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1. O DEBATE DA QUESTÃO AMBIENTAL E A CONSTRUÇÃO DE NOVOS

1.6. Ordem econômica e meio ambiente

1.6.1. Formas de atuação estatal na ordem econômica

Alerta José Afonso da Silva35 que, ao se utilizar a expressão ordem econômica, há de se distinguir a ordem econômica ontológica, que corresponde à forma empírica de determinada economia, abarcando a realidade das relações entre seus diversos agentes (comumente denominado players) e fatores, da deontológica, referente ao conjunto de normas que regula a atividade econômica e seus partícipes, o sistema normativo- econômico.

Vale ressaltar que a ordem econômica adquiriu dimensão jurídica por intermédio da sua regulação sistemática em sede constitucional, a qual teve início com a Constituição Mexicana de 1917. No Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira a disciplinar a ordem econômica.

No mundo ocidental, em regra, a ordem econômica está calcada na iniciativa privada, detentora dos meios de produção, predominando o capitalismo. O Estado busca conter a vida econômica e social estabelecendo limites ao liberalismo desenfreado.

Com efeito, são dos condicionamentos impostos à atividade econômica que se originam os direitos econômicos, os quais são o conteúdo da constituição econômica36.

35

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 793.

36

Constituição econômica é conceito bem debatido. Vital Moreira: “A CE é, pois, o conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da economia e constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica”.

No Brasil, a ordem econômica encontra-se calcada na i) valorização do trabalho humano e ii) na iniciativa privada (art. 170 da CF/1988). Tais valores orientam a intervenção do Estado na Economia e têm como escopo salvaguardar uma existência digna e conforme aos ditames da justiça social, observados os princípios da:

a) soberania nacional; b) propriedade privada;

c) função social da propriedade; d) livre concorrência;

e) defesa do consumidor;

f) defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental de produtos e serviços e de seus processos de produção;

g) redução das desigualdades sociais; h) busca do pleno emprego;

i) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte.

Nesta perspectiva, a Constituição estipula como objetivo da ordem econômica assegurar a todos existência digna, consoante os ditames da justiça social, sendo a compatibilização entre a livre-iniciativa e a valorização do trabalho humano a sua base fundante.

Postos os objetivos e o alicerce fulcral da ordem econômica, a Carta Política cuidou de elencar os princípios que irão norteá-la, a exemplo da soberania nacional, propriedade privada, livre concorrência, defesa do meio ambiente, busca pelo pleno emprego, dentre outros.

Resta claro, portanto, que no país as atividades econômicas (executadas pelos particulares ou pelo Estado) não podem ser desenvolvidas livremente, mas estão adstritas aos princípios constitucionais da ordem econômica, aos seus objetivos e alicerces fundantes.

Ademais, dentro da conformação acima delineada, o ente estatal, mediante normas oriundas do Direito Econômico, irá instituir variáveis compulsórias ou facultativas que irão influenciar a tomada de decisão do agente econômico no exercício de sua liberdade de

empreender37. As normas são estipuladas para alinhar a dinâmica econômica aos objetivos constitucionais.

Nesse sentido, Fernando Herren Aguilar38, após defender que o Direito Econômico é “o direito das políticas públicas na economia”, constituindo um conjunto de normas e institutos jurídicos que permitem que o Estado exerça influência, oriente, direcione, estimule, proíba ou reprima comportamento dos agentes econômicos num certo país ou conjunto de países, traz diversos exemplos da sua concretização no Brasil. Frise-se a dicção desse autor acerca da utilidade concreta do Direito Econômico, no Brasil:

Ele já serviu para socorrer produtores ameaçados de colapso financeiro, para congelar preços em períodos de inflação descontrolada, para aumentar exportações em períodos de crise cambial, para combater cartéis empresariais. Ele já serviu para aumentar o nível de emprego, estimular o desenvolvimento regional, fixar a taxa de juros, direcionar a economia para atingir determinados objetivos, reprimir determinadas práticas que julgasse nocivas à economia. Já houve um tempo em que a evolução dos preços era combatida com tabelamento pelo governo. Hoje se combate a inflação com abertura alfandegária. A fixação das cotações da moeda nacional já foi feita por norma do Banco Central. Hoje o câmbio é flutuante, de acordo com a oferta e a procura da moeda.

