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CAP II – A EMPRESA

3. Segunda fase – 1944 a

3.1. Passagem a sociedade por quotas Ld.ª

3.2.1. A “galinha que põe ovos de ouro”

Vamos um pouco atrás e recordemos o Relatório de Prevenção de Sinistros de 1 de Novembro de 1964, já referido no subcapítulo 3.2. Ele era muito severo quanto às condições de trabalho fabril. Em tom de crítica construtiva, apontava falhas graves na prevenção de acidentes de trabalho: falta de uso de meios de protecção individual,

185 Idem, p. 25.

186 Veja-se a extensa nota de imprensa da Câmara Municipal de Torres Vedras, publicada no semanário

Badaladas em 10 de Setembro de 1966, com o título “Tempo de acordar”, na qual se enunciam as iniciativas

camarárias. Em dada altura, refere: «(…) adquiriu-se terreno no valor de 330 contos, para a abertura e alargamento do acesso à zona industrial, dada a urgência em servir as novas fábricas Hipólito.»

exiguidade de espaço de muitas secções, arejamento e iluminação deficientes. A visita desta inspecção não terá sido alheia a alguma má fama da fábrica quanto às condições de trabalho, de que ainda hoje os mais antigos nos falam187.

Era evidente a necessidade de renovação das instalações fabris da Casa Hipólito. Além disso, a empresa enfrentava sérios problemas com a falta de espaço para a contínua expansão da sua actividade. Impôs-se à gerência a necessidade de olhar para os arredores da vila, buscando terrenos adequados e disponíveis. Estudou a hipótese da Quinta das Fontainhas, a seguir ao Aqueduto, na estrada para Runa, que logo se gorou, e acabou por se fixar na chamada Várzea de Arenes, margem direita do Sizandro, no início da estrada que leva ao Maxial, Vilar e Cadaval. Fizeram-se as primeiras aquisições de terrenos e em 1960 a decisão de se construir uma nova fábrica naquela área já estava em marcha quando a empresa informou a Câmara Municipal que aceitava “aterro sem lixo e em qualquer quantidade” no terreno a ela destinado188. A construção, ali, de novos pavilhões estava prestes a iniciar-se. Porém, a Câmara Municipal, a braços com falta de recursos financeiros, considerou que não podia arcar sozinha com a construção dos acessos àqueles terrenos - que, mais tarde, viriam a constituir-se como o parque industrial de Arenes. Além do pedido ao Estado, solicitou a comparticipação da Casa Hipólito em 200 contos, sem a qual não daria “início aos trabalhos de terraplanagem e pavimentação a betuminoso do acesso em causa” (Actas da Câmara Municipal em 1965 e 1966)189. A empresa, porém,

não concordou com isso e fez constar que estava disposta a migrar para outro concelho, para um terreno que já tinha adquirido, à entrada da Malveira, no vizinho município de Mafra. Iniciou-se, assim, um processo de braço de ferro que acabou por gerar forte polémica no jornal Badaladas, num conjunto de artigos de opinião publicado entre 26 de Junho de 1965 e 8 de Janeiro de 1966.

Em boa verdade, a questão já fora levantada em 7 de Dezembro de 1963 nas páginas do Badaladas, num artigo assinado pelo Dr. Moura Guedes e que se intitulava: «O

problema da Casa Hipólito». No meio de considerações genéricas sobre a legitimidade

187 Alguns anos depois, em 1971, uma explosão num dos Pavilhões da fábrica, provocou a morte do operário Vitor Manuel Ferreira da Costa. Único acidente mortal ocorrido na Casa Hipólito, a ele se referiu Luís Fortes no seu depoimento, sem saber precisar data exacta. Dadas as circunstâncias estranhas em que terá ocorrido, o facto foi abafado, o que explica em parte o apagamento desta memória.

188 No jornal Badaladas de 1 de Agosto de 1960 lê-se o seguinte anúncio: «ATERRO / Recebe-se aterro sem lixo / Informa: / CASA HIPÓLITO LDª»

189 Na altura em que redigimos esta dissertação, as actas da Câmara Municipal estavam a ser dactilografadas / digitalizadas, o que nos impediu de anotar as datas exactas das deliberações aqui referidas. Apenas dispusemos de um levantamento por anos, facultado pelas funcionárias responsáveis por aqueles trabalhos, às quais muito agradecemos.

dos direitos e deveres em confronto, da parte da Casa Hipólito e da Câmara Municipal, o articulista apontava o cerne do problema:

Cremos que foi infeliz a aquisição de terreno para o Bairro Industrial, atento o facto de ser de aluvião, o que encarece as construções, e de estar rodeado de pessoas que certamente procuram aproveitar-se da oportunidade para valorizarem demasiadamente as sua courelas.

