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CAP I – O HOMEM E A CIRCUNSTÂNCIA

2. Torres Vedras no início do século

Se cada homem também é a sua circunstância, impõe-se saber como era a vila que António Hipólito encontrou quando aqui chegou por volta de 1895 e onde lançou a sua empresa no início do século.

Figura 10 – Torres Vedras, 1ª metade do séc. XX

A implantação geográfica deste antiquíssimo aglomerado urbano caracteriza-se por três elementos: uma colina facilmente defensável, um rio que lhe corre no sopé e uma várzea adjacente muito fértil. A fixação humana fez-se na encosta sul do monte, soalheira e abrigada dos ventos dominantes, sob a protecção de muralhas construídas pelos alcaides em nome das rainhas, proprietárias da vila desde o reinado de D. Afonso III, na primeira dinastia. Durante séculos – até à chegada do caminho-de-ferro, em 1886,67 com a abertura da grande avenida de acesso à Estação - a vila restringiu-se a este pequeno aglomerado de ruas estreitas tecidas em redor de quatro igrejas, com uma população ligada aos mesteres artesanais, ao comércio e serviços locais e às vivências religiosas. Contudo,

67 Cf. Venerando de Matos – O caminho-de-ferro em Torres Vedras, impacto da sua chegada, Ed. Colibri/Câmara Municipal de Torres Vedras, Lisboa, 2007, p.34.

como mostrou Ana Maria Rodrigues,68 a vila sempre esteve intimamente ligada ao termo,

território envolvente, dois polos interdependentes e complementares:

Era nele [termo] que se abastecia em homens e em géneros, dotando-se dos apoios demográficos e económicos sem os quais não podia manter-se e, ainda menos, crescer. Em contrapartida, era nela [vila] que se tomavam muitas decisões condicionantes da vida rural: aí residiam os senhores ou os seus representantes […]; nela funcionavam os tribunais, faziam-se as proclamações, fixavam-se os preços de mercado, realizava-se a feira anual. […]. As duas entidades viviam, pois, em permanente interacção económica, social e religiosa […]69.

A povoação situa-se no coração do concelho, uma área de cerca de 400 km2, convergindo as vias de comunicação para ela como raios de uma roda. Esta morfologia territorial manter-se-á ao longo dos séculos até ao presente e será ela que, na primeira metade do século XX, alimentará o crescimento das empresas nascidas na vila mas vocacionadas para responder às necessidades da periferia. Moagens, armazéns de víveres, oficinas, serviços, são procurados pelas populações rurais que fazem do “vir à vila” um ritual mensal ou até, para as mais próximas, semanal.

No início do século XX o concelho tinha 34 879 habitantes residentes, dos quais 19% habitava a vila – dados do censo de 190070. A população cresceu sempre ao longo do

primeiro terço do século XX, superando a média nacional71. Tal deveu-se, para além da

taxa de natalidade, à capacidade atractiva do concelho para onde vinham pessoas de todos os pontos do país, ao mesmo tempo que nele não se conhecem surtos significativos de emigração72. Da população activa, 74,6 % ocupava-se das actividades agrícolas enquanto a indústria não ia além dos 11,7 %73. Em 1915 verifica-se um aproveitamento intensivo dos solos agrícolas, de que apenas 23,8 % não se encontrava agricultado, sendo a vinha o cultivo predominante. Para além da vinha, cultivavam-se cereais e criavam-se animais, em regime generalizado de pequena propriedade, entremeado aqui e ali, por quintas de média dimensão.

O cultivo da vinha, sendo uma das mais lucrativas para os agricultores, foi atingida frequentemente por crises que tiveram impacto significativo nesta região74.Nas duas

68 Ana Maria Rodrigues – Torres Vedras, a vila e o termo nos finais da Idade Média, Fundação Calouste Gulbenkian e Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, Braga, 1995.

69 Ana M. Rodrigues, op. cit., p.22-23.

70 Cecília Travanca [et al.] – Torres Vedras, passado e presente, Vol. I, Câmara Municipal de Torres Vedras, 1996, p. 161

71 Cf. Gazeta de Torres, de 22/02/1931: sob o título «O último censo prova que Torres Vedras é um dos

mais populosos concelhos do paiz», publicou os dados do censo de 1930 referindo que o total da população

é de 49103, mais 7186 do que no censo de 1920.

72 Célia Reis – Cenas da vida de Torres Vedras, Município de Torres Vedras/Cultura, 1999, p. 17. 73 Idem, p.18.

74 Cf. Célia Reis – Problemas dos vinhos torrienses no final da Monarquia in: Turres Veteras III – Actas de

últimas décadas de oitocentos, a causa principal foi a filoxera. Esta praga que por volta de 1867 entrou pela região do Douro, a mais fortemente afectada, acabou por se estender ao resto do país a partir de 1881/82. Procuraram-se formas de combater o flagelo que se revelaram mais ou menos eficazes consoante o empenho dos Governos de então e a adesão dos próprios agricultores, sempre resistentes às inovações75. No final do século o mal estava praticamente debelado76 e o saldo, apesar de tudo, não se revelava negativo, na perspectiva de Conceição Andrade Martins:

Em conclusão, se, por um lado, a filoxera afectou a viticultura, na medida em que diminuiu os rendimentos dos viticultores, dando assim azo a que em muitas regiões agrícolas a vinha deixasse de ser uma cultura rendível, por outro, ela permitiu modernizar o sector, contribuindo assim para o aumento global da produção nacional e para a melhor qualidade do vinho a partir de então produzido. No pós-filoxera, a situação da viticultura nacional tinha-se modificado significativamente. A carta vinícola nacional e a estrutura produtiva tinham-se alterado. A vinha cobria todo o país, mas as maiores densidades encontravam-se agora na zona Centro/Sul. No início do século xx, a produção dos distritos de Leiria, Santarém e Lisboa representava quase metade da produção nacional e a cota do Douro descera para menos de 15%77.

