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FUNÇÃO PREVENTIVA-DISSUASÓRIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

CAPÍTULO III REPARAÇÃO DOS DANOS E INDENIZAÇÃO PUNITIVA

3.6 FUNÇÃO PREVENTIVA-DISSUASÓRIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Na história evolutiva da responsabilidade civil, percebe-se a nítida influência exercida pelas necessidades sociais no tocante à função e aplicação do elemento culpa como critério ensejador da reparação.

Nos idos do século XVII, em pleno apogeu da revolução industrial, o uso da responsabilidade civil constituía evidente empecilho ao desenvolvimento econômico da época, motivo pelo qual a culpa ganhava matizes vibrantes, mais como prova diabólica a obstar a reparação ao lesado, do que efetivamente critério de justiça.

Passada aquela fase de necessária acomodação desenvolvimentista e verificadas as iniquidades inerentes ao critério de imputação subjetiva exacerbada, doutrina e jurisprudência, depois seguidas pelas legislações respectivas, concordaram no sentido de mitigar o papel da culpa.

Surgiu, então, sob viés mais solidário, a responsabilidade objetiva, cujo predicado foi deslocar da culpa para o risco o elemento primordial da imputação de responsabilidade. O dano injusto, ou seja, aquele que no sopesamento dos interesses em conflito é tutelado pelo ordenamento, passou a ser a tônica da obrigação indenizatória, para atribuir ao lesado, primordialmente, o direito de obter a justa reparação.

Houve, portanto, o deslocamento dos ônus do prejuízo, que migrou da pessoa do lesado para a do lesante, em virtude do risco de sua atividade e de sua maior capacidade de sofrer as consequências do dano, até mesmo independentemente de culpa (a não ser a da própria vítima ou de terceiros, como elementos excludentes da obrigação de indenizar).

O ressarcimento reveste-se, pois, da finalidade de neutralizar as consequências do ilícito, por meio da repristinação da situação patrimonial do lesado à situação anterior à lesão, fenômeno a que ROSENVALD denomina de translação.311

311

Sob o caráter estritamente compensatório, a responsabilidade civil peca por não alcançar efetivamente seu desiderato, isto é, ao contrário do que se pensa, não há a eliminação da perda produzida pelo ilícito. Há consequências do dano que não são apagadas ou mesmo compensadas com a simples alocação subjetiva de riquezas do ofensor ao ofendido.312 Basta pensar nos danos sociais oriundos, por exemplo, do lucro produzido pelo ilícito que fevorece o lesante, da disseminação de práticas social e eticamente nocivas, como a convicção de que o desrespeito ao ordenamento jurídico e ao indivíduo podem e devem ser medidos e computados em termos econômicos, ou mesmo os efeitos deletérios à pessoa e à personalidade da vítima, que nenhum dinheiro é capaz de apagar.

Acresça-se aos argumentos anteriores, o fato de nas lesões à honra, à vida privada, à integridade física, à saúde e ao meio ambiente não haver reparação propriamente dita, mas apenas tentativas de compensação pelo mal infligido a esses bens.313 É fácil observar, então, que a despeito de a tutela ressarcitória reparar as consequências dos comportamentos ilícitos, não recompõe a ordem jurídica violada ou prestigia o fundamento ético do ordenamento jurídico.314

A securitização e as manobras estatísticas utilizadas para apuração das vantajosidades econômicas do ilícito são exemplos claros da ineficácia preventiva da tutela ressarcitória atual, incentivando a conduta reprovável ética e juridicamente315. Deflui, dessa constatação, a importância de voltar os olhos às funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil, embora em roupagem menos primitiva daquela outrora existente.

Como teremos oportunidade de verificar no tópico subsequente, a indenização punitiva terá fundamental importância para tornar efetiva a função preventiva, na medida em que trará à tona a ameaça de um valor de desestímulo à prática do ilícito.

312

ROSENVALD, op. cit. p. 68. 313

LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil, São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 79.

314

ROSENVALD, op. cit. p. 68. 315

Nesse sentido, Teresa Ancona Lopez (op. cit. p. 78): "A responsabilidade civil que tem como primeira função a reparação dos danos, também deve exercer seu papel preventivo. Cada vez que é determinada uma indenização ao réu, essa sanção deveria servir não só para ressarcir os prejuízos da vítima mas também para ameaçar com a aplicação dessas penas o culpado e o resto da sociedade. Essa é uma função automática da responsabilidade civil. Porém, a indenização não tem funcionado com esse efeito intimidativo, evitando que outros danos possa ocorrer. (...) A prevenção civil (diferentemente da penal), como consequência da pena, está desgastada, principalmente pelo mecanismo securitário."

Embora calcada sobre o princípio da reparação integral (restitutio in integrum)316, a responsabilidade civil, repita-se, não é capaz de restituir o lesado ao status quo ante ao evento lesivo. Nos casos de ressarcimento em pecúnia, não é possível desfazer todos os efeitos do dano, em especial quando considerarmos os danos extrapatrimoniais; na modalidade de restituição in natura, por sua vez, o dano pode alcançar dimensão maior do que a simples recomposição do bem poderia reparar. Em qualquer das duas situações tem-se, pois, uma aproximação possível317, não uma repristinação completa ao estado anterior ao dano.

Ademais, os efeitos próprios do ilícito não são sequer cogitados na concepção meramente indenizatória da reparação dos danos. O lucro ilícito obtido com a transgressão da norma, por exemplo, não compõe o cálculo da mera indenização dos danos ocasionados ao lesado. A perda ética oriunda do reiterado descumprimento dos preceitos legais ou contratuais, pela vantajosidade que o simples ressarcimento proporciona, também não é abarcada pela função ressarcitória. Como bem anota VENTURI318, ao tratar do tema:

Em verdade, por detrás dos chamados ‘novos danos’ (notadamente em áreas que afetam os interesses da coletividade) muitas vezes estão ações dolosamente idealizadas por aqueles que se utilizam da lógica custo/benefício para a obtenção de benefício econômico. Nesses casos pode-se perceber notória diferença entre as eventuais indenizações a serem pagas na mera ‘extensão do dano’ e o lucro auferido pelos infratores. Assim, como forma de fortalecer a reparação dos danos extrapatrimoniais e incutir a necessária punição e a dissuasão futura, preconiza-se a majoração da quantia indenizatória pela qual supostamente se implementaria a aplicação do caráter punitivo-pedagógico da responsabilidade civil.

Firmados, mais uma vez, nos ensinamentos de VENTURI319, é importante consignar que a responsabilidade civil e a consequente reparação dos danos não podem ficar adstritas à função indenizatória, na medida em que:

A afirmação de que a responsabilidade civil se funda na proteção dos direitos assume vital importância, como parece claro, na sustentação da prevenção como objetivo primeiro ou referencial do instituto, que conseguirá cumprir concreta e integralmente sua própria função social na medida em que se revele eficiente em evitar ou dissuadir a ocorrência do ilícito e dos danos que possam deste eventualmente decorrer.

316

Sobre o tema convém consultar a obra Princípio da Reparação Integral. Indenização no Novo Código Civil (SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira, Editora Saraiva, São Pulo; 2010)

317

SANSEVERINO, op. cit. p. 35. 318

VENTURI, Thaís Gouveia Pascoaloto, Responsabilidade Civil Preventiva. A proteção contra a violação dos

direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 74

319

Com efeito, diante da inegável aplicação dos direitos fundamentais ao direito privado, a responsabilidade civil ganha foros de efetivo tutor dos direitos da pessoa, tarefa da qual somente se desincumbirá com louvor se operar de modo preventivo, sobretudo nos casos de dano extrapatrimonial. A necessidade da prevenção deriva do fato de que, como já mencionado, os direitos fundamentais se notabilizam pelo caráter extrapatrimonial, interesses esses caracterizados por não comportarem solução indenizatória ou compensatória satisfatória, a exigir, como parece óbvio, a implementação de medidas que inibam o dano às situações existenciais.

Ao discorrer sobre o assunto, PERLINGIERI320 anota o efetivo papel da responsabilidade civil preventiva na tutela dos direitos da personalidade, ao mencionar o equívoco de se imaginar que sua incidência deva ocorrer apenas no momento patológico da violação ou lesão daqueles direitos. De acordo com o aludido autor, em lugar de se atentar apenas às atitudes subjetivas e às situações que se pretende impedir, é preciso levar em consideração também as situações orientadas pelo ordenamento em direção à realização da pessoa em termos positivos e fisiológicos. Por esse motivo o autor afirma que "assume consistência a oportunidade de uma tutela preventiva: o ordenamento deve fazer de tudo para que o dano não se verifique e seja possível a realização efetiva das situações existenciais". E complementa sua linha de raciocínio mediante a seguinte ponderação321:

Por todo o exposto é possível afirmar que a tutela dos direitos individuais nas relações privadas não se resume à garantia de obrigações gerais de abstenção ou mesmo à reparação dos danos sofridos, mas deve contemplar tanto a tutela preventiva quanto a repressiva e corretiva, a fim de se alcançar e dar real efetividade aos fins preconizados pelo ordenamento jurídico. Como fazê-lo é a pergunta ressoante. A resposta a ela, porém, não envolve nenhuma digressão metafísica. Basta considerar que a responsabilidade civil é capaz e constitui instrumento hábil a "implementar e regular as condutas humanas por via de técnicas de inibição, sobretudo de comportamentos causadores de danos graves e irreversíveis, tendo em vista a premissa fundamental de que 'não há como reparar o irreparável'."

Os danos à pessoa atingem sua própria essência, do que resultam lesões absolutamente irreparáveis, seja pela impossibilidade de mensurá-los economicamente, seja pelo fato de constituírem máculas indeléveis e irreversíveis ao espírito humano.

320

PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Ed. brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: renovar, 2008, p. 768.

321

Deflui como consectário lógico desse fato o reconhecimento de se evitar o dano, a fim de impedir sua consolidação na pessoa do lesado e na própria sociedade, que indiretamente sofrerá os efeitos do descaso com os valores inerentes à pessoa humana.

A utilização da função punitiva da responsabilidade civil elimina a possibilidade de o ofensor considerar o ilícito contratual ou extracontratual como mais eficiente do ponto de vista econômico do que a estrita observância de suas obrigações. É que a incerteza relativamente ao quantum da pena privada dissuasória inviabiliza o cálculo dos lucros possivelmente obtidos com a violação e, consequentemente, torna a "aposta" do ofensor mais incerta e menos vantajosa. Em suma, é fator evidente de desestímulo de condutas maliciosas oriundas de culpa grave ou dolo.