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1.5. Acrilamida como provável cancerígeno humano

1.5.1.4. Formação de aductos de DNA

Após uma exposição oral ou intraperitoneal (ip) à AA ou GA foram observados aductos de DNA específicos da GA em ratinhos (Segerback et al., 1995; Gamboa da Costa et al., 2003; Doerge et al., 2005b) e ratos (Doerge et al., 2005c). A formação desses aductos esteve presente em quase todos os tecidos, nomeadamente no fígado, cérebro, tiróide, leucócitos, mama e testículos dos ratos e no fígado, pulmão, rins, leucócitos e testículos dos ratinhos (Doerge et al., 2005a), após injecção ip de cerca de 50 mg/Kg de AA. Estas observações incluíam tecidos alvo identificados em bioensaios de carcinogenicidade em roedores (descritos na secção 1.5.2) e tecidos não alvo, indicando a ocorrência generalizada de aductos de DNA (Doerge et al., 2005a).

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Quando comparada a dose de AA nos roedores com uma quantidade equimolar de GA, esta última tipicamente produziu níveis mais elevados de aductos de DNA (Doerge

et al., 2005a). Assim, e tendo em conta a maior reactividade deste composto in vitro é

provável que os aductos de GA-DNA sejam os responsáveis pela genotoxicidade da AA

in vivo (Ghanayem et al., 2005a; Carere, 2006; Besaratinia and Pfeifer, 2007). Contudo,

o potencial mutagénico e cancerígeno desses aductos no homem não são conhecidos, devido aos escassos dados sobre aductos de DNA nos seres humanos (Koyama et al., 2010). Além disso, os efeitos crónicos da exposição directa a GA, em roedores, não têm sido relatados.

Vários estudos in vitro em células de mamífero também têm contribuido para suportar a hipótese de que a mutagenicidade de AA em células humanas e de rato é baseada na capacidade do epóxido reactivo formar aductos de DNA (Besaratinia and Pfeifer, 2004; Besaratinia and Pfeifer, 2007; Martins et al., 2007). Em células epiteliais brônquicas humanas e fibroblastos embrionários de rato Big Blue cII transgénicos, a AA e a GA formaram aductos de DNA em locais específicos e similares no gene humano que codifica para o supressor de tumor p53 (TP53) e no transgene cII. Claramente, a formação desses aductos foi mais acentuada após tratamento com a GA e a formação de aductos de AA-DNA mostrou ser saturável, enquanto a formação dos aductos GA-DNA foi dose-dependente. Além disso, o espectro de mutações cII induzido pela GA foi estatisticamente diferente do espectro de mutações que ocorreram espontaneamente (Besaratinia and Pfeifer, 2004).

Embora o papel da GA seja inquestionável, uma vez que este composto efectivamente gera depurinação do DNA, especialmente aductos N7-GA-Gua, detectados em células de mamífero V79 expostas a concentrações tão baixas quanto 1 µM de GA (Martins et al., 2007), alguns estudos apoiam a hipótese de que a AA e a GA exercem os seus efeitos mutagénicos através de diferentes mecanismos (Martins et al., 2007; Mei et al., 2008). Em células V79 a avaliação de alterações citogenéticas induzidas pela AA e pela GA, lado a lado, indicou que embora a genotoxicidade da AA fosse baseada na sua capacidade de formar aductos de GA-DNA, um outro mecanismo também podia estar em execução (Martins et al., 2007). Estas conclusões dos autores foram baseadas na forte correlação que encontraram entre os níveis de N7-GA-Gua e a indução de SCE em ambas as células tratadas com AA ou GA.

Em suma, nos estudos de toxicologia genética, a AA e a GA mostraram ser mutagénicas, clastogénicas e genotóxicas em linhas celulares de mamíferos e em

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roedores (Besaratinia and Pfeifer, 2004; Besaratinia and Pfeifer, 2007). Estes eventos manifestam-se com diferentes doses e diferentes intensidades entre ambos os compostos indicando características genotóxicas distintas. A AA tem mostrado ser sobretudo clastogénica e a GA mutagénica (Koyama et al., 2006).

1.5.2. Cancerigénese em modelo animal

A AA tem-se mostrado tumorigénica em roedores, causando tumores em locais de múltiplos orgãos de ratinhos (Bull et al., 1984a; Bull et al., 1984b) e ratos (Johnson et

al., 1986; Friedman et al., 1995), quando administrada sistemicamente por diferentes

vias, inclusive a via oral.

