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1.5. Acrilamida como provável cancerígeno humano

1.5.2.1. Tumores da glândula mamária em ratos

Como descrito no ponto anterior, ratos expostos à AA tiveram aumentos significativos na incidência de vários tumores, incluindo os tumores da glândula mamária (Johnson et al., 1986; Friedman et al., 1995). Na verdade, o tecido mamário dos ratos parece ser mais sensível do que os restantes tecidos, igualmente estudados nos bioensaios de exposição crónica. Ambos os estudos referenciados observaram um maior número de casos de tumores mamários, em relação a outros tipos de tumor (ver síntese na Tabela II). Com base nisso, o tecido mamário é considerado um dos príncipais alvos da AA em roedores e um provável alvo de cancerigénese no homem por exposição a níveis de AA na dieta (Parzefall, 2008).

De entre os vários tipos de tumores da glândula mamária identificados nos ratos, os fibromas e fibroadenomas sobressaem pela sua maior ocorrência (Tabela II). Contudo, também foram identificados adenocarcinomas da glândula mamária. Embora em menor número, também estes apresentaram uma tendência significativa no estudo de Jonhson

et al. (1986) e um aumento, mas não significativo, no estudo de Friedman et al. (1995).

Em relação às doses de efeito tumoral no tecido mamário foi verificado que o número de ratos que apresentou tumores (benignos e malignos) não foi estatisticamente significativo para as doses baixas de AA, em nenhum dos estudos de longa duração

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(Johnson et al., 1986; Friedman et al., 1995). No entanto, a dose média no estudo de Friedman et al. (1995) (1 mg/Kg pc/dia) já apresentou significado estatístico e, nos resultados obtidos por Johnson et al. (1986), doses tão baixas quanto 0,5 mg/Kg pc/dia parecem já ser biologicamente significativas, dado o aparecimento de elevado número de tumores.

Recentemente, num estudo para estimar os níveis seguros de ingestão de AA em seres humanos (Tardiff et al., 2010), efectuou-se a modelação matemática da curva dose-resposta do conjunto de dados de tumores nos ratos para quatro endpoints de tumor (testículos, tiróide, glândula mamária e SNC) e interpolaram os valores do ponto de partida (PoD), com base na AA e GA (Tabela IV).

Quando a AA foi considerada o agente responsável pelo efeito negativo, a BMD10 (a dose que causou um aumento de 10% na incidência de tumores) para os quatro

endpoints de tumor variou entre 0,013-0,15 mg/L × h e a BMDL10 variou entre 0,006-

0,10 mg/L × h, com a glândula mamária a corresponder aos valores mais baixos. Quando a GA foi considerada a responsável pelo efeito negativo, a BMD10 dos quatro

endpoints de tumor variou entre 0,0070-0,081 mg/L × h e a BMDL10 variou entre

0,0034-0,053 mg/L × h. Mais uma vez, o tumor de mama obteve os valores mais baixos de doses de efeito tóxico em relação aos diferentes tecidos (Tardiff et al., 2010). Esta estimativa matemática reforça a ideia de maior sensibilidade do tecido mamário, em relação aos outros endpoints tumorais, não só para a AA em si como para o seu metabolito. As doses estimadas para indução de um aumento de tumor mamário pela AA ou GA são as mais baixas dos vários endpoints analisados e entre os dois compostos a GA foi considerada aquela com acção tóxica mais significativa a doses mais baixas (Tabela IV).

Tabela IV. Resumo dos pontos de partida estimados para os conjuntos de dados de tumores em ratos, inclusive tumores mamários, usando como dose a acrilamida e a glicidamida. Adaptado de Tardiff et al. (2010). Endpoint Baseado em AA (mg/L×h) Baseado em GA (mg/L×h) BMD10 BMDL10 BMD10 BMDL10 Tumor da tiróide 0,043 0,035 0,023 0,018 Tumor do SNC 0,15 0,10 0,081 0,053 Tumor de mama 0,013 0,0062 0,0070 0,0034

