 Observe-se no sentido que, se o proprietário já estiver explorando a propriedade (isto é,

exercendo seu direito individual de propriedade), afasta-se a possibilidade de terceiro, que se diz possuidor, de adquiri-la. Contudo, se por atitude negativa do proprietário, o exercício de seus poderes forem exercidos por terceiro (possuidor qualificado) que – dentro de contexto desejado pela sociedade – passa a encaixar a propriedade na ciranda social, permite-se não só a inversão na proteção, mas também a consolidação da propriedade em favor do segundo. De todo modo, fique bem claro que função social da propriedade não se confunde com a chamada função social

da posse (que dá ensejo ao que chamamos antes de posse qualificada). A conjugação

inteligente dos artigos. 1.196 e 1.228 do Código Civil nos permite verificar a existência de pontos comuns, inclusive em disputa de espaço, já que a função social da posse permite ao possuidor (que não é dono) posição privilegiada em pendenga com o proprietário. Sobre a tensão entre a

função social da posse e a propriedade, colhe-se o estudo: Ana Rita Vieira Albuquerque (Da função social da posse e a sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2002). Conferir, ainda, sobre a dicotomia: Luiz Edson Luiz Fachin (A função social

da posse e a propriedade contemporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural, Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988). Todavia, certo é que se o proprietário der função social ao bem, nosso sistema lhe dá potentes instrumentos de proteção, pois interessa não só ao direito individual a manutenção da situação (=propriedade com função social), mas a todo um quadro de interesse difuso que se beneficia com a postura exercida pelo proprietário. É correto, assim, dizer que pelo o Código Civil de 2002 propicia mais proteção ao proprietário que exerce seus poderes nos meandros da função social.

Portanto, o princípio da socialidade não retira do indivíduo seu total

arbítrio. Coloca-o, em razão bem diversa, numa zona gabaritada, fixada por

linha de controle (com normas de ordem pública), para que não ocorra o

uso destrilhado de institutos privados, eis que os reflexos da conduta

poderão ser sentidos não apenas pelos partícipes da relação, mas por

espectro mais amplo, disseminado em sociedade.

A partir dessa visão, com leitura do princípio da socialidade, fica

mais clara, inclusive, a interpretação do parágrafo único do artigo 2.035 do

Código Civil

284

que, como cláusula geral restritiva, é vetor de controle nas

relações que envolvam figuras de Direito Privado relevantíssimas para a

sociedade, permitindo a intervenção judicial na relação quando ocorrer o

abuso na utilização e disposição atreladas às figuras privadas

funcionalizadas, justamente em razão da importância social destas.