Dos estudos realizados, salientam-se dois bioensaios em ratos Fischer 344, após administração oral crónica de AA através da água de abastecimento, cujos resultados são sumarizados na Tabela II (Johnson et al., 1986; Friedman et al., 1995). No primeiro deles, realizado ainda nos anos 80 (Johnson et al., 1986), os investigadores administraram doses de AA entre 0 e 2 mg/Kg pc/dia, por um período de dois anos a um grupo de 90 machos e 90 fémeas. Grupos de 10 machos e 10 fêmeas foram sacrificados ao fim de 6, 12 e 18 meses, de modo a que 60 animais de cada sexo estivessem disponíveis para a totalidade do estudo. Nos ratos de ambos os sexos que receberam a dose mais alta foi observada uma redução da sobrevida até ao final do estudo. Após ajuste para a sobrevivência, verficaram-se aumentos significativos na incidência de tumores foliculares da tiróide em ambos os sexos, feocromocitonas da glândula adrenal e mesoteliomas peritoneais na região dos testículos dos machos; tumores da glândula mamária, tumores gliais (SNC), papilomas da cavidade oral, adenocarcinomas úterino e adenomas clitóricos e da glândula pituitária nas fêmeas (Talela II). Segundo os autores, as incidências de tumor foram dose-dependente para doses acima de 0,5 mg/Kg pc/dia, considerando que as doses de 0,01 e 0,1 mg/Kg pc/dia não aumentaram a incidência de tumores em ambos os sexos.

Um segundo estudo (Friedman et al., 1995), executou estratégias muito semelhantes às descritas por Johnson et al. (1986), explorando sobretudo a relação dose-resposta. Neste caso, as fêmeas foram tratadas com 0; 1,0 ou 3,0 mg/Kg pc/dia de AA e os machos com 0; 0,1; 0,5 e 2,0 mg/Kg pc/dia. Algumas particularidades utilizadas neste

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estudo, como a divisão do grupo controlo de cada sexo em dois grupos distintos e o desenho desequilibrado do estudo5, para respectivamente indicar a variabilidade da baixa incidência tumoral basal e para aumentar o poder estatístico da detecção de aumentos tumorais nas doses baixas, reflectiram-se numa avaliação complementar e melhorada dos resultados anteriores. Friedman et al. (1995) observaram aumentos na incidência de tumores foliculares da tiróide em ambos os sexos, tumores da glândula mamária das fêmeas, e de mesoteliomas peritoneais na região dos testículos nos machos (Tabela II). Os autores também referiram uma diminuição da condição física dos animais (diminuição do consumo de alimentos, pouca quantidade de fezes, magreza exagerada) nos últimos meses do estudo, nos grupos de dose mais alta, o que foi consistente com o aumento da mortalidade no final do estudo.

Tabela II. Incidência de tumores nos bioensaios crónicos com ratos Fisher 344, expostos à acrilamida na água de abastecimento, durante 2 anos. Dados de Johnson et al. (1986)a e Friedman et al. (1995)b.

Referência/Tipo de tumor

Dose de Acrilamida (mg/kg/dia)

0c 0c 0,01 0,1 0,5 1,0 2,0 3,0

Johnson et al. (1986); machos Adenoma folicular da tiróide Mesotelioma da túnica vaginal Feocromocitoma adrenal 1/60 3/60 3/60 – – – 0/58 0/60 7/59 2/59 7/60 7/60 1/59 11/60* 5/60 – – – 7/59* 10/60* 10/60* – – – Johnson et al. (1986); fêmeas

Adenoma/Carcinoma folicular da tiróide Adenocarcinoma mamário

Mamário benigno

Tumores do SNC de origem glial Cavidade oral, benigno e maligno Adenocarcinoma uterino Adenoma clitórico, benigno Adenoma da hipófise 1/58 2/60 10/60 1/60 0/60 1/60 0/2 25/59 – – – – – – – – 0/59 1/60 11/60 2/59 3/60 2/60 1/3 30/60 1/59 1/60 9/60 1/60 2/60 1/60 3/4 32/60 1/58 2/58 19/58 1/60 3/60 0/59 2/4 27/60 – – – – – – – – 5/60* 6/61* 23/61* 9/61* 8/60* 5/60* 5/5* 32/60* – – – – – – – – Friedman et al. (1995); machos

Tumores do SNC de origem glial Adenoma/Carcinoma folicular da tiróide Mesotelioma da túnica vaginal

1/102 3/100 4/102 1/102 3/102 4/102 – – – 2/204 12/203 9/204 1/102 5/101 8/102 – – – 3/75 17/75* 13/75* – – – Friedman et al. (1995); fêmeas

Tumores do SNC de origem glial Adenoma/Carcinoma folicular da tiróide Mamário benigno e maligno

0/50 1/50 7/46 0/50 1/50 4/50 – – – – – – – – – 2/100 10/100 21/94* – – – 3/100 23/100* 30/95* Nota: Dados compilados por Rice (2005) e FAO/WHO (2005).

a Período de intervenção: 104 semanas (idade inicial dos ratos 5-6 semanas); b Período de intervenção: 106-108

semanas (idade inicial dos ratos 25 dias); c Friedman et al. (1995) utilizou dois grupos controlo para medir a

variabilidade basal.