Feitas tais considerações, cumpre examinar as formas de atuação estatal na economia.

De início, cumpre distinguir atuação estatal de intervenção estatal. Com efeito, esclarece Eros Roberto Grau39 que as referidas expressões são apenas relativamente intercambiáveis. Isto porque, quando o Estado está prestando um serviço público ou regulando a prestação de um serviço público, não pratica uma intervenção, mas uma atuação na sua própria área de titularidade (esfera pública).

Nesta perspectiva, preleciona o citado jurista que, enquanto a atuação estatal designa significado mais abrangente de atuação do Estado, porquanto abarcará tanto a área de sua titularidade quanto a de titularidade do setor privado, a intervenção corresponderá à atuação na área de titularidade do setor privado.

37

AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao direito supranacional. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 2-3.

38

Id., loc. cit.

39

De tal modo, a intervenção conota atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito e a atuação estatal evidencia ação do Estado no campo da atividade em sentido amplo.

Considerando que a intervenção é o termo adequado para tratar da atuação estatal na seara da atividade econômica em sentido estrito, ou seja, para referir a intervenção no “domínio econômico”, passa-se ao exame mais detido de tal figura, uma vez que os incentivos fiscais são verificados na seara da atividade econômica em sentido estrito (esfera privada).

Cabe, então, apresentar a consagrada classificação das modalidades de intervenção formulada por Eros Roberto Grau, a saber: i) intervenção por absorção ou participação, ii) intervenção por direção e iii) intervenção por indução.

Deveras, na primeira modalidade, o ente estatal intervém no domínio econômico e figura como sujeito econômico. A intervenção no domínio econômico por absorção ocorre quando o Estado assume a totalidade do controle dos meios de produção e/ou troca em determinado setor da atividade econômica em sentido estrito, atuando em regime de monopólio. Por seu turno, esta se dá por participação quando tal ente controla parte dos meios de produção e/ou troca em determinado setor da atividade econômica, atuando em regime de competição com empresas privadas40.

Seguindo a classificação em tela, verifica-se que, nas duas outras modalidades, o Estado não intervirá no domínio econômico, mas sobre o domínio econômico. A atuação é sobre o campo da atividade econômica em sentido estrito, por meio de regulação dessa atividade, que pode ocorrer por direção ou indução.

Encontrar-se-á na esfera da intervenção sobre o domínio econômico por direção a intervenção executada por meio de “pressão sobre a economia, com o estabelecimento de mecanismos e normas de comportamento compulsório para os sujeitos da atividade

econômica em sentido estrito”. Há, pois, comandos cogentes, impositivos de condutas,

sendo o clássico exemplo de tal modalidade o congelamento de preços estipulado pelo Estado41.

Por sua vez, a indução está presente quando o Estado se vale de instrumentos de intervenção alinhados às leis que regem o funcionamento dos mercados. Utiliza-se assim

40

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 175.

41

de preceitos que, apesar de prescritivos, não detêm a mesma cogência das normas de direção, visto que são normas dispositivas que trazem um convite ou estímulo para que o destinatário participe da atividade de interesse do Estado42.

Nessa perspectiva, se há a adesão à norma, caberá o cumprimento das prescrições legais43.

Verifica-se que, ao optar pela intervenção por indução, o Estado, diante do contexto do mercado, cria norma que irá influenciar na formação de vontade do agente econômico, pois caberá a este adotar o comportamento preconizado pela norma ou não, sem que tal alternativa constitua ilícito.