- 41 - 1.5.3. Estudos epidemiológicos

A avaliação epidemiológica de risco de cancro em trabalhadores ocupacionalmente expostos à AA tem sido relatada desde a década de 80 (Sobel et al., 1986; Collins et al., 1989; Bergmark et al., 1993; Marsh et al., 1999; Marsh et al., 2007). Dois estudos de mortalidade por cancro em coortes de trabalhadores potencialmente expostos ao monómero (Sobel et al., 1986; Collins et al., 1989) avaliaram a associação da inalação ou exposição dérmica à AA no local de trabalho. Num dos estudos, as mortes por cancro foram ligeiramente superiores ao esperado, mas não foram estatisticamente significativas e não foi encontrada nenhuma ligação entre o tipo de cancro e a exposição do trabalhador (Sobel et al., 1986). No outro estudo, nenhuma tendência de mortalidade foi observada (Collins et al., 1989).

De um modo geral, os resultados dos estudos epidemiológicos ocupacionais sempre foram pouco claros para se estabelecer uma relação entre exposição à AA e mortalidade por cancro ou aumento consistente de risco de cancro (Dybing and Sanner, 2003; Klaunig, 2008), com a excepção de uma análise exploratória dose-resposta em trabalhadores americanos (Marsh et al., 1999), na qual foi observado um aumento no risco de cancro de pâncreas (quase o dobro) nos trabalhadores altamente expostos. Contudo, não foi determinada nenhuma relação dose-resposta e, além disso, não foi observado nenhum aumento de risco de cancro de pâncreas na mais recente análise de acompanhamento desse mesmo coorte (Marsh et al., 2007). As limitações associadas a estes estudos incluem o tamanho reduzido dos coortes e o período limitado de acompanhamento (Sobel et al., 1986), uma vez que existe uma grande proporção de trabalhadores a curto prazo nestes grupos, baixas exposições, informação incompleta acerca do hábito tabágico e período inacabado de acompanhamento (Collins et al., 1989; Marsh et al., 1999; Marsh et al., 2007).

Nos ultimos anos, devido à crescente preocupação com a exposição alimentar à AA, uma série de estudos epidemiológicos têm avaliado o potencial de carcinogenicidade da AA/GA na alimentação humana. Vários estudos caso-controlo (Mucci et al., 2003; Mucci et al., 2004; Michels et al., 2006; Pelucchi et al., 2006) e numerosos estudos prospectivos (Mucci et al., 2005; Mucci et al., 2006; Hogervorst et al., 2007; Hogervorst et al., 2008; Hogervorst et al., 2009; Larsson et al., 2009a; Larsson et al., 2009b; Wilson et al., 2009b; Burley et al., 2010; Pedersen et al., 2010; Wilson et al., 2010) avaliaram o potencial efeito da ingestão de AA relativamente ao aparecimento de

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diversos tipos de cancro (Tabela V) nas populações suecas, dinamarquesas, holandesas, americanas e italianas. As estimativas de ingestão em todos os estudos mencionados foram efetuadas com base em questionários de frequência alimentar (QFA). Só recentemente dois estudos caso-controlo examinaram as relações entre os aductos de AA-Hb e GA-Hb e os riscos de cancro de mama (Olesen et al., 2008) e cancro de próstata (Wilson et al., 2009a).

Na maioria dos estudos caso-controlo e prospectivos não foram encontradas associações estatisticamente significativas entre o consumo frequente de alimentos com níveis elevados ou moderados de AA e a incidência de cancro do intestino, bexiga, rim, células renais, colo-rectal, pulmão, oral, esófago, laringe, mama, ovário ou próstata. No entanto, alguns estudos prospectivos de grande porte (Tabela V) encontraram associações positivas entre a ingestão de AA na dieta e riscos de cancro de mama (ver secção 1.5.3.1), de cancro no sistema reprodutivo (endométrio e ovário) (Hogervorst et

al., 2007; Wilson et al., 2010) e no sistema renal (células renais) (Hogervorst et al.,

2008). Contudo, o risco de carcinoma das células renais só foi associado com o nível mais alto de consumo de AA e somente após os autores ajustarem os factores confundentes residuais: hábito tabágico, hipertensão, índice de massa corporal e consumo de frutas e vegetais (Hogervorst et al., 2008).