Asteriscos (∗) indicam a designação dos autores da significância estatística da diferença dos controlos; (Ρ<0,05 para Jhonson et al. (1986) - após ajuste de mortalidade; Ρ<0,001 para Friedman et al. (1995)). Traço (–) significa não testado.

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Os tipos de tumores que foram consistentemente observados em ambos os bioensaios crónicos incluem aumentos estatisticamente significativos de adenomas e carcinomas das células foliculares da tiróide em ambos os sexos dos ratos, mesoteliomas escrotais nos machos e tumores da glândula mamária (adenomas, fibroadenomas ou fibromas) nas fêmeas, nas doses adiministradas de AA superiores a 0,5 mg/Kg/dia, como indicado na Tabela II (Johnson et al., 1986; Friedman et al., 1995). O caso particular dos tumores da glândula mamária é abordado com maior ênfase na secção 1.5.2.1.

Em relação aos tumores do SNC, Friedman et al. (1995) não observaram nenhum aumento significativo de tumores gliais do cérebro ou da medula espinal. No entanto, não foram analisados todos os cérebros ou medulas espinais nos grupos de animais em tratamento (Rice, 2005). Além disso, foram relatados mas excluídos da análise dos autores sete casos de uma categoria morfologicamente distinta de tumor cerebral primário, descrito como “reticulose maligna”. Assim, este estudo prevê algum apoio para os tumores do SNC induzidos pela AA (Rice, 2005).

A incidência de feocromitomas adrenais em machos e de tumores da cavidade oral, hipófise, clitóris ou útero nas fêmeas, inicialmente reportada por Johnson et al. (1986), não foi confirmada no segundo estudo (Friedman et al., 1995). Além disso, os dados de adenocarcinomas uterinos e adenomas da glândula pituitária observados por Johnson et

al. (1986) não foram tão evidentes como para os outros tipos de tumores. O significado

estatístico do aumento de incidência nos grupos de dose mais elevada só foi demonstrado após ajuste da mortalidade, não existindo evidência clara de uma tendência de aumento de risco com o aumento do nível de exposição. No caso particular dos adenomas da glândula pituitária, os níveis de controlo foram muito elevados (42% de incidência tumoral), bem como os níveis de incidência em todos os grupos de tratamento, sugestivos de um outro agente causal que não a AA. Por outro lado, o aumento da incidência de adenomas do clitóris também é menos convincente, porque baseia-se nas diferenças de um número muito pequeno de animais (n ≤ 5).

Em termos da relação entre a duração de exposição e o aparecimento de tumores nos ratos, segundo Johnson et al. (1986) estes surgem num estádio tardio de exposição à AA. Os ratos sacrificados em períodos intercalares mostraram que o aparecimento de tumores geralmente ocorreu no final da experiência (~ 2 anos) e nenhum dos tumores pareceu ser a principal causa de morte. Informações sobre o início do tumor não foram reportadas no estudo de Friedman et al. (1995).

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Para além das evidências em ensaios crónicos, também foram feitos ensaios subcrónicos em ratinhos que mostram o aparecimento de tumores (ver Tabela III). Neste modelo animal, a AA aumentou a incidência e a multiplicidade de tumores de pulmão (Bull et al., 1984a) e tumores de pele (Bull et al., 1984a; Bull et al., 1984b).

Em ratinhos, foram encontrados aumentos da incidência de tumores de pulmão, de uma forma dependente da dose, na linhagem A/J (machos e fêmeas), após injecção ip de AA (entre 0 a 60 mg/Kg pc) três vezes por semana durante oito semanas (Bull et al., 1984a). Nos machos, os aumentos de adenomas de pulmão foram estatisticamente significativos e a dose mais elevada de AA testada produziu neuropatia periférica e redução de sobrevida em ambos os sexos. Paralelamente, a administração via oral de AA em doses entre 0 e 25 mg/Kg pc, também resultou em aumentos dose-dependente de adenoma de pulmão nos ratinhos. Em ambos os sexos e por ambas as vias de exposição, o número médio de adenomas pulmonares por ratinho também aumentou com o incremento do tratamento com AA (Bull et al., 1984a).

