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1º Movimento: De estudante à professora amefricana no Colégio Pedro II (RJ)

De 10 para 11 anos, mais precisamente em 1983, meio a contragosto, ingressei na antiga quinta série do Colégio Pedro II (CPII), escola pública federal, no bairro do Humaitá, zona sul do RJ. Amedrontada na fila de estudantes de um colégio tão grande, diferente em tudo da escola particular de onde eu tinha vindo, troquei olhares com outra menina negra, minha amiga até hoje por sinal. Identificação imediata. Nossas aventuras e desventuras de adolescência dentro daquela escola foram perpassadas pela percepção precoce de que éramos inferiores em tudo ou quase tudo: nos grupos de amigas e amigos, na preterição amorosa, nas escolhas que significavam de alguma forma distinção, no aproveitamento cognitivo, porque se minha amiga seguia a norma de que estudantes negras e negros viviam à beira da jubilação, devido às reprovações; já eu, às custas de perseguir uma perfeição auto-imposta, era considerada a exceção, por ser uma adolescente negra que passava direto. As marcas do racismo institucional

daquela escola de história colonial introjetaram em nós, desde muito cedo, silenciamento acerca de nossa condição racial de subalternidade.

Por outro lado, foi dentro desta mesma instituição que eu soltei a voz pela primeira vez para falar publicamente sobre uma série de questões de fato relevantes para mim. Ano de 1988, 1o

ano do antigo científico, aula de história com professor Ricardo: a atividade daquele dia consistia em debatermos sobre a abolição da escravização e sobre o racismo no Brasil, quando completava 100 anos de Abolição da Escravatura. A roda estava formada. Todos os brancos ou não negros entabulando altos discursos sobre o tema. Eu e mais duas amigas de pele escura ficamos encolhidas nas carteiras, querendo mesmo que um buraco abrisse para a gente entrar. Em meio àquela exposição de nossas fragilidades, passado o medo inicial, senti raiva, muita raiva por falarem de mim, por mim, sem que escutassem a minha dor, o meu ponto de vista, a minha cólera talvez. A fala de uma amiga bem branquinha da sala foi o estopim para que a minha voz tremida se levantasse alto, se levantasse para, a partir de então, se fortalecer. Só lembro que comecei falando:

“acho um absurdo todos vocês que disseram não haver racismo no Brasil, pelo menos no RJ, porque todos vão à praia querendo pegar um bronze. Uma coisa é o bronzeado de verão, outra bem diferente é acordar e enfrentar o mundo com a pele que eu tenho sem precisar tomar sol...”.

A partir daí, acredito, a voz destremeu, mas não tenho mais ideia do que disse. Só sei que terminei a aula me sentindo livre e forte. Parece que a notícia se espalhou pelo segundo andar da escola, porque toda violência racial sofrida, principalmente pelas adolescentes negras daquele corredor, chegava a mim para que intercedesse de alguma forma. Lembro de uma amiga que morava

na favela do Guararapes, no Cosme Velho (zona sul da cidade do Rio de Janeiro), ter entrado na minha sala choramingando e dizendo: -- Fabiana, me chamaram de neguinha. Eu nem esperei ela terminar: “e você é o quê? Você é o que, Flávia? Vai voltar lá e dizer pra esse menino que você é neguinha sim, com muito orgulho.” Era assim que vivíamos: doloridas, em meio às violências diárias sem ter com quem contar diretamente.

Digo diretamente, porque indiretamente contávamos com alguns professores, como esse Ricardo de história, Fernando Décio, de Filosofia, Helena Godoy, de português, que lembro, por suas ações político-pedagógicas em sala de aula, compreendiam as profundas desigualdades reproduzidas dentro do colégio. Particularmente, contei com a professora Guaciara, também uma mulher negra, que foi a minha inspiração nos dois últimos anos de Colégio Pedro II. Na verdade, ela é uma inspiração profissional até hoje, não só pela criatividade na composição das aulas de língua portuguesa, produção textual (expressão linguística aprendida com ela, que fazia questão de deixar o termo “redação” de lado) e literatura, mas, sobretudo, pelo compromisso de discutir e de criar estratégias de transformação social a partir de uma relação produtiva com o conhecimento. Com ela aprendi a reescrever um texto, conscientizando-me das mudanças que precisam ser feitas para que ele atinja o objetivo desejado por mim enquanto autora. Com ela aprendi que texto literário bom é aquele que nos recompõe, tirando-nos do lugar conhecido. Com ela, tenho certeza, aprendi a ler, com toda a complexidade que essa prática implica.

