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A reflexão sobre o conceito fronteiras/margens26 suscita uma imagem de divisão, segregação, diferenças, espaços e/ou territórios. Tal concepção é oriunda do surgimento dos Estados Nacionais, de demarcações de forças políticas e coercitivas (LAGE, 2008, p. 489). Pensar o MST e os povos africanos, a partir da imagem de “fronteiras/margens”, possibilita entrever um percurso reflexivo na busca por argumentos que justifiquem o silenciamento de vozes e saberes desconsiderados por uma ótica eurocêntrica e delimitadora de muros, os quais obstaculizam a passagem dos conhecimentos dos negros, com toda sua história acorrentada – dos pés ao cognitivo – e que impossibilita o surgimento de novas epistemologias a partir de outras regiões do mundo. Neste sentido, Lage (2008, p. 492) afirma que “de fato, há uma estratégia de poder que visa silenciar outras alternativas, de forma a difundir uma percepção de falta de opções ao modelo dominante”.

26 Segundo a autora Lage (2008, p. 489-490): “Uma fronteira é um limite entre dois espaços que se organizam em cima de diferentes cenários e grupos sociais, no qual se encontra presente a dicotomia Nós e Eles. Esses limites são fundamentados por diferentes modos de sociabilidades políticas, étnicas, morais, linguísticas e/ou culturais e religiosas que, nas zonas de fronteiras se confrontam com situações de estranhamentos, (in)tolerâncias e reciprocidades, conforme as relações forjadas ao longo da sua instituição. Na fronteira deparamo-nos com o Outro, através de uma relação tão próxima de ser evitada quanto o possível, e numa tensa troca de favores que tornam os limites suportáveis e as convivências necessárias”.

Mostra-se, assim, que pela imposição da ciência moderna e da cultura hegemônica, parece ser impossível pensar epistemologia(s) na “pluralidade”, pois é improvável pensar numa lógica exterior às determinações das verdades positivistas dos brancos que inferem o verdadeiro do falso; e, deliberam, com fronteiras/ margens, a ausência e a deslegitimação dos saberes de grupos, impossibilitando o reconhecimento desses como conhecimento científico, e, assim, demarcam com “brutalidade” racional o único saber que circunscreve o território dos cientistas da verdade. Deste modo, Boaventura reflete sobre fronteiras e limites:

A sociabilidade da fronteira é também, em certo sentido, a fronteira da sociabilidade. Daí a sua grande complexidade e precariedade. Está assente em limites, bem como na constante transgressão dos limites. Na fronteira, todos somos, por assim dizer, migrantes indocumentados ou refugiados em busca de asilo. O poder que cada um tem, ou a que está submetido, tende a ser exercido no modo abertura-de-novos-caminhos, mais do que no modo fixação-de-fronteiras. Nas constelações de poder, os diferentes tipos de poder competem entre si para serem ativados num modo de alta-tensão, o que torna as constelações instáveis, imprevisíveis e atreitas a explosões, ora destrutivas, ora criativas. O caráter imediato das relações sociais, a vertigem da a-historicidade e a superficialidade das raízes tornam preciosos os laços que é possível estabelecer na fronteira, preciosos justamente pela sua raridade, precaridade e utilidade vital (SANTOS, 2000, p. 351).

O filósofo Dussel (1997, p. 7) expõe o projeto filosófico europeu, assinalando que “A filosofia, patrimônio exclusivo do Mediterrâneo, desde os gregos, e na idade moderna só europeia, começa pela primeira vez seu processo de mundialização real”. E defende que é preciso construir um projeto de libertação

exterior ao Sistema-Mundo27. Aproximando-se da crítica de Dussel, o sociólogo Walter Mignolo (2008, p. 298) também critica o conhecimento filosófico enquanto paradigma restrito à universalização do cânone da ciência moderna europeia, o que forja o aniquilamento da diversidade cultural de países e saberes de grupos28 tidos como periféricos por parte da ciência hegemônica.

Tal conceito de filosofia (e teologia) foi a arma que mutilou e silenciou raciocínios similares da África e da população indígena do Novo Mundo. Por filosofia aqui eu entendo não apenas a formação disciplinar e normativa de uma dada prática, mas a cosmologia que a realça (MIGNOLO, 2008, p. 298).