Outra evidência da cancerigenicidade da AA em ratinhos foi fornecida por ensaios de iniciação-promoção de tumores de pele que envolveram a aplicação inicial de AA (até 50 mg/Kg pc por via ip, oral ou dérmica) e promoção da derme por 12-O- tetradecanoilforbol-13-acetato (TPA) em linhagens de ratinho Sencar (Bull et al., 1984a) e Swiss-ICR (Bull et al., 1984b). A administração oral de AA através de sonda (três vezes por semana durante duas semanas) (iniciação), seguida por aplicação cutânea do promotor de tumor (TPA) durante 20 semanas (promoção), resultou num aumento de papilomas da pele e carcinomas de células escamosas, histologicamente confirmados, de uma forma dose-dependente nas duas linhagens de ratinho (Bull et al., 1984a; Bull et

al., 1984b). Os protocolos de iniciação/promoção na linhagem Sencar envolvendo

injecções ip ou aplicações dérmicas da AA (seguido por promoção TPA) induziram um aumento estatisticamente significativo da incidência de massas de pele palpáveis no decorrer do período de observação de 52 semanas, mas não foram tão eficazes como na administração oral (Bull et al., 1984a). Outra das observações foi o aumento significativo de adenomas alveolares e carcinomas com ou sem TPA nos ratinhos Swiss-ICR após exposição à AA (Bull et al., 1984b), reforçando os resultados obtidos na linhagem de ratinhos A/J (Bull et al., 1984a).

Tabela III. Resultados dos estudos de tumorigénese da acrilamida no ratinho. Adaptado de Hogervorst et al. (2010).

Espécie Estirpe Número e sexo dos animais Período de intervenção Via de administração de AA Doses de AA (mg/Kg pc/dia) Aumentos de incidência de tumor* Referência

Ratinho A/J 40 fêmeas 40 machos por grupo de dose 16 fêmeas 16 machos por grupo de dose 8 semanas (idade inicial dos animais 8 semanas) Intubação gástrica; Injecção ip 0; 6,25; 12,5 e 25; 3 vezes/semana 0; 1; 3; 10; 30; 60; 3 vezes/semana Fêmeas e machos:

adenomas de pulmão com ambas as vias - oral e ip

(aumento dose-dependente)

Bull et al. (1984a)

Ratinho SENCAR 40 fêmeas por

grupo de dose 2 semanas (idade inicial dos animais 6-8 semanas)

Protocolo de iniciação – promoção Intubação gástrica;

Injecção ip; Aplicação dérmica

Iniciação com AA: 0, 12,5; 25 e 50 6 vezes/2 semanas Promoção com TPA: 3 vezes/semana (20 semanas)

Papilomas e carcinomas de células escamosas da pele, somente após TPA (aumento dose-dependente); potência: oral > ip > dérmica

Bull et al. (1984a)

Ratinho Swiss-ICR 40 fêmeas por grupo de dose

2 semanas Protocolo de iniciação – promoção Intubação gástrica

Iniciação com AA: 12,5; 25,0 e 50,0 6 vezes/2 semanas Promoção com TPA: durante 20 semanas

Papilomas e carcinomas de células escamosas da pele, somente após TPA (aumento dose-dependente); Adenomas bronquíolo-alveolar (especialmente com TPA) e carcinomas (apenas sem TPA)

Bull et al. (1984b)

Nota: ip – intraperitoneal; TPA – 12-O-tetradecanoilforbol-13-acetato. * Estatisticamente significativos.

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Os estudos sintetizados na Tabela III mostram que a AA pode iniciar o desenvolvimento de tumores nos ratinhos, segundo um processo possivelmente relacionado com um mecanismo de acção mutagénico. Além disso, estes resultados são consistentes com os resultados positivos de genotoxicidade da AA e GA em inúmeros testes (Rice, 2005; Exon, 2006; Klaunig, 2008). Assim, estes estudos adicionam um peso considerável para as provas de cancerigénese provocada pela AA em modelo animal.

Outro factor a destacar é o de que na totalidade dos bioensaios de cancerigénese associada à AA não foram relatados aumentos nas taxas de tumor em doses iguais ou menores que 0,1 mg/Kg pc/dia. De um modo geral, os tumores em roedores parecem aumentar significativamente em doses iguais ou superiores a 0,5 mg/Kg pc/dia (Rice, 2005).