A isto acresciam os custos de urbanização do local. O autor entendia assim como natural que a empresa pensasse numa “sucursal noutra região onde o terreno fosse mais favorável e o custo da obra muito inferior.” Terminava apelando para que as forças em presença encontrassem “uma solução que não seja prejudicial e desagradável para o concelho.”

A polémica estalou um ano e meio depois. Em 26 de Junho de 1965, surgiu na primeira página do Badaladas um artigo com um título bombástico: «TORRIENSES!

salvem a “Galinha que põe ovos de Ouro”».

Figura 38 - Início da polémica

Era seu autor João da Costa Miranda, torriense do Varatojo, emigrado há 40 anos na Argentina, onde se tornara um industrial de mérito, que viera passar uma temporada a Portugal. Usando uma linguagem emotiva, chamava a atenção para o que considerava uma tragédia que estava prestes a acontecer. Numa visita às novas instalações de Arenes, ouvira de António Hipólito Júnior, gerente da fábrica, queixas amargas contra a Câmara Municipal que dificultava a resolução de problemas da empresa. A tragédia era que a

Casa Hipólito já adquirira 30 hectares num concelho vizinho e projectava mudar-se para

lá. Em tom melodramático, lembrando os grandes benefícios proporcionados por uma grande empresa como a Hipólito, interrogava: “Teve de vir um torriense de tão longe para

ver a gravidade desta situação?” E clamava, já no final: “Não deixem escapar das mãos uma indústria tão próspera! (…) Tenham um só ponto de mira: a grandeza de Torres Vedras – Salvem «a galinha que põe ovos de ouro».”

Naturalmente este artigo teve resposta imediata na semana seguinte, em 3 de Julho, da parte da Câmara Municipal de Torres Vedras que emitiu um Comunicado. Em tom conciliatório, elogiava o bairrismo do ilustre emigrante mas lamentava que, depois das queixas que ouvira ao gerente da Casa Hipólito, não se tivesse informado junto da Câmara e dos Serviços Municipalizados acerca da pertinência das mesmas. Se o tivesse feito, saberia que a Casa Hipólito pedira tarifas de energia eléctrica mais baixas para seu uso exclusivo e que os Serviços Municipalizados submeteram esse pedido à aprovação superior desde que tais tarifas fossem aplicadas a todos os industriais torrienses. E que, a ser aceite tal pedido, o Município perderia o modesto lucro anual, com prejuízo para a generalidade da população, nomeadamente a da zona rural que esperava pela electrificação pública. Lembrava depois os vários pedidos já feitos pela Casa Hipólito e que haviam sido concedidos. Mas recordava outros que o não puderam ser porque implicariam um tratamento de privilégio, inadmissível para uma empresa que tinha muitos milhares de contos de lucro.

Na semana seguinte, em 10 de Julho, João da Costa Miranda respondeu com um pequeno texto agradecendo a gentileza da resposta camarária mas invocando que apenas pretendera “lançar um grito de alarme”. Não ouvira as duas partes em litígio porque entendia não ter o direito nem a autoridade moral para fazer de árbitro.

Uma semana depois, em resposta ao Comunicado da Câmara de 3 de Julho, surgiu em “Cartas ao Director" um extenso texto no qual João Alexandre Moreira, antigo responsável pelos Serviços Municipalizados, contestava as opções da Câmara em relação às tarifas eléctricas cobradas à Casa Hipólito. E recorria a dados estatísticos para provar a sua opinião.

Em 21 de Agosto foi a vez de o Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados contestar o teor do texto de João Alexandre Moreira. Evocava a complexidade do problema dos tarifários da electricidade, mostrava outros dados estatísticos e provava que o novo tarifário era mais rentável para o Município.

Sendo Verão, o assunto hibernou. Teremos de esperar pelo jornal de 25 de Dezembro de 1965 para lermos um novo e muito extenso texto do tal emigrante, João da Costa Miranda. Em destaque na primeira página e com recurso a pontos de exclamação, titulava:

“Na iminência de uma enorme e irreparável perda! Torrienses! Intentem salvar a

«galinha que põe ovos de ouro» ”.

Lamentava que se tivesse transformado em letra morta o seu grito de alerta, seis meses atrás, e entrava numa análise detalhada dos vários aspectos do problema para propor a criação de uma comissão idónea que estudasse o problema e investigasse, sem demoras burocráticas “se tudo isto é falso alarme ou se o concelho de Torres Vedras está realmente prestes a perder um dos seus fortes pilares.”