Quanto aos riscos de cancro no sistema reprodutivo, um estudo num coorte holandês de mulheres pós-menopáusicas (Hogervorst et al., 2007) efectuou as estimativas dos níveis de AA nos itens alimentares disponíveis no mercado no inicio de 1986 (início do estudo) com base na análise de amostras a partir de 2001 e os QFA não incluíam detalhes sobre a preparação dos alimentos. Este estudo, apenas encontrou uma associação entre o cancro de ovário e o nível mais alto de consumo e no caso de cancro do endométrio somente depois de numerosos ajustes para a idade de menopausa, paridade, uso e duração de contraceptivos orais, entre outros factores. Por outro lado, recentemente outros autores referiram um aumento de risco de cancro de endométrio em geral entre mulheres americanas não fumadoras e sugeriram um aumento de risco do cancro do ovário em geral, com um aumento significativo do risco para tumor seroso do ovário (Wilson et al., 2010). Em comum, os dois estudos positivos apresentam o uso de QFA e médias de ingestão de AA semelhantes entre si e superiores aos estudos prospectivos que não encontraram associação entre a ingestão de AA e risco de cancro epitelial invasivo do ovário (Larsson et al., 2009b) ou do endométrio (Larsson et al., 2009c) num coorte de mulheres suecas.

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Tabela V. Estudos epidemiológicos de avaliação do risco de cancro por ingestão de acrilamida através da dieta.

(+) Associação significativa entre ingestão de AA e risco de cancro; (−) Ausência de uma associação significativa;

a Associação com o status do receptor hormonal; b Fraca associação com cancro da mama antes da menopausa; c Tumor seroso do ovário. QFA – Questonário de Frequência Alimentar; AA-Hb – aductos de AA com a Hb; H –

homens; M – mulheres.

Local de

cancro Tipo de estudo População Tamanho da amostra Risco de cancro Referência

Intestino Bexiga Rins

Caso-controlo Homens e mulheres

suecos 591 casos; 538 controlos 263 133

− − −

Mucci et al. (2003) Renal Caso-controlo Homens e mulheres

suecos 379 casos; 353 controlos − Mucci et al. (2004)

Mama Coorte Mulheres suecas 43404

667 casos − Mucci et al. (2005)

Cólon/recto Coorte Mulheres suecas 504/237 casos (cólon)/(rectal)

823072 pessoas por ano − Mucci et al. (2006)

Mama Caso-controlo Mulheres

americanas 582 casos; 1569 controlos + Michels et al. (2006) Oral/Faringe Esófago Intestino Laringe Mama Ovário Próstata

Caso-controlo Homens e mulheres

italianos e suiços 749 casos; 1772 controlos 395 casos; 1066 controlos 2280 casos; 4765 controlos 527 casos; 1297 controlos 2900 casos; 3122 controlos 1031 casos; 2411 controlos 1294 casos, 1451 controlos − − − − − − − Pelucchi et al. (2006) Endométrio Ovário Mama Subcoorte Mulheres

holandesas 2589; 327 casos 300 casos 1835 casos

+ + −

Hogervorst et al. (2007) Mama Caso-controlo Mulheres

dinamarquesas 374 casos; 374 controlos +

a

Olesen et al. (2008) Renal

Bexiga Próstata

Subcoorte Homens e mulheres

holandeses 5000; 339 casos 1210 casos 2246 casos

+ − −

Hogervorst et al. (2008)

Pulmão Coorte Homens e mulheres

holandeses 58279 (H); 62573 (M) 2649 casos − Hogervorst et al. (2009)

Mama Coorte Mulheres suecas 61433

2952 casos − Larsson et al. (2009a)

Ovário Coorte Mulheres suecas 61057

368 casos − Larsson et al. (2009b)

Endométrio Coorte Mulheres suecas 61226

687 casos − Larsson et al. (2009c)

Próstata Caso-controlo Homens suecos 1499 casos; 1118 controlos

170 casos; 161 controlos − (QFA) − (AA-Hb) Wilson et al. (2009a)

Mama Coorte Mulheres

americanas

90628

1179 casos − Wilson et al. (2009b)

Mama Coorte Mulheres

americanas 33731 1084 casos +

b

Burley et al. (2010)

Mama Coorte Mulheres

holandesas 62573 2225 casos + a Pedersen et al. (2010) Endométrio Ovário Mama Coorte Mulheres americanas 69019; 484 casos 80011; 416 casos 88672; 6301 casos + +c − Wilson et al. (2010)