O Movimento29 e os povos africanos forjam novos caminhos epistemológicos. Continuam, no entanto, sendo subjugados, empobrecidos, sofrendo preconceito, sendo abandonados, calados, tendo suas culturas violadas, territórios com produtividade negados, e saberes invisibilizados e postos do outro lado da linha determinada pelo cânone da ciência moderna, ou seja, exterior e sem valores, porque se encontram fora dos ditames hegemônicos. Sobre a invisibilidade, Boaventura constitui “A Sociologia das Ausências”:

A produção social destas ausências resulta na subtração do mundo e na contração do presente e, portanto, no desperdício da experiência. A sociologia das ausências visa identificar o âmbito dessa subtração e dessa contração, de modo a que as experiências produzidas como ausentes sejam libertadas dessas

27 Conceito cunhado pelo filósofo latino-americano Henrique Dussel no seu pensamento de Filosofia da Libertação.

28 Quando dizemos saberes de grupos estamos nos referindo ao MST, aos Indígenas, Quilombolas, Feministas, LGBT’s, entre outros grupos que têm seus conhecimentos invisibilizados.

29 Ao falar de Movimento com letra inicial maiúscula faz-se referência ao MST.

relações de produção e, por essa via, se tornem presentes. Tornar-se presentes significa serem consideradas alternativas às experiências hegemônicas, a sua credibilidade poder ser discutida e argumentada e as suas relações com as experiências hegemônicas poderem ser objeto de disputa política. A sociologia das ausências visa, assim, criar uma carência e transformar a falta da experiência social em desperdício da experiência social. Com isso, cria as condições para ampliar o campo das experiências credíveis neste mundo e neste tempo e, por essa razão, contribui para ampliar o mundo e dilatar o presente. A ampliação do mundo ocorre não só porque aumenta o campo das experiências credíveis existentes, como também porque, com elas, aumentam as possibilidades de experimentação social no futuro (SANTOS, 2003, p. 746).

O pensamento descolonial de Fanon, em “Os Condenados da terra”30 (1961, p. 29), revela que há um mundo dividido em compartimentos, um mundo cindido em dois, habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto colonial reside em que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida, não logram nunca mascarar realidades humanas. Este é o mundo daqueles que são tidos por periféricos, desconhecedores da ciência, analfabetos e deserdados de qualquer possiblidade de adquirir o capitalismo desumanizador. Cabe ainda salientar que, mesmo diante de fronteiras/ margens, subalternização e invisibilidade da diversalidade de saberes, Boaventura propõe caminhos epistemológicos outros que descristalizam a unilateralidade da ciência moderna como

30 Sobre a obra de Fanon, a Revista de História e Teoria das Ideias Vol. 34 | 2015, p. 3: “‘Os condenados da terra’ são considerado o testamento de F. Fanon. Foi escrito entre abril e Junho de 1961. Fanon soubera um ano antes que sofria de leucemia e que teria menos de um ano de vida. Morreu aos 36 anos, a 5 de Julho de 1962, num hospital dos EUA, país que sempre considerara um país de linchadores, sete meses antes da proclamação da independência da Argélia (a pátria adotiva, onde chegara em 1953)”.

“império” do conhecimento. Boaventura (2010, p. 53) afirma que “a ecologia de saberes se baseia na ideia de que conhecimento é interconhecimento”. Os conhecimentos são diversos e se entrecruzam numa relação dinâmica. Seguindo essa perspectiva, Nunes (2010, p. 263) reflete sobre a crise da epistemologia moderna, propondo caminhos que desconhecem um projeto de uma epistemologia restrita e delimitadora de outras. Tal concepção representa uma verdadeira revolução e permite desvelar outros horizontes, oportunizando compreender as Fronteiras/Margens como locus de intermédio e de novas possibilidades.

A epistemologia do Sul, enquanto projeto, significa, ao mesmo tempo, uma descontinuidade radical com o projeto moderno da epistemologia e uma reconstrução da reflexão sobre os que, como veremos, têm emergido num quadro ainda condicionado pela ciência moderna como referência para crítica de todos os saberes (NUNES, 2010, p. 263).

Em seguida, a reflexão tomará o MST e a Filosofia Ubuntu enquanto locus de epistemologias, espaços de conhecimentos

profundos que se tornam cada vez mais visibilizados através das lutas de resistência, forjadas na perspectiva da educação na (e para a) coletividade.

MST e a Coletividade como um princípio de resistência