Luís Eduardo Schoueri44 esclarece tal ponto ao aduzir que a norma de intervenção por indução também alberga o funtor “obrigatório”, estando a sua peculiaridade atrelada à possibilidade de seu destinatário adotar, ou não, um comportamento. De acordo com sua escolha, o ordenamento lhe imputará uma consequência.

Cumpre pontuar que a norma de indução não só poderá abrandar determinada situação com objetivo de fomentar a prática de determinado ato, como também poderá agravar situações com o escopo de inibir comportamentos. Assim, por exemplo, haverá indução negativa quando for editada norma elevando a tributação na importação de certo bem, desestimulando-se, assim, a entrada de tal bem no país.

Impõe ressaltar que, na prática, a distinção entre normas de indução e de direção nem sempre é de fácil aferição, permanecendo, todavia, o critério jurídico da identificação do grau de liberdade do administrado45.

No caso dos incentivos fiscais, objeto de estudo do Capítulo 3, a distinção em destaque revela-se apropriada, porquanto tais incentivos ocorrem na seara tributária, que pressupõe a liberdade do particular para a realização ou não do fato gerador. Nesse sentido, resta completamente afastada a sua classificação como norma de direção.

Ao tratar sobre aspectos da intervenção por intervenção e por indução, com base em considerações oriundas do direito das finanças, Luís Eduardo Schoueri46 aduz que as normas de direção são mais bem aplicadas nos casos em que se demanda de todos um

42

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 175-176.

43

Id. ibid., p. 176.

44

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 44.

45

Id. ibid., p. 46.

46

comportamento de acordo com o respectivo mandamento. Vale dizer: quando não é necessário um efeito absoluto e sem lacunas, tolerando-se que alguns não adotem a conduta indicada, sem com isso implicar uma distorção do objetivo almejado.

Ilustra o referido autor que, no campo da tributação ambiental, muito foi discutido acerca da conveniência de serem adotadas normas de direção ou de indução, tendo prevalecido o entendimento de que seria melhor o emprego de normas tributárias, diretamente vinculadas a atuações prejudiciais ao ambiente (emissões de barulho ou resíduos). A vantagem, sob o ponto de vista econômico, é a de que o instrumento tributário permitiria maior escalonamento, bastando que a redução do tributo se faça proporcionalmente à redução do nível de emissões.

Vale ressaltar, todavia, que tais intervenções podem afetar a liberdade e a igualdade do particular, pelo que o estudo de seus limites será procedido em itens específicos deste trabalho47.

Acerca da intervenção estatal na economia realizada na Europa, Cláudia Dias Soares48 salienta que os auxílios de Estado consubstanciam o instrumento com possibilidade de ser manejado, em âmbito nacional, com o intuito de proteger a indústria doméstica. A mencionada autora aduz, ainda, que tais auxílios são a expressão mais significativa do poder financeiro do Estado moderno.

Por seu turno, no que tange ao planejamento estatal, o presente trabalho alinha-se, mais uma vez, às lições de Eros Roberto Grau49, para quem o “planejamento” não se encontra incluído no rol das modalidades de intervenção. Isto porque o planejamento “apenas qualifica a intervenção do Estado sobre e no domínio econômico, na medida em que esta, quando consequente ao prévio exercício dele, resulta mais racional”.

Assim, considera-se, tal como o mencionado jurista, que a intervenção no domínio econômico e sobre o domínio econômico pode ocorrer de forma planejada ou não, sendo certo que a utilização de um planejamento implicará uma intervenção mais racional50.

Deveras, restando evidenciadas as formas de atuação estatal na economia, passa-se a investigar os fundamentos e o contexto em que estas devem ocorrer. Com efeito, serão

47

Ver item 3.4.

48

SOARES, Cláudia Dias. O direito fiscal do ambiente: o enquadramento comunitário dos auxílios de Estado a favor do ambiente. Coimbra: Almedina, 2003. p. 9.

49

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 178.

50

desvendadas as razões pelas quais, de há muito, o modelo econômico eminentemente liberal restou abandonado.