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Curiosamente, há também indicações de associação inversa com o risco de cancro de pulmão nas mulheres (Hogervorst et al., 2009). Este local de cancro apenas foi estudado num coorte holandês verificando-se que para o homem não houve associação mas para as mulheres houve uma associação inversa, estatisticamente significativa, com a ingestão de AA na dieta, que era mais forte para adenocarcinoma, estando presente em mulheres que nunca exerceram o hábito de fumar. Estas observações inconsistentes com o aumento da incidência desses mesmos tumores nos ratos do sexo feminino precisam de ser investigadas noutros estudos para serem mais confiantes (Hogervorst et al., 2010).

Adicionalmente, alguns locais de tumor observados em modelo animal (tiróide, testículo e SNC) ainda não foram avaliados em estudos epidemiológicos (Wilson et al., 2006; Mucci and Wilson, 2008).

Na generalidade, os dados epidemiológicos de ingestão de AA são considerados como fornecendo evidência limitada ou não evidência de cancerigénese no homem (Wilson et al., 2006; Mucci and Wilson, 2008). Muitas das limitações inerentes a estes estudos consistem no tamanho reduzido dos coortes, exposições dietéticas relativamente baixas, um período de tempo relativamente curto para informações sobre a exposição (5 anos de hábitos alimentares recordados), fraca caracterização dos níveis de AA nos itens alimentares, variação nos níveis de AA entre marcas diferentes e poucos itens na dieta conhecidos por terem altos teores de AA (Wilson et al., 2006; Mucci and Wilson, 2008).

Uma das observações dos dados epidemiológicos humanos em comparação com os dados obtidos em roedores, é que estes últimos foram de 3-5 ordens de magnitude superiores aos observados em seres humanos (Mucci and Wilson, 2008). Uma possível explicação para esta aparente discrepância prende-se com o pressuposto de que os efeitos negativos da AA/GA estão presentes nos grupos estudados, mas não podem ser observados nas populações em estudo devido a limitações no poder estatístico para detectar eventos patológicos (limite do poder estatístico para detectar pequenos aumentos numa resposta particular) (Wilson et al., 2006). Em alternativa, e igualmente plausível, a disparidade pode ser devida a suposições inválidas feitas em avaliações de risco para a saúde humana (Gargas et al., 2009), nomeadamente, a não contabilização de importantes diferenças qualitativas ou quantitativas existentes entre as espécies ou a existência de fontes toxicocinéticas e toxicodinâmicas que sejam bastante adequadas e protectoras contra a toxicidade em baixa dose (encontrada na dieta dos seres humanos),

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mas que possam ser afectadas durante as doses mais elevadas de AA (geralmente usadas nos bioensaios com roedores) (Gargas et al., 2009). Além disso, o padrão de tumores observado em roedores e o aumento de risco reportado em alguns estudos epidemiológicos sugerem que a AA pode influenciar os sistemas hormonais, para o qual os roedores podem não ser bons modelos (Hogervorst et al., 2010).

A única certeza entre a comunidade científica é a de ausência de provas convincentes na literatura epidemiológica em geral, para a aceitação ou rejeição de um risco significativo de cancro com exposição à AA através da dieta. Os métodos epidemiológicos têm sido descritos como muito insensíveis para demonstrar ou excluir o risco de cancro por acção da AA/GA (Wilson et al., 2006; Mucci and Wilson, 2008). Dybing and Sanner (2003) referiram que um risco na ordem de 1% ou menos no risco de base de cancro é dificilmente detectável através de métodos epidemiológicos, mesmo que o número de casos anuais reportados seja inaceitável. Portanto, será importante preencherem-se lacunas nos dados através da continuação de estudos experimentais utilizando baixas doses, um maior número de estudos prospectivos conciliando os QFA e os biomarcadores de dose interna e a definição dos mecanismos de acção da AA e GA. Actualmente, nenhum estudo pode fornecer evidências conclusivas sobre os efeitos da AA/GA da dieta na saúde. No entanto, o acumular de provas através de estudos bem delineados nas várias áreas pode contribuir para elucidar esta importante questão de saúde pública.