Ter voltado, como professora, para esta mesma instituição treze anos depois de ter saído como estudante foi um processo no mínimo contraditório, na medida em que pude me conscientizar das disputas de poder dentro do Colégio e, infelizmente, da presença de grupos de professores altamente elitistas, ligados a diversos segmentos políticos. Em síntese, o quadro encontrado

em meados de 2003, quando ingressei no CPII, enquanto professora, foi marcado pelo desinteresse por parte dos meus colegas de departamento em estabelecer um diálogo produtivo, nas aulas de literatura pelo menos, com textualidades negras no Brasil e em países da diáspora africana, bem como em investigar as desigualdades sociais ocasionadas pelo racismo. Lembro, nos primeiros colegiados que participei, de que a grande maioria dos meus colegas professores colocavam-se contrários à lei 10.639, recém-promulgada, vista como uma imposição governamental marcada pelo que chamavam de autoritarismo de esquerda. Tendo começado a participar de grupos do movimento negro durante a minha graduação em Letras, todo aquele discurso parecia-me extemporâneo, na medida em que meus colegas de trabalho ignoravam totalmente a agenda de luta política dos movimentos sociais negros de combate ao racismo no Brasil, incluindo sobretudo as reivindicações de uma educação que contemplasse a história e os conhecimentos da população africana dentro e fora do Brasil. Diante desse panorama, meus estudantes negros continuavam sozinhos, inferiorizados e sem refletir política e epistemologicamente sobre a própria condição social no mundo.

No intuito de contribuir para que o Colégio Pedro II se abrisse para as realidades sociais da população negra no Brasil, desenvolvi, em 2005, juntamente com um professor de Geografia, o projeto pedagógico AFROBETIZANDO, cujo principal eixo era a reflexão sobre o racismo, a partir da história e cultura da população negra, em perspectiva metodológica multidisciplinar, perpassando pela história, geografia, literatura, linguística, entre outras áreas.

De certa forma, o menosprezo às epistemes africanas, afro-brasileiras e indígenas no Colégio Pedro II particularmente e no sistema educacional brasileiro como um todo impulsionou-me ao desenvolviimpulsionou-mento de um projeto de doutorado que aliou a teoria à minha prática de professora de literaturas de

língua portuguesa. Nesse sentido, me detive no campo literário brasileiro, a partir da análise do formato e do mercado de livros didáticos de literatura, com o intuito de desnudar um modelo de ensino literário que pouco se modificou do século XIX até a contemporaneidade. A tese AFROBETIZAR: ANÁLISE DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS EM CINCO LIVROS DIDÁTICOS DE LITERATURA PARA O ENSINO MÉDIO significou um aprofundamento teórico-metodológico acerca da lógica colonizadora de relegar os espaços educacionais oficiais às tradições ocidentais europeias, conformando materiais didáticos produzidos mercadologicamente para o ensino público brasileiro, como parte de uma política pública educacional (Programa Nacional do Livro Didático - PNLD), os quais relegam os saberes não europeus, a produção de saberes de povos africano-descendentes, indígenas ao espaço da marginalização, à perspectiva do exotismo, sobretudo nas áreas de Linguagens (Letras) e Ciências Humanas, campo intelectual onde atuo.

Afastada da escola de 2007 a 2010, durante o doutoramento realizado na cidade de Salvador - BA, ao voltar, no final de 2010, percebi que aquela instituição ainda apresentava dificuldades para se aproximar de práticas pedagógicas para uma educação das relações étnico-raciais que desse conta de discutir não só a produção de saberes africanos e indígenas em diversas áreas do conhecimento, mas sobretudo o racismo enquanto categoria estrutural de hierarquização social e operador ideológico delimitador de espaços e atitudes de exclusão. Naquele momento e talvez ainda até hoje, nem professores nem Direção Geral (hoje Reitoria) assumiram a importância de uma mudança curricular radical, que coloque por terra a perspectiva marcadamente eurocêntrica de seleção e sistematização do conhecimento. Particularmente, quando voltei para sala de aula, em abril de 2011, continuei fazendo o meu trabalho de levar o estudante da Escola Básica a dialogar com

textualidades e corporeidades negras, infelizmente, nas brechas do currículo de perspectiva eurocêntrica, de formato fixo e linear, bem como a partir das possibilidades de parceria com outros professores que aceitavam esse trabalho.

