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TENDÊNCIA EVOLUTIVA DO RETORNO À INDENIZAÇÃO PUNITIVA

CAPÍTULO III REPARAÇÃO DOS DANOS E INDENIZAÇÃO PUNITIVA

3.1 TENDÊNCIA EVOLUTIVA DO RETORNO À INDENIZAÇÃO PUNITIVA

Embora os países da civil law tenham se distanciado do caráter punitivo da responsabilidade civil, este, em verdade, jamais desapareceu por completo. Muitos autores, como Grossfeld e Stoll, na Alemanha; Hugueney, Domogue, Stark, Tunk e G. Viney, na França; assim como Gioia, Cendon, Galgano, Busnelli, Di Majo e outros notáveis italianos sempre defenderam sua relevância e aplicabilidade.236

A despeito da massa crítica de apoio à indenização punitiva, boa parte da Europa esforça-se em manter a ideia, em especial a norte-americana de punitive damages, fora de seu território. Para tanto, insiste em preconizar, por intermédio de suas cortes, o caráter eminentemente reparatório da responsabilidade civil também aos casos de dano não patrimonial.

A Corte de Cassação Italiana, para trazer apenas um exemplo, afirmou categoricamente que o fim precípuo da responsabilidade civil é restaurar a esfera patrimonial do lesado, seja o dano patrimonial ou não patrimonial.237

GRUNSKY238 relata que, na Alemanha, a despeito da responsabilidade civil estar em crise, a motivar inúmeras monografias sobre o assunto, um único ponto é fruto de consenso: a função do ressarcimento do dano é tão-somente a de reintegrar o patrimônio da vítima. O caráter punitivo é rechaçado, em especial, diante da socialização do dano, da incompatibilidade entre a função punitiva e a securitização e pelo fato da responsabilidade objetiva pelo exercício de atividade perigosa contrariar a ideia de pena.

Tais argumentos, de acordo com a doutrina tedesca, seriam suficientes para rechaçar qualquer possibilidade do emprego da função punitiva à responsabilidade civil. A prática do direito alemão, entretanto, demonstra haver inúmeras hipóteses nas quais é difícil negar a

236

A referência aos autores é de Paolo Gallo, Pene Private ..., op. cit. p. 53-56. 237

BUSNELLI, Francesco Donato. Deterrenza, Responsabilità Civile, Fatto Illecito, Danni Punitivi. Europa e dir. priv. 2009, 04, 909, DEJURE, Dottrina. Giuffrè Editore.

238

GRUNSKY, Wolfgang. Il Concetto della Pena Privata nel Diritto del Risarcimento dei Danni

nell'Ordinamento Tedesco in Le Pene Private, a cura di Francesco D. Busnelli e Gianguido Scalfi. Milano:

influência da ideia de sanção punitiva atribuída ao lesante.239

No campo do dano extrapatrimonial, o aspecto punitivo pode ser extraído do expresso reconhecimento jurisprudencial de que a reparação do dano serve tanto para reintegrar a perda moral do lesado quanto para dar uma satisfação ao lesado frente ao lesante. O resultado prático é a valoração do quantum indenizatório mediante a aplicação do critério relativo ao grau de culpa do lesante. Evidentemente, se na simples reparação a culpa não tem qualquer influência sobre a quantificação da indenização - pois esta será arbitrada de acordo com o valor do bem lesado - ao considerá-la como fator determinante, o direito alemão não se limita a reintegrar o direito violado.

No caso de danos ao direito da personalidade, a culpa constitui elemento essencial para a caracterização do dano. Consoante o mencionado ordenamento jurídico, somente em casos de culpa grave essa modalidade de dano é objeto de ressarcimento; logo, a indenização reveste-se de nítido caráter penal atribuído ao lesante.

