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A expressão “Fundos de Conhecimento” (Funds of Knowledge) é de origem antropológica. De acordo com Hogg (2011), esse termo foi primeiramente utilizado por Wolf, em 1966, que o definiu como os recursos e conhecimentos que os familiares necessitam manipular para enfrentarem os problemas cotidianos relacionados com a

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economia do lar, como por exemplo, os fundos calóricos, os fundos sociais e os fundos cerimoniais.

Nesse estudo, o termo Funds of Knowledge foi traduzido como Fundos de Conhecimento, pois, esses fundos se referem às origens do conhecimento, incluindo o matemático, que foi previamente adquirido pelos alunos em ambientes formais e informais de aprendizagem. Por outro lado, Velez-Ibanez (1988) apud Hogg (2011) argumentam que outros componentes desses fundos incluem informações com relação ao acesso às instituições de assistência, programas escolares, auxílios legais, rotas de transporte, oportunidades ocupacionais e também na aquisição de serviços e mercadorias essenciais.

É importante enfatizar que a definição de fundos de conhecimento vem sendo modificada por diversos autores, sendo que esse conceito vem sendo ampliado para incluir os conhecimentos da comunidade, não se restringindo, portanto, às famílias e ao contexto familiar. Nessa perspectiva, Hogg (2011) argumenta que existem diferentes definições para os fundos de conhecimento, pois os pesquisadores trabalham com uma gama variável de contextos a serem considerados. Assim, a imposição de uma limitação para essa definição pode ser inadequada para determinados propósitos e situações. Nesse sentido, Hogg (2011) em seu artigo encoraja “(...) os pesquisadores a articularem completamente a definição que sustenta o próprio trabalho. Essa prática permitirá que cada estudo seja claramente localizado no trabalho, apoaindo o desenvolvimento coerente e claro de novos campos do conhecimento” 35 (HOGG, 2011, p.673).

Diante desse contexto, neste estudo, definem-se fundos de conhecimento como sendo os conhecimentos intrínsecos a determinados grupos socioculturais, que são necessários para a sobrevivência dos membros de um determinado grupo cultural e que são transmitidos de geração em geração. Considera-se, nesta pesquisa, que os grupos socioculturais também são formados pelos alunos em uma sala de aula, composta por diferentes grupos culturais que possuem características peculiares e únicas. Dessa maneira, amplia-se a definição de Moll et al (1992) para os fundos de conhecimento, considerando como grupos socioculturais o ambiente familiar dos alunos, a comunidade

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I encourage researchers to fully articulate the definition which underpin their work. This practice will

enable each study to be located clearly within the body of work, and support coherent and clear development of new knowledge in the field.

escolar e outros ambientes nos quais a aquisição do conhecimento é desencadeada formal e informalmente.

Há também o estudo conduzido por Moll et al (1992) na fronteira do México com os Estados Unidos, no qual definiram o termo funds of knowledge como sendo os conhecimentos acumulados e historicamente passados de indivíduo a indivíduo, no ambiente familiar. Esses são os conhecimentos necessários para que os membros de uma família possam realizar as atividades cotidianas, portanto, restrito ao contexto familiar. O estudo desses autores tinha como objetivo desenvolver inovações no ensino da Matemática que levassem em consideração alguns aspectos das habilidades e dos conhecimentos encontrados nos afazeres dos componentes da família dos alunos. Para desenvolver o trabalho proposto, esses autores realizaram uma pesquisa essencialmente qualitativa, na qual utilizaram:

(...) uma combinação de observações etnográficas, estratégias de entrevistas aberta e fechada, histórias de vida e estudos de caso que, quando combinados analiticamente, podem retratar com precisão as funções complexas das famílias em seus contextos social, e histórico (MOLL et al, 1992, p. 123, tradução nossa)36.

Com esse levantamento dos dados, foi possível que os pesquisadores conhecessem os alunos em maior profundidade e, assim, aprendessem sobre o cotidiano desses alunos e de seus familiares. Moll et all (1992) estudaram as atividades que os pais e os familiares dos alunos realizavam no trabalho e, também, quais tarefas eram normalmente desenvolvidas em casa em suas obrigações diárias. Essas informações serviram como ponto de partida para que esses pesquisadores elaborassem aulas por meio das quais providenciassem um aprendizado mais prazeroso e com significado para os alunos. Assim, os professores utilizaram os fundos de conhecimento dos alunos para acessar importantes ideias e procedimentos matemáticos congelados e provenientes das práticas cotidianas realizadas pelos seus familiares.

