CAPÍTULO III REPARAÇÃO DOS DANOS E INDENIZAÇÃO PUNITIVA
3.8 HIPÓTESES DE CABIMENTO DA INDENIZAÇÃO PUNITIVA
3.8.1. Ocorrência de dano extrapatrimonial
A aplicação da indenização punitiva no ordenamento jurídico brasileiro pressupõe a ocorrência do dano extrapatrimonial, notadamente a lesão a algum dos atributos inerentes à pessoa humana, na medida em que tal sanção "extrai seu fundamento diretamente dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção dos direitos ou atributos da personalidade".350
Com efeito, embora a teoria da indenização punitiva não seja necessariamente relacionada à ocorrência de danos, por falta de previsão legal expressa em nosso ordenamento, o veículo hábil à torná-la aplicável são os danos extrapatrimoniais, não engessados pela regra da indenização limitada à extensão do dano.351
A assertiva anterior exorta-nos a melhor ponderar o assunto sobre a regra contida no artigo 944, do Código Civil, o qual prescreve que a indenização é medida pela extensão do dano.
No âmbito do dano patrimonial, a regra não comporta maiores dúvidas, já que o
350
ANDRADE, Dano Moral e Indenização Punitiva ....op. cit. p. 262. 351
Como pondera ANDRADE (Dano Moral e Indenização Punitiva.... op. cit. p. 262): "Observe-se, contudo, que uma teoria da indenização punitiva, formulada independentemente das limitações e possibilidades inerentes a um determinado ordenamento jurídico, não tem que ser necessariamente relacionada com o dano moral. Não há, a priori, razão para excluir essa forma de sanção como resposta para o dano material. Em realidade, a experiência dos países integrantes da common law, notadamente a dos Estados Unidos, demonstra que a indenização punitiva encontra terreno fértil em situações não vinculadas ao dano moral (pelo menos não na concepção predominantemente dada a essa espécie de dano)."
prejuízo é facilmente aferível pelo método da diferença, ou seja, pela diferença entre o valor patrimonial atual e aquele que existiria se a obrigação tivesse sido cumprida ou se o evento danoso não tivesse ocorrido.
Essa fórmula, entretanto, segundo opinião de MARTINS-COSTA e PARGENDLER352, embora se afigure apropriada para os danos patrimoniais é inservível para os danos extrapatrimoniais, "terreno que continua pantanoso, pois parece impossível o encontro de critérios unitários, gerais e abstratos, aplicáveis à generalidade das situações".
SEVERO353 afirma ser bastante discutível a aplicação do princípio da reparação integral, esculpida no artigo 944, do Código Civil, aos danos não patrimoniais, face à ausência de comutabilidade entre essa modalidade de dano e a sua consequente reparação. Em harmonia com o entendimento anterior, REIS354, apoiado na doutrina de Alcino de Paula Salazar, obtempera a impossibilidade de exata estimação do dano como fator impeditivo da incidência da regra do artigo 944, do Código Civil, aos danos extrapatrimoniais.
GODOY355, ao comentar o artigo 944, do Código Civil, igualmente afirma a sua inaplicabilidade aos danos extrapatrimoniais, "pois despido de natureza ressarcitória ou reparatória". No entendimento do autor, por constituir vulneração a direitos da personalidade, a reparação dos danos extrapatrimoniais deve representar uma compensação à vítima e ao mesmo tempo um desestímulo ao ofensor, e, não sendo materialmente mensurável, o quantum reparatório não se subsume à regra do artigo 944, do Código Civil. No mesmo diapasão, apresentam-se as lições de FREITAS FILHO e LIMA356, NORONHA357 e ANDRADE358.
352
MARTINS-COSTA, Judith e PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e Abusos da Função Punitiva (punitive
damages e o Direito brasileiro). R.CEJ, Brasília, n. 28, p. 15-32, jan/mar.2005, p. 21.