Na medida em que o epistemicídio,, categoria conceitual de Boaventura de Sousa Santos, criticamente esmiuçada na tese de doutoramento da intelectual negra Sueli Carneiro A construção do outro como não-ser como fundamento do ser, fere de morte os considerados

o “outro” na tradição ocidental, apagando-os enquanto sujeitos cognoscentes, é importante levar em conta que fazer circular conhecimentos africanos e indígenas na escola implica diferentes formas de se relacionar com o conhecimento. Acompanhando a reflexão desenvolvida por Sueli Carneiro, acredita-se, neste artigo, na eficácia do epistemicídio enquanto estratégia de dominação para a compreensão daquilo que fundamenta as desigualdades raciais na educação brasileira e as contradições vividas pelo negro e indígena nessa seara, tendo em vista que o tipo de negação posta por práticas epistemicidas é dupla para esses grupos étnico-raciais: a racionalidade lhe é destituída e a assimilação cultural lhe é imposta. No início do ano letivo de 2014, tanto a composição do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) no Colégio Pedro II, quanto a aula inaugural com o professor Kabengele Munanga43 indicavam mudanças sutis, porém já significativas, da assunção institucional de promover políticas para a diferença. Em poucos meses, uma série de atividades, projetos pedagógicos, eventos políticos de luta contra

43 Desde 1980, Kabengele Munanga, nascido na atual República Democrática do Congo (antigo Zaire), ingressou na carreira docente na FFLCH e se aposentou em 2012, como professor titular do Departamento de Antropologia. Continua atuante como professor sênior na Faculdade, em atividades do Centro de Estudos Africanos (CEA) e integra o Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Desde 2017, é professor visitante sênior da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

o racismo dentro dos muros do Colégio Pedro II começaram a surgir aos tantos, sobretudo estudantes negras e negros passaram a levantar a voz quando eram chamados de macacos ou impedidos de entrar no colégio com um fio de contas do candomblé ou mesmo quando eram obrigados a ficar calados ao escutar piadas racistas e sexistas dos próprios professores.

Na trilha do meu caminho de desconstrução curricular e do desenvolvimento de práticas pedagógicas decolonizadoras, a pedido do estudante Vinícius Garcia, desenvolvi também, a partir do ano letivo de 2014, o projeto pedagógico Fórum Permanente de Discussão das Relações Étnico-Raciais. Deixo com um dos participantes do Fórum no campus Engenho Novo II as impressões sobre esse projeto:

Durante o último trimestre de 2014, colocamos em prática um projeto novo, cujo objetivo principal era trazer ao Campus um debate acerca das relações étnico-raciais. Com o Fórum Permanente de Discussão das Relações Étnico-Raciais – esse é o nome do projeto – conseguimos mobilizar alguns alunos e professores a discutir e pensar sobre a questão. Através de encontros semanais, esses se reuniam para uma espécie de “roda de conversa”, na qual, em cada sessão, eram discutidos temas relacionados ao assunto, com o auxílio de materiais didáticos, tais como textos, vídeos, fotografias e depoimentos. A interação entre participantes era dada através de uma abordagem dinâmica, contrastante àquela usada em sala de aula: não havia professor, nem alunos, e sim pessoas trocando conhecimentos e experiências.

[...]

O projeto nasceu da necessidade de se discutir as questões que envolvem a divisão da nossa sociedade em etnias e raças no âmbito escolar. Em um país tão diversificado como o Brasil, onde a miscigenação é, provavelmente, o fator mais característico da formação de sua população, era de se esperar que esse fosse um exemplo louvável no que diz respeito à democracia racial. No entanto, é preciso reconhecer que a realidade ainda dista muito do ideal e que continua a interferir direta e indiretamente

nas mais diversas organizações que a compõem, inclusive na escola. Apesar de já se ter tido conquistas significativas ao longo dos últimos anos, como a política afirmativa de cotas raciais, o caráter da educação brasileira persiste profundamente etnocêntrico, excluindo as mais diversas contribuições ao conhecimento, proporcionadas por povos não-europeus. Como resultado, a formação educacional proporcionada pelo Colégio Pedro II ainda segue esses parâmetros que transcendem séculos de omissão da colaboração desses povos à formação da nossa nação e do mundo. Consequentemente, muitos alunos ainda não são totalmente contemplados pelo ensino oferecido (Vinicius Garcia).

O projeto do FÓRUM pode ser considerado um grande avanço, juntamente com outras iniciativas lideradas pelo NEAB/ CPII, na medida em que esses conhecimentos passaram a circular dentro da escola, mesmo não sendo considerados conhecimentos dignos de fazerem parte da organização curricular obrigatória da escola. Mesmo eu tendo saído dessa instituição escolar em abril de 2015, o projeto do FÓRUM continua até hoje, protagonizado por estudantes e por novos professores que coordenam as atividades político-pedagógicas desse espaço emancipatório e aberto de discussão das relações étnico-raciais.

2º movimento: Professora Amefricana em uma