De acordo com Gerdes (1988), a matemática congelada é caracterizada pelas ideias, conceitos, procedimentos e práticas matemáticas que estão escondidos no processo de confecção de produtos culturais, como por exemplo, as cestarias e os brinquedos, no processo de construção das casas e no desenvolvimento de uma

36We utilize a combination of ethnographic observations, open-ended interviewing strategies, life histories, and case studies that, when combined analytically, can portray accurately the complex functions of households within their socio-historical contexts.

simbologia matemática para facilitar a aplicação de conceitos algébricos. Rosa e Orey (2009) afirmam que, embora, muitas vezes, não haja um registro histórico-acadêmico sobre a origem desses objetos culturais, os artesãos e os construtores empregam princípios matemáticos para a confecção ou construção desses objetos. Dessa maneira, as tradições matemáticas, presentes nesses objetos, oferecem investigações matemáticas interessantes que podem auxiliar os alunos a entenderem a herança cultural presente na História da Matemática, bem como os conceitos necessários para a compreensão da Matemática acadêmica.

Gonzáles, Andrade, Civil e Moll (2001) afirmam que os fundos de conhecimento podem ser considerados como os corpos de conhecimento historicamente acumulados e as habilidades essenciais desenvolvidas para o bom funcionamento dos afazeres domésticos bem como para o bem-estar familiar. De acordo com Moll et al (1992), a utilização dos fundos de conhecimento dos alunos possui relevância para o ensino e para a aprendizagem em Matemática, pois esses são conhecimentos específicos que estão vinculados às atividades cotidianas desempenhadas pelos integrantes de um determinado grupo cultural e que podem ser incorporados nas atividades curriculares de Matemática, desenvolvidas em salas de aula.

De acordo com Rosa (2010), para que os professores tenham consciência sobre os fundos de conhecimento dos alunos, é importante que esses professores os conheçam com maior profundidade, mantenham contato, frequentem os mesmos lugares, visitem as suas casas e conheçam a comunidade na qual esses alunos estão inseridos. Nessa perspectiva, Gonzáles et al (2001) ressaltam que é importante que os professores aventurem-se nas famílias dos alunos e em suas comunidades, porém, não como professores, tentando transmitir informações educacionais, mas como aprendizes, procurando entender a maneira como os alunos e os seus familiares atribuem sentido à suas vidas cotidianas.

Como todas as famílias possuem uma cultura e um conhecimento próprio muito vasto, variado e diversificado, é importante que os professores conheçam, compreendam e entendam alguns aspectos dessa cultura para que possam melhor intervir na construção do conhecimento matemático pelos alunos. Nesse sentido, Moll et al (1992) afirmam que essa abordagem “(...) também envolve a análise da história social das famílias, suas origens e desenvolvimento, e mais proeminentemente, para os nossos

propósitos, a história do trabalho das famílias, que revelam acumulados corpos de conhecimento domésticos” 37

(p. 133, tradução nossa).

Esses conhecimentos são necessários para a sobrevivência dos membros dentro dos grupos. Rosa (2010) afirma a importância de que os alunos sejam percebidos pelos professores como um todo pertencente a uma cultura específica; um todo possuidor de conhecimentos próprios. Assim, os professores, ao se familiarizarem com os conhecimentos dos alunos, não os verão como um simples número em sala de aula, mas como parte essencial do ambiente escolar, pois, dessa maneira, conseguem entendê-los profundamente. No entanto, a falta dessa percepção, torna difícil a tarefa de contextualizar e trazer o cotidiano dos alunos para o currículo escolar, pois os professores não dispõem de meios pedagógicos adequados para que, por meio dos conteúdos curriculares, possam entender as dificuldades epistemológicas que foram desenvolvidas pelos alunos, na trajetória cotidiana e escolar.

Contudo, para Moll et all (1992), usualmente, as aulas ministradas estão desvinculadas do contexto sociocultural dos alunos, pois:

(...) em contraste com as famílias e suas redes sociais, as salas de aula parecem encapsuladas, se não isoladas, do mundo social e recursos da comunidade (...), os professores raramente utilizam os recursos dos “fundos de conhecimento” do mundo da criança fora do contexto da sala de aula 38 (p. 134, tradução nossa).