353
SEVERO, Os danos Extrapatrimoniais ....op. cit. p. 199. 354
REIS, Clayton. Avaliação do Dano Moral, 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 152. 355
GODOY, Claudio Luiz Bueno, Código Civil Comentado, Doutrina e Jurisprudência, 3ª ed. revisada, Coord. Ministro Cezar Peluso. São Paulo: Editora Manole, 2009, p. 910.
356
FREITAS FILHO, Roberto e LIMA Thalita Moraes. Indenização Por Dano Extrapatrimonial com Função
Punitiva no Direito do Consumidor, in Revista de Direito do Consumidor, ano 22, vol. 87, mai/jun 2013, editora
Revista dos Tribunais, p. 93-122, p. 96. 357
NORONHA, Fernando. Responsabilidade Civil: Uma tentativa de ressistematização, in Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, n. 64, ano 17, abril/jun 1993, p. 12-47, p. 20: "Os danos patrimoniais são sempre reparáveis. E serão em princípio reparáveis em sua integralidade - é o que se costuma exprimir com a chamada teoria da diferença: a indenização será igual à diferença entre a situação atual do patrimônio do lesado e a hipotética em que estaria, se o dano não tivesse ocorrido. Quanto aos danos extrapatrimoniais, ou morais, existe controvérsia sobre a possibilidade de sua reparação. É que sofrimentos, físicos ou psíquicos, nunca podem ser 'apagados', nunca é possível repor o lesado na situação em que provavelmente estaria se não fosse o fato lesivo. (...) A teoria da diferença é que não faria sentido, nesta matéria".
Ao tratar do tema, BENACCHIO359 esclarece que embora o parágrafo único do artigo 944, do Código Civil, não permita compreender uma cláusula geral da função punitiva "em virtude da referência à limitação da indenização, é evidente a presença da relevância do grau de culpa que se prende à conduta culposa e não ao dano e, nessa perspectiva, pode ser utilizado como princípio para afirmação da presença da função punitiva da responsabilidade civil". Ademais, esclarece o autor, a previsão do parágrafo único do artigo 944, do Código Civil, demonstra ainda ser relevante o papel da culpa na reparação do dano, tal como se extrai da análise do artigo 494, do Código Civil Português, cujo conteúdo é de todo semelhante ao nosso.
LOURENÇO360 aduz que caso a responsabilidade civil estivesse desprovida de qualquer caráter punitivo, o grau de culpa do agente seria irrelevante na determinação do
quantum indenizatório. O artigo 494º, do Código Português, ao admitir indenização inferior
ao dano nos casos de culpa leve, "consubstancia uma manifestação da função sancionatória, repressiva ou punitiva e preventiva da responsabilidade civil".
Logo, como já tivemos oportunidade de verificar, a reparação dos danos extrapatrimoniais comporta a conjunção das funções compensatória e punitiva, e por força da flexibilidade da qual se reveste, é capaz de absorver e tornar operacional a indenização punitiva, mormente nos casos de danos à dignidade da pessoa humana.
Ao tratar do tema, BARATELLA361 afirma que muitas das fattispecie nas quais a jurisprudência norte-americana irrogam os punitive damages resultariam absorvíveis pelo dano não patrimonial, pois nesta espécie de dano a função punitiva é imanente.
Logo, não estando adstrito aos limites impostos pelo artigo 944, do Código Civil, e diante do evidente caráter punitivo do qual os danos extrapatrimoniais são imbuídos, sua presença autoriza, em casos específicos dos quais trataremos adiante, a aplicação de
358
ANDRADE, Dano Moral e Indenização Punitiva ... op. cit. p. 262. 359
BENACCHIO, Marcelo. A função punitiva da responsabilidade civil no Código Civil, in Temas Relevantes de Direito Civil Contemporâneo, Reflexões sobre os 10 anos do Código Civil, coord. Renan Lotufo, Giovanni Ettore Nanni, Fernando Rodrigues Martins. São Paulo: Editora Atlas, 2012, p. 666.
360
LOURENÇO, A função punitiva da responsabilidade civil ... op. cit. p. 252-253. 361
indenização punitiva que surta efeitos punitivos e dissuasórios ao lesante e à comunidade, a fim de evitar a reiterada prática de condutas lesivas.