Outras hipóteses que consideram a culpa grave como fator agravante da indenização acabam por revestir-se de caráter punitivo, pois se estivessem destinadas apenas a repor o patrimônio lesado, a culpa não deveria ter qualquer importância no arbitramento do quantum da verba ressarcitória. Por conseguinte, conclui o autor, a despeito da resistência teórica em se admitir o caráter punitivo da reparação, em determinadas situações as soluções práticas do direito alemão demonstram o contrário.240

Em França, TUNC relata a importância da função punitiva da responsabilidade civil como mecanismo essencial de respeito à justiça, de proteção dos interesses difusos e de encorajamento ao particular para fazer valer seus direitos. Nesse diapasão, diz o autor francês, pode-se dizer que a função punitiva da responsabilidade civil está a serviço da ordem pública no intuito de dissuadir e prevenir comportamentos antissociais.241

Não obstante o Código Napoleônico tenha sublinhado a função reparadora da

239

GRUNSKY, La pena Privatta ..., op. cit. p. 368. 240

Sobre o tema conferir também: LOURENÇO, Paula Meira. Função Punitiva ... op. cit. p. 112-126. 241

TUNC, André. La pena privata nel diritto Francese. in Le Pene Private, a cura di Francesco D. Busnelli e Gianguido Scalfi. Milano: Giuffrè Editore, 1985, p. 349-363.

responsabilidade civil, em especial nos artigos relativos às perdas e danos resultantes do incumprimento das obrigações (artigos 1146º a 1155º), a doutrina e jurisprudência, sensíveis aos mesmos móveis propugnados por TUNC, têm se valido de interpretações mais atuais para adaptar a responsabilidade civil aos novos desafios de nosso tempo.242

No direito italiano, a intenção de se utilizar a responsabilidade civil com caráter punitivo e o consequente uso da pena privada é assunto que tem ganhado fôlego nas últimas décadas, em especial diante da amplitude conferida à tutela dos direitos da personalidade, de despenalização da tutela da honra e da reputação, bem como na inspiração do direito norte- americano.243 O movimento de retomada do caráter punitivo da responsabilidade civil tem sua razão de ser.

Os novos paradigmas sociais têm gerado demandas e exigências outrora inexistentes e que, por este motivo, não encontram resposta adequada no ordenamento jurídico. Centrada no individualismo e na exacerbação de direitos, a modernidade afirmou o indivíduo como epicentro das atenções em detrimento dos valores fundamentais ao convívio harmônico da sociedade.

Deixamos de nos ver como parte de um todo para enxergarmo-nos tal qual um apanhado de individualidades reunidas ao acaso e voltadas apenas à defesa dos próprios interesses. A noção de cidadania perdeu-se nos meandros da luta pela liberdade sem precedentes e pelo direito de usufruir intensamente das benesses da lei, ainda que a custa de um desequilíbrio social.

Não é sem razão que a noção de dever tem sido vista com descaso e vem sendo marginalizada na literatura jurídica. Tornou-se antipático contrapor aos pretensos direitos dos indivíduos seus correspectivos deveres e suas parcelas de responsabilidade. Como resultado, tem-se o esmaecimento da percepção de cidadão e de cidadania e, consequentemente, a perda da noção de bem comum.

242

LOURENÇO, Paula Meira. A Função Punitiva ..., op. cit. p. 69. 243

Como explica FRANCESCO CAMILLETTI (CAMMILETTI, Francesco. Il danno non patrimoniale da fatto

illecito verso na nuova definizione, Riv. It. medicina legale 2007, 02, 283, Giuffrè Editore), com a tutela

constitucional da pessoa, abriu-se a porta à ressarcibilidade de uma série de danos que prescindem do mero sofrimento físico-psíquico e de sua tipificação como crime.

A esse respeito, pronunciou-se ZYGMUNT BAUMAN244 ao referir-se ao indivíduo como inimigo do cidadão, pois enquanto este último busca seu bem-estar por meio do bem- estar da cidade, ainda que à custa de restrições à sua liberdade, o primeiro não aceitará qualquer restrição à busca de seu próprio e único interesse.

As relações de mercado constituem prova do egoísmo individualista. Basta observar o quanto as relações negociais têm se tornado verdadeiro palco das encenações mais aviltantes do ser humano e da noção de solidariedade. Os contratos tornaram-se frentes de guerra, nas quais uma parte procura, a todo custo, extrair o máximo da outra e vice-versa, num jogo estratégico cujo vencedor é aquele com maiores condições (econômicas e/ou técnicas) de fazer prevalecer a sua exclusiva vontade.

As próprias relações sociais, hoje, apresentam-se mais beligerantes. As pessoas são menos propensas a ceder e a entender as limitações de seus direitos, e tendem a acreditar que a satisfação de seu próprio interesse é o quanto basta para a vida harmônica em sociedade.