Como consequência dessa abordagem pedagógica, os alunos deixam de ser protagonistas do processo de ensino e de aprendizagem em Matemática. Porém, Radford e Grenier (1996) argumentam que é necessário que os alunos sejam ativos nesse processo para que eles próprios busquem o conhecimento e a representação matemática por meio de sua simbologia. Moll et al (1992) afirmam que, em casa, os alunos não são personagens passivos de um aprendizado padronizado, como ocorre na escola, mas participantes ativos das atividades mediadas pelas relações sociais.

37It also involves analyzing the social history of the households, their origins and development, and most prominently for our purposes, the labor history of the families, which reveals the accumulated bodies of knowledge of the households.

38Additionally, in contrast to the households and their social networks, the classrooms seem encapsulated, If not isolated, from the social worlds and resources of the community (…) teachers rarely draw on the resources of the “funds of knowledge” of the child’s world outside the context of the classroom.

Gonzales et al (2001) consideram que as relações sociais dos alunos com o mundo são fatores de grande importância para o próprio desenvolvimento interacional e intelectual, visto que:

(...) os seres humanos e os seus mundos sociais são inseparáveis – eles estão incorporados um no outro. Então, o pensamento humano é irredutível às propriedades individuais. Ao invés disso, está sempre mediado, distribuído entre as pessoas, as definições, os artefatos, as atividades 39 (p. 122, tradução nossa).

Dessa maneira, de acordo com Fauvel (1991), a História da Matemática pode ser considerada como uma ponte entre os ambientes escolar e sociocultural dos alunos, na medida em que percebem que a Matemática é uma criação humana. Então, Rosa (2010) afirma que, nesse caso, as aulas de Matemática não se tornam isoladas do mundo, pois os professores podem utilizar os conhecimentos prévios dos alunos para aproximar o aprendizado acadêmico da vida prática.

De acordo com Mendes (2006), uma das maneiras de tornar os alunos mais ativos, no processo de ensino e de aprendizagem da Matemática, é mediante a utilização da História da Matemática em sala de aula. Assim, é importante que a História da Matemática seja “utilizada a partir de situações desafiadoras e provocadoras da criatividade, da imaginação e da autonomia dos estudantes com relação à busca de seu próprio conhecimento matemático” (MENDES, 2006, p. 129-130).

Diante dessa perspectiva, as atividades curriculares que buscam, na História da Matemática, os argumentos necessários para relacionar os fundos de conhecimento dos alunos com a Matemática escolar, podem auxiliar a responder algumas questões pedagógicas relacionadas com a prática pedagógica dos professores. Moll et al (1992) questionaram como os professores podem utilizar os fundos de conhecimento em suas práticas pedagógicas curriculares. Nesse sentido, primeiramente, existe a necessidade de que os professores considerarem os fundos de conhecimento dos alunos. No entanto, para que os professores tenham consciência sobre esses conhecimentos, é importante que os alunos:

(...). elaborem um diário por um dia, uma semana, ou por algum período determinado de como eles e os outros utilizam Matemática. Os professores, então, coletam essa informação e a utiliza como base

39Human beings and their social worlds are inseparable – they are embedded in each other: thus human thinking is irreducible to individual properties. Instead, it is always mediated, distributed among persons, artifacts, activities, and settings.

da qual podem criar contextos para a resolução de problemas e atividades culturalmente relevantes.40 (OREY e ROSA, 2008, p. 33, tradução nossa).

A partir dessa abordagem pedagógica, o conhecimento que os professores adquirem a respeito do contexto sociocultural dos alunos pode auxiliá-los na preparação e elaboração das atividades curriculares necessárias para o aproveitamento adequado das aulas de Matemática. Assim, Moll et al (1992) afirmam que um aspecto importante da participação dos professores na pesquisa familiar é o desenvolvimento de um entendimento sofisticado que são adquiridos sobre as experiências cotidianas de seus alunos e que podem ser úteis na elaboração de atividades curriculares em sala de aula. O entendimento de como as famílias interconectam os meios nos quais vivem com os fundos do conhecimento pode ser utilizado para conectar esse conhecimento às atividades curriculares da matemática escolar (ROSA, 2010).

Assim, a partir do meio em que vivem, é importante que os alunos sejam incentivados a criarem as suas próprias linguagens para que possam relacioná-las com a linguagem e o simbolismo tradicionalmente utilizado na matemática acadêmica. Nesse sentido, Radford e Grenier (1996) afirmam que “a interação entre os símbolos e as ideias deveria, em nossa opinião, ser vista como um sistema de relações constituídas pelo próprio indivíduo através de um caminho intelectual, ao mesmo tempo social e individual.” 41 (p.254, tradução nossa).