Uma semana depois, em 1 de Janeiro de 1966, assinada por Moura Guedes, surgiu a reacção a este texto, intitulada «Resposta a um apelo». O autor recordava que o problema central de toda esta questão era o dos acessos viários à nova fábrica de Arenes os quais implicavam a compra ou a expropriação de terrenos de vários proprietários. E apontava: “O Sr. João Miranda não faz a mais pequena ideia do trabalho que isso representa”. Lembrava que, reconhecendo o valor e importância da Casa Hipólito, o Município devia olhar para a totalidade do território e da população concelhios. E dizia claramente que “até hoje, nenhuma outra empresa de Torres Vedras exigiu e obteve da Câmara Municipal qualquer esforço ou sacrifício que, de longe, se parecesse com aqueles que tem feito pela Casa Hipólito.”

João da Costa Miranda estava prestes a partir para a Argentina mas ainda escreveu um terceiro e último artigo, publicado em 8 de Janeiro de 1966: «Mais um apelo –

Torrienses!». Ao tom dramático dos artigos anteriores juntava o sentimento de amargura

por ver que os seus argumentos não haviam suscitado respostas capazes mas apenas meias tintas, paninhos quentes, ironias jocosas, observações descabidas. Nada mais lhe restava senão dar por terminada a sua missão “nesta lamentável e espinhosa controvérsia (…) agradecer as atenções recebidas e desejar de todo o coração que a luz se faça nas vossas mentes…” Terminava em acorde crescendo, citando o que a mãe do último rei mouro de Granada dissera ao filho, ao vê-lo chorar pela perda irreparável do seu reino: “Chora agora como criança por aquilo que não soubeste defender como homem.”

Podemos avaliar a pertinência e oportunidade desta polémica, sabendo que ela teve larga repercussão no meio torriense, como não podia deixar de ser numa urbe de reduzida dimensão, apertada nas malhas do que é hoje o seu Centro Histórico, e em que os contendores eram instituições e pessoas bem conhecidas no meio. O destino da Casa

impressionante número de 1044,190 era decisivo para o tecido económico da vila e do

concelho.

Porém, é de estranhar o facto de esta polémica se ter iniciado e desenvolvido no tempo em que já estavam a ser construídos os primeiros edifícios da C. Hipólito em Arenes – o que não transparece nos textos. Só encontramos uma explicação: as construções que estavam em marcha surgiam numa área inóspita, em que ainda estava tudo por fazer quanto aos arruamentos. O que havia eram caminhos lamacentos que levavam a construções inacabadas, tudo com um ar precário e disperso, pouco animador. Por outro lado, é igualmente estranho o silêncio da própria Casa Hipólito nesta polémica. As razões, sendo hipotéticas, parecem-nos plausíveis: em fase de negociações com a Câmara Municipal na procura de soluções para o problema das instalações fabris, a gerência não estava interessada em alimentar controvérsias públicas.

Sabemos, hoje, que a empresa não se deslocalizou. Mas, cinquenta anos depois, perante aquele espaço desanuviado e acolhedor que é hoje o bairro e parque industrial de Arenes, bem urbanizado e com múltiplos pavilhões de comércio e pequenas indústrias, não conseguimos imaginá-lo como seria no início dos anos 60: terras de amanho agrícola, onde medravam hortas e pomares, alagadiças e sujeitas a cheias frequentes. Um longo caminho se andou e a Casa Hipólito acabou por construir ali dois imponentes conjuntos de naves fabris, escritórios e um refeitório de belo recorte modernista.

Figura 39 - Instalações em Arenes, 1991

190 Números referidos no já citado discurso de Manuel Pereira, na festa de homenagem a Vasco Parreira em 23 de Março de 1979.

Muito mais tarde, decretada a falência em 1999, aqueles edifícios foram vendidos e transformados – amarga ironia! – num conjunto de espaços comerciais que um gosto duvidoso nomeou de Hipolito Center Park191.

No seu depoimento oral, Vasco Alberto Parreira, filho de Vasco Parreira, referiu-se a esta polémica com alguma bonomia. Na sua perspectiva, a Casa Hipólito fez o que tinha de ser feito para demover a Câmara Municipal e levá-la a assumir por inteiro as despesas de urbanização da Várzea de Arenes. Não se tratou de chantagem mas de habilidade diplomática de seu pai e do tio, António Hipólito Junior. A compra do terreno na Malveira, tendo servido, de facto, o propósito negocial, constituíra, na realidade, um investimento numa zona que oferecia perspectivas interessantes de urbanização residencial. Esse terreno veio a ser vendido, já na fase final da empresa, no esforço final de garantir liquidez para pagamento aos credores.