Nas primeiras décadas do século XX a principal preocupação dos vinicultores torrienses – semelhante aos do resto do país - estava ligada a alguns problemas estruturais: falta de regularização dos mercados interno e externo; concorrência do álcool industrial importado, em detrimento da aguardente proveniente das massas vínicas; cultivo da vinha em áreas propícias ao cultivo dos cereais; restrições ao uso dos vinhos da região para o Douro, para serem loteados como Vinho do Porto78. Estes problemas, com variações e

alterações naturais, percorrerão todo o século XX mas não impedirão que o concelho de Torres Vedras mantenha um lugar cimeiro na produção vinícola nacional. A seu tempo veremos que a empresa de António Hipólito nasceu e cresceu escorada neste sector agrícola.

75 Cf. Conceição Andrade Martins – A filoxera na viticultura nacional. In: Análise Social, Vol. XXVI (112- 113), 1991. P.653-688, em:

http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223042079C5pJM6qm9Aw66HJ7.pdf .[Cons. 22 Março 2016]. 76 De referir que, na batalha contra a filoxera, teve papel de destaque Jaime Batalha Reis, filho de um grande proprietário rural torriense e figura notável da intelectualidade portuguesa do grupo de Eça de Queiroz e Antero de Quental. J. Batalha Reis, engenheiro agrónomo, entre outros cargos foi presidente da comissão nacional encarregada de estudar aquela moléstia das vinhas. Ver: Maria José Marinho, “Jaime Batalha Reis e Celeste Cinatti: diálogo sobre um retrato incompleto” in: Análise Social, vol. XLII (182), 2007, pp. 281- 284: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218649507K9eUN1bq9Nl24RJ4.pdf [Cons. 5 de Agosto 2016]. Igualmente seu irmão, António Batalha Reis, também agrónomo, participou activamente nessa luta através de muitos artigos e ensaios dedicados ao assunto, conforme se comprova pela abundante bibliografia que deixou e que pode ser consultada na Biblioteca Nacional ou na Biblioteca do Instituto do Vinha e do Vinho.

77 Cf. Conceição Andrade Martins, A filoxera na viticultura…, p. 683 78 Cf. Célia Reis, Cenas…, p.22.

E quanto à indústria, qual a situação do concelho no início do século XX?

Tal como no restante país - de que apenas alguns centros urbanos mais importantes eram excepção, casos de Lisboa, Porto, Covilhã, Aveiro, Marinha Grande… - Torres Vedras não tinha indústria, apenas um núcleo de actividades artesanais. Sobre isto, Célia Reis resume:

De facto, segundo o inquérito de 1890, mas facto comum até ao raiar do novo século, este tipo de trabalho correspondia essencialmente a pequenas unidades movidas pelo vento, força hidráulica e mão humana, contando-se apenas uma máquina locomóvel em todo o território municipal, situada na única moagem conhecida79.

A mesma autora, baseada no citado inquérito, enumera de seguida, as diversas unidades de produção artesanal:

[…] uma mina, pedreiras, fornos de cal, alambiques de álcool, alabardeiros, alfaiatarias, sapatarias, fogueteiros, funilarias, fiação e tecelagem de lã, marcenarias, moinhos de vento, a referida moagem, odreiros, ourivesaria e relojoaria, padarias, serrações de madeira, serralharias, tanoarias e uma tipografia80.

Na sequência desta abordagem, Célia Reis refere os casos de António Hipólito e de Francisco António da Silva que deram um impulso notável à actividade metalúrgica no início do século81.

Pormenor significativo: quando António Hipólito veio para Torres Vedras, a diminuta iluminação pública era assegurada desde 1862 por 35 candeeiros a petróleo. Em 1887 fizeram-se experiências para introduzir a iluminação a gás, adoptada um ano depois pela Câmara Municipal. Contudo, em 1891, devido a problemas técnicos, voltou-se à iluminação a petróleo que perdurará até 1912, ano em que foi inaugurada a luz eléctrica na vila, produzida por dois motores Diesel adquiridos pela firma Sociedade Progresso

Industrial e montados numa estação central situada no Bairro das Covas82. Até esta data, a iluminação de uso privado era feita pelos meios tradicionais – candeias de azeite, candeeiros de petróleo e, em alguns espaços comerciais, «custosas instalações de gaz acetyleno.»83 Atento às necessidades do seu tempo e já a trabalhar por conta própria, António Hipólito irá dedicar-se ao fabrico de gasómetros, o primeiro produto de referência da sua nova oficina, como veremos no Capítulo seguinte.

79 Cf., Célia Reis, Cenas…, p. 22. 80 Cf. Idem, p. 22.

81 Refira-se, contudo, que as informações que aduz acerca destes industriais são escassas e nem sempre rigorosas, cremos que por falta de fontes disponíveis na altura em que escreveu este livro.

82 Para a história da iluminação pública em Torres Vedras, ver: Há 75 anos a inauguração da luz eléctrica, suplemento da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras in: jornal

Badaladas de 4 de Dezembro de 1987. Ver também Vedrografias2, blogue de Venerando de Matos, em:

http://vedrografias2.blogspot.pt/search?q=electricidade+em+torres+vedras [Cons. 21 Março 2016] 83 Jornal "Folha de Torres Vedras" - 20 Abril 1902.