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Preservação da Liberdade Contratual

CAPÍTULO III REPARAÇÃO DOS DANOS E INDENIZAÇÃO PUNITIVA

3.10 FINALIDADES DA INDENIZAÇÃO PUNITIVA

3.10.2 Preservação da Liberdade Contratual

A expressão "liberdade contratual" abarca, ao menos, dois sentidos primordiais: o sentido positivo e o sentido negativo.470 Na primeira acepção (positiva), a liberdade de contratar envolve a escolha de parceiros contratuais, a estipulação e modelagem do conteúdo

467

COUTO, Igor Costa; SALGADO, Isaura. Pesquisa Jurisprudencial: Os critérios quantitativos do dano moral segundo a jurisprudência do STJ. Orientação: Maria Celina Bodin de Moraes. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n. 1, jan.-mar./2013. Disponível em: <http://civilistica.com/criterios-stj/>. Data de acesso 21/11/2015. 468

É importante ponderar, no que toca às eventuais sentenças de improcedência em ações promovidas pelo lesado, que o insucesso da ação pode não estar relacionado à ausência de direito, mas às condições nas quais se desenvolveu o processo e toda a sorte de imponderabilidades que uma demanda implica. Logo, embora o lesado possa ter razão no seu pleito, isso não significará, necessariamente, êxito em eventual demanda. E isso também poderá (e certamente será) levando em consideração nas estatísticas daqueles que, maliciosamente, procurarem valer-se do descumprimento eficiente.

469

ANDRADE, André Gustavo de. Dano Moral e Indenização Punitiva. Os Punitive damages na experiência da

Common Law e na perspectiva do Direito Brasileiro, 2ª ed. atualizada em ampliada. Rio de Janeiro: Editora

Lumen Juris, 2009, p. 248. 470

contratual, a decisão quanto ao início da vinculação, a decisão de submeter a relação contratual a determinado tipo de disciplina e invocar em seu apoio os meios socialmente predispostos. Na segunda acepção (negativa), está envolvida a liberdade de não contratar, ou seja, o direito de se recusar a contrair qualquer tipo de obrigação, de rejeitar eventuais parceiros contratuais, assim como recusar quaisquer cláusulas e soluções coordenadoras ou disciplinadoras.471

Ambos os sentidos têm significativa relevância no contexto da liberdade individual, pois tão importante quanto poder travar relações contratuais é também optar por não fazê-lo. E qualquer das opções devem ser tuteladas e protegidas como expressão máxima, repita-se, da liberdade individual e da própria dignidade da pessoa humana.

Realizado o contrato, essa proteção desenvolve-se mediante a consagração e o respeito da vontade das partes, do conteúdo do contrato, da observância da boa-fé objetiva e dos deveres laterais correlatos. Aperfeiçoa-se, igualmente, com a garantia de mecanismos eficientes ao alcance da finalidade primordial das relações negociais: o adimplemento.

De outra banda, quando está em voga a liberdade contratual negativa, a tutela do ordenamento jurídico deve estar direcionada à preservação da vontade do agente de não querer travar ou assumir relações obrigacionais de qualquer natureza. Significa preservar o direito de não vinculação, assim como de não fazer circular, em sua esfera subjetiva, bens ou direitos, seja por não querer contraí-los, seja por não querer desfazer-se dos que lhe pertencem. Qualquer iniciativa que vise a romper com essa situação, por conseguinte, constitui apropriação ilícita do bem jurídico que o seu titular preferiu deixar fora de circulação.

Ocorre, todavia, que por intermédio de expediente conhecido como "curto-circuito do contrato" ou contractual bypass, o agente pode, voluntariamente, preferir apropriar-se de bem pertencente a terceiro e sujeitar-se às regras gerais da responsabilidade aquiliana, ao invés de contratar com o titular do bem ou mesmo respeitar o direito dele de não fazê-lo.472

471

Os exemplos relativos ao conteúdo da liberdade contratual positiva e negativa foram extraídos da obra de Fernando Araújo (Teoria Econômica do Contrato, op. cit. p 499-500).

472

LOURENÇO, Paula Meira. A Função Punitiva da Responsabilidade Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 179.

