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Garantias legais no atual panorama laboral Eficácia.

João Diogo da Cruz Santos Rafael Parreira

3. A desconexão digital em Portugal

3.1. Garantias legais no atual panorama laboral Eficácia.

Ao celebrar um contrato de trabalho com o empregador, o trabalhador está não só a alienar a sua força de trabalho, mas também parte do seu tempo pessoal. Tal alienação temporal é, no entanto, limitada por normas legais que tendem a assegurar, por exemplo, o descanso do trabalhador e o direito a uma vida pessoal e familiar condigna com uma linha bem vincada entre a atividade profissional e a vida pessoal. O que se pretende, nas palavras de Dray (2015, p. 678), “é evitar que a vida profissional do trabalhador esgote toda a sua vida e que deixe um espaço de liberdade para que este possa gozar a sua vida pessoal e familiar enquanto cidadão livre”.

A nossa constituição é o ponto de partida para a proteção dos trabalhadores de eventuais abusos quanto à limitação temporal do exercicio da atividade laboral. Desde logo as als. b) e d), do n.º 1 artigo 59.º da CRP referem que todos os trabalhadores têm direito, por um lado, à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal, e por outro, ao repouso e aos fazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas. Também a al. b), do n.º 2 do artigo 59.º nos diz que é incumbência do estado a fixação , a nível nacional, dos limites da duração do trabalho.

Este preceito constitucional foi depois transposto para o Código do Trabalho desde logo no n.º 1 do artigo 203.º que nos refere que o período normal de trabalho não pode exceder oito horas por dia e quarenta horas por semana, mas também em outras normas como por exemplo o direito ao descanso semanal ou o direito a férias5.

Amado (2017, p. 115) defende que “a nossa lei assenta num binómio tempo de trabalho/tempo de descanso”, mas assume (2017, p. 117) que tal “repartição dicotómica (…) nunca foi linear”. Os limites temporais da prestação da atividade laboral estão de facto aparentemente bem definidos na Lei do Trabalho, no entanto, a limitação das 8 horas diárias é tão somente o ponto de partida para uma vasta panóplia de exceções que conferem uma grande flexibilidade à estipulação dos tempos de trabalho dos trabalhadores. Tal flexibilidade torna cada vez mais difícil a efetivação de medidas que promovam e garantam o descanso. Reflitamos por exemplo nos trabalhadores sujeitos a isenção do horário de trabalho (prevista

no artigo 218.º do Código do Trabalho)6, ou quando a entidade empregadora, baseada em situações excepcionais previstas na lei, ordena ao trabalhador a prestação de trabalho suplementar7.

A situação agrava-se quando nos debruçamos sobre a utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) por parte dos trabalhadores fora do período de trabalho e para fins laborais. A simples resposta a um email relacionado com a atividade laboral pode configurar, por si só, uma violação do direito ao descanso destes, no entanto, a legislação nacional não prevê expressamente, ao contrário do que passou a verificar-se em França, uma norma que combata este flagelo.

As normas genéricas quanto ao direito ao descanso diário, descanso semanal, férias e as relativas ao limite máximo do tempo de trabalho deveriam ser suficientes para que os trabalhadores fizessem valer os seus direitos e simplesmente se desconectassem do seu trabalho finda a jornada diária, todavia, verifica-se cada vez mais um acréscimo da conexão constante a meios de comunicação que liguem trabalhador e empresa 24 horas por dia. O motivo pelo qual não o fazem, prende-se muitas das vezes com o receio que têm de ficar sem os seus empregos, ou serem penalizados pela entidade empregadora.

Este problema afeta igualmente os altos cargos que dadas as suas especiais competências e responsabilidades se veem impedidos de se desligar totalmente das suas funções. Muitas das vezes, nestas situações, são os próprios trabalhadores que se obrigam a esta hiperconexão, não sendo uma imposição da entidade empregadora. Acontece que, para além do “dever de não conexão profissional fora da jornada de trabalho” que recai sobre a empresa e que é defendido por Amado (2017, p. 123), defendemos que deverá existir igualmente por parte desta uma obrigação de garantir a desconexão dos trabalhadores durante os períodos de descanso. Maior (2003