Nesse sentido, Gonzáles et al (2001) afirmam que, conhecer o contexto familiar também é importante para que se possa buscar respostas a questões do tipo:

O que conta como matemática? Como podemos encontrar matemática nas famílias que são economicamente marginalizadas? Como podemos ajudar os pais e comunidade a se verem como matemáticos “fazendo” matemática na vida diária? (p.119, tradução nossa).

No entanto, a utilização dos fundos de conhecimento dos alunos, nas aulas de Matemática, é uma tarefa desafiadora, pois os professores possuem dificuldades para auxiliá-los a acessarem esses fundos. Rosa (2010) afirma que essas dificuldades surgem

40keep a log for a day, a week, or some other period of time of how they or others use mathematics. Teachers then take this information and use it as a base from which to create contexts for problem solving and culturally relevant activities.

41l’interaction entre les symbols et les idées devrait, d’après nous, être vue comme un système de relations contruites par l’individu lui-même dans son cheminement intellectual, à la fois social et individual

em virtude da quantidade de turmas que os professores possuem, dificultando, assim, o entendimento dos conceitos matemáticos presentes nesses conhecimentos, em virtude da diversidade cultural presente em sala de aula. Nesse contexto, Gonzáles et al (2001) afirmam que existe a necessidade de um “aprofundamento teórico em como os fundos de conhecimento podem ser aplicados no domínio da Matemática” (p. 120), pois “a transferência linear do conhecimento matemático das famílias para a sala de aula é problemático” 42 (p. 120). Assim, Gonzáles et al (2001) revisaram as “entrevistas familiares para salientar as histórias de trabalho que poderiam ser ricas em potencial matemático” 43 (p. 119).

Por outro lado, para o aprofundamento das pesquisas sobre as relações dos fundos de conhecimento com a matemática escolar, existe a necessidade de que se recorra à História da Matemática. Essa abordagem é necessária, pois é possível que o desenvolvimento dos alunos em relação à Matemática depende do ambiente cultural, no qual eles estão inseridos da mesma maneira que a construção do conhecimento matemático está inserida em um ambiente cultural. Essa abordagem é importante para o desenvolvimento do conhecimento matemático, principalmente para a negociação dos símbolos utilizados na matemática acadêmica. Radford (1997) afirma que “(...) como a perspectiva sociocultural sugere, o conhecimento é um processo no qual o produto é obtido através da negociação de significados, aos quais os resultados da atividade cultural do indivíduo estão incorporados” 44 (p. 32, tradução nossa).

De acordo com esse contexto, Radford (1997) argumenta que a História da Matemática tem muito a oferecer para a epistemologia da Matemática, pois essa disciplina pode ser considerada como uma negociação de significados que depende da atividade histórica e cultural dos alunos. Assim, Rosa (2010) enfatiza que é importante que se discuta a inserção dos aspectos culturais dos alunos no ensino da Matemática, para que possam perceber como a cultura modifica(ou) e influencia(ou) a atividade

42We were in need of further theorizing on how funds of knowledge could be applicable within the domain of mathematics. We had found that a linear transference of mathematical knowledge from household to classroom was problematic.”

43What counts as mathematics? How can we find mathematics within households that are economically marginal? How can we help parents and communities see themselves as mathematicians, “doing”. mathematics in their everyday lives? (…) The household interviews were revised to highlight labor histories that could be rich in mathematical potential.

44I think that if, as the socio-cultural perspective suggests, knowledge is a process whose product is obtained through negotiation of meaning which results from the social activity of individuals are embedded.

Matemática, através da história. No entanto, não é somente a cultura dos alunos que deve ser considerada no ensino e na aprendizagem em Matemática, mas, também, os seus fundos de conhecimento, que são transmitidos, no ambiente familiar, de geração em geração.

Porém, para que essa abordagem pedagógica seja implantada satisfatoriamente, é importante que os professores também utilizem, dentre outras teorias45, a Teoria da Pedagogia Culturalmente Relevante, que é baseada na inclusão de referências culturais que os alunos trazem de casa e da comunidade (HOWARD, 2003). Assim, é importante que os professores utilizem a cultura dos alunos como um veículo pedagógico para o ensino e a aprendizagem da Matemática (LADSON-BILLINGS, 1995a).