A invasão da esfera jurídica alheia decorrente daquela conduta ilícita "exclui do titular do bem usurpado a possibilidade de decidir se pretende ou não aliená-lo e lhe retira a condição de determinar quando, como e para quem o seu bem seria cedido".473

A ideia do curto-circuito do contrato está intimamente relacionada à função meramente reparatória da responsabilidade civil. Aqui, mais uma vez, há a fria e vil percepção do agente lesante de que poderá obter, por meio ilícito, o bem jurídico almejado e os lucros correspondentes, sem a necessidade de obedecer a ordem jurídica e, pagando, pela conduta lesiva cometida, tão-somente a importância relativa ao negócio jurídico.474

Perceba-se que a conduta inadmissível, do ponto de vista ético e jurídico, não passa incólume aos olhos da justiça, pois o eventual ajuizamento de ação pelo prejudicado certamente será profícua, atribuindo-lhe a respectiva indenização. O problema reside no fato

473

ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral e Indenização Punitiva. Os punitive damages na

experiência do Common Law e na perspectiva do Direito Brasileiro, 2ª ed. atualizada e ampliada. Rio de

Janeiro: Lumen Juris editora, 2009, p. 252. 474

Sobre o assunto, elucida-nos GALLO (Pene Private ... op. cit. p. 42) nos seguintes termos: "In questa prospettiva il problema non era più quelo di punire, funzione questa ormai completamente delegata agli organo dello Stato, ma esclusivamente quello di consentire la reintegrazione della condizione patrimoniale della vittima nella situazione precedente la comissione dell'illecito. Alla lunga questa evoluzione, nonchè l'affermarsi della funzione meramente risarcitoria della responsabilità civile, doveva altresì condurre ad un notevole avvicinamento tra contratto e responsabilità civile; se infatti scopo della responsabilità civile è quello di consentire nella misura più elevata possibile la reintegrazione della situazione patrimoniale antecedente la comissione dell'illecito, sarà possibile giungere a questo risultato rifondendo semplicemente il valore sottratto o distrutto. Analogamente in materia contrattuale in base ai dettami della giustizia commutativa si richiedeva la devoluzione di un corrispettivo il più possibile equivalente al valore dei beni alienati o dei servizi effettuati; il pretendere di più o di meno sarebbe stato contrario a giustizia in quanto produttivo di trasferimenti ingiustificati di ricchezza. Ma se cosí stanno le cose non è difficile rendersi conto della tendenzialle convergenza e sovrapposizione dei principi che presiedono agli scambi contrattuali e di quelli che operano in materia di responsabilità civile; chi desidera mangiare una mela può infatti acquistarla da un rivenditore pagando il prezzo convenuto in base al contratto, o semplicemente coglierla direttamente dal ramo salvo a dover devolvere al porprietario una somma pari al valore di mercato della mela a titolo di risarcimento del danno."

Tradução livre: Nesta perspectiva o problema não era mais aquele de punir, função esta já completamente delegada aos órgãos do Estado, mas exclusivamente aquela de consentir a reintegração da condição patrimonial da vítima na situação precedente à ocorrência do ilícito. Ao longo dessa evolução, além da afirmação da função meramente ressarcitória da responsabilidade civil, devia outrossim conduzir a uma notável aproximação entre contrato e responsabilidade civil; se de fato o escopo da responsabilidade civil é consentir na medida mais elevada possível a reintegração da situação patrimonial antecedente ao cometimento do ilícito, será possível chegar a esse resultado recompondo simplesmente o valor subtraído ou destruído. Analogamente em matéria contratual com base nos ditames da justiça comutativa se requeria a devolução de uma compensação o mais equivalente possível ao valor do bem alienado ou dos serviços efetuados; o pretender de mais ou de menos seria contrário à justiça em quanto produtivo de transferência injustificada de riqueza. Mas se assim estão as coisas não é difícil ter em conta da tendência de convergência e sobreposição dos princípios que presidem a troca contratual e daqueles que operam a responsabilidade civil; quem deseja comer um melão pode de fato adquiri-lo de um revendedor pagando o preço convencionado no contrato, ou simplesmente colhê-lo diretamente do ramo, ressalvado o dever de devolver ao proprietário uma soma equivalente ao valor de mercado do melão a título de ressarcimento do dano.

de tal condenação ser insuficiente, pois não desestimula o ofensor a incorrer no ilícito, dado que a indenização reparatória se mostra vantajosa do ponto de vista econômico. Para bem ilustrar essa situação de extrema iniquidade, vamos recorrer a dois exemplos emblemáticos, colhidos na doutrina consultada.

O primeiro deles, de origem norte-americana, é representado pelo leading case Midler v. Ford Motor Co.475, o qual opôs a cantora e atriz Bettie Midler à Companhia Ford.476 A Ford pretendia encetar contrato com a atriz Bettie Midler para que ela participasse de campanha publicitária televisiva de um de seus veículos. O acordo não chegou a ser firmado, por divergências relativas à quantia a ser paga à atriz, frustrando as expectativas daquela montadora de veículos. Diante da citada recusa, a Ford procurou cantora que atuava na banda de Bettie Midler para que imitasse a sua voz. A tarefa foi desempenhada com tamanha perfeição que a maioria do público ficou convencida da participação da famosa cantora na campanha publicitária.

ANDRADE relata caso similar julgado no Tribunal do Rio de Janeiro.477 Conta o autor que a Confederação Brasileira de Futebol ajuizou ação indenizatória em face da empresa Brahma Chopp, em virtude do uso indevido e sem consentimento da imagem da seleção brasileira de futebol em maciça campanha publicitária televisiva. A ação continha pleito de condenação da cervejaria no pagamento de indenização por danos materiais (sob a forma de lucros cessantes) e danos morais.478 Embora a demanda tenha sido julgada procedente em primeira instância, o Tribunal Fluminense reformou-a para excluir a verba fixada a título moral, "sob o argumento de que o uso indevido da imagem da equipe não configurava dano dessa natureza".479

Ambos os casos são ilustrativos da figura do curto-circuito contratual e da gravidade de suas consequências para o titular do direito, para a sociedade e para terceiros específicos que detenham alguma relação com o lesado (como ocorreria caso a Confederação Brasileira de Futebol tivesse cedido, por contrato e com exclusividade, para terceiro, o uso da imagem

475

Midler v. Ford Motor Co., 849 F.2d 460 (9th Cir. 1988), United States Court of Appeals for the Ninth Circuit

476

LOURENÇO, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, op. cit. 179. 477

ANDRADE, Dano Moral e Indenização Punitiva ..., op. cit., p. 254-255. 478

Processo nº 22.777/95, 40ª Vara Cível do Rio de Janeiro, j. 24.2.1997. Tribunal do Rio de Janeiro, Apelação Cível nº 2.940/97).

479

da seleção canarinho).

Ademais, o próprio contrato, como instituto, fica desprestigiado, na exata medida em que se mostra ineficaz como instrumento de tutela da vontade das partes, de circulação de riqueza e de valorização e promoção da dignidade da pessoa humana.

A decadência institucional do contrato decorre da crença de que a simples restituição (ou pretensa restituição) do lesado ao status quo ante é suficiente para estimular o uso e preservar a higidez do instituto. Oportunas, nesse sentido, as considerações de LOURENÇO480 ao asseverar:

O curto-circuito do contrato denuncia que a função ressarcitória da responsabilidade civil é insuficiente para persuadir o agente a obter o consenso negocial. Se a responsabilidade civil tiver um escopo meramente ressarcitório, a quantia que o infractor tem de pagar a título de indemnização ex post é equivalente (ou até inferior) ao que presumivelmente seria necessário desembolsar ex ante para obter o consentimento do lesado na celebração de um negócio, pelo que seguir uma via ou outra é completamente indiferente (ou até é pior pagar o 'preço do consentimento')".

Para GALLO481, o escopo exclusivamente reparatório da responsabilidade civil resulta perigosa aproximação desse instituto com o contrato, vez que qualquer pessoa que deseje um bem poderá adquiri-lo ou apropriar-se dele diretamente, mediante o pagamento do equivalente de mercado em dinheiro, a título de ressarcimento do dano. Por tal motivo, é necessária a concessão da indenização punitiva, com o fito de reforçar a tutela do titular do crédito e de marcar com matizes mais vibrantes a divergência entre responsabilidade civil e contrato. Como bem enfatiza o autor italiano:

Se infatti in caso di esproprio involuntario vengono concessi i danni punitivi ne risulterà di fatto privilegiata la via contrattuale. La possibilità che vengano comminate penali in caso di commissione di illeciti dolosi, e cioè di appropriazione del diritto al di fuori di uno scambio volontario, viene di fatto a riaprire uno iato tra responsabilità civile e contratto, rendendo in ogni caso più appetibile seguire la via del scambio volontário.

Ecco quindi como le pene private valgano di fatto a scoraggiare la via dell'esproprio involontario, rendendo di gran lunga preferibile dell'accordo volontario.482

480

LOURENÇO, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, op. cit. 180. 481

GALLO, Pene Private ... op. cit. p. 67-68. 482

GALLO, Pene Private ... op. cit. p. 68.

Tradução livre: Se de fato, em caso de expropriação involuntária são concedidos os danos punitivos, disso resultará, de fato, privilegiada a via contratual. A possibilidade de serem cominadas penas em caso de ocorrência de ilícito danoso, isto é de apropriação do direito fora de uma troca voluntária, vem de fato reparar um hiato entre a responsabilidade civil e o contrato, rendendo em todo caso mais apetecedor seguir a via da troca

Logo, é de fundamental importância a função retributiva da indenização punitiva para fazer face às situações nas quais o agente não encontra desestímulo para cessar a violação de direitos de terceiros, bem como para reforçar a importância do acordo voluntário na circulação de riquezas e no desenvolvimento da personalidade humana.