Por esses motivos, nunca se falou tanto em boa-fé, dever de consideração com o outro, dever de transparência, informação, etc. O Direito busca, a todo custo, encontrar ferramentas apaziguadoras dos ânimos, bem como que exaltem as virtudes outrora esquecidas e indispensáveis à vida digna em sociedade.

Todos esses esforços são credores dos maiores elogios e merecem nosso apoio, mas parece-nos que o Estado Social ainda se ressente de utilizar instrumentos mais impositivos, porque não dizer, mais antipáticos, como a indenização punitiva, considerada por nós como "uma relevante ferramenta de apoio ao dever ético de não defraudar as expectativas suscitadas nos outros, mantendo a credibilidade na eficácia do sistema jurídico." 245

O motivo da resistência em aceitar a indenização punitiva como instrumento válido e legítimo de prevenção e punição advém do ranço de se considerar a pena como algo primitivo, oriundo do instinto de vingança, mecanismo que se afigura próximo do pecado e longe da virtude. Aliado ao preconceito paralisante, o apego à dicotomia direito privado e

244

BAUMAN, Zygmunt, Modernidade Líquida, Tradução Plínio Dentzien, Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 47. 245

ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil. A Reparação e a pena civil. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 2-3.

direito penal, como áreas estanques e impenetráveis, contribui para o segregacionismo impeditivo da aceitação de sanções civis de caráter punitivo, afinal, punir é função do Direito Penal.

Embora devotemos aos defensores dessa ideia todo nosso respeito, acreditamos ser necessário levar em conta o fato de a simples reparação não evitar as vantagens e a rentabilidade que a violação da norma pode proporcionar. Ao fim e ao cabo, quando há apenas a dinâmica da compensação, tal como ocorre na atual aplicação do Código Civil Brasileiro, o descumprimento da lei pode constituir vantagem econômica interessante, que transforma o ferramental do direito em perverso artifício de obtenção de lucros ou benefícios indevidos.

Permitir ao direito privado tornar operativas as indenizações punitivas significa, em suma, possibilitar a este importante ramo do direito estender seu alcance e torná-lo mais eficaz na defesa de interesses metaindividuais.

A assertiva anterior demonstra ser hora de revisitar o modelo jurídico das sanções punitivas privadas, em especial para prevenir a violação de direitos da personalidade, a obtenção de lucro ilícito e os atentados a interesses difusos e coletivos.246 Como bem pondera Nelson Rosenvald247, nos ordenamentos vigentes:

(...) a adoção da pena no direito privado é uma exigência de integração ao sistema de uma tutela efetiva para aqueles casos em que o ressarcimento, pelo equivalente ou em forma específica, mostre-se pouco idôneo para prevenir determinadas formas de ilícitos civis. Portanto, ao invés de um retorno ao passado, representa um índice de evolução dos sistemas jurídicos.

Se o ordenamento jurídico não oferecer razões suficientes para desestimular a violação da norma, o descumprimento do contrato ou mesmo o uso de práticas nocivas, será impossível refrear os ímpetos daqueles que tiram proveito do ilícito.248

246

ROSENVALD, op. cit. p. 16. 247

op. cit. p. 16. 248

Ao tratar do tema, ESPÍNDOLA SANTOS, Adriano Barreto. O dano social e as funções punitivas e social da

responsabilidade civil. Dissertação apresentada como requisito à obtenção de grau de Mestre, no curso de

Mestrado em Ciências Jurídico-Civilistas/Menção em Direito Civil, ano letivo 2013/2015, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sob a orientação do Professor Doutor Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, Coimbra: 2015, p. 27) pondera: "As relações privadas devem submeter-se ao olhar cauto do Estado, sempre vinculadas às balizas de estrita observância ao direito fundamental da dignidade da pessoa humana. É dizer-se: todas as relações particulares devem girar em torno da dignidade da pessoa humana, como medida

A responsabilidade civil, portanto, não pode mais ficar arraigada na crença de que a função reparatória seja suficiente para reparar os danos causados ao lesado, censurar o comportamento do lesante, minimizar riscos de futuros danos e assegurar a prevalência da pessoa humana sobre o mercado.249 É preciso abrir espaço à indenização punitiva, instituto ao qual dedicaremos um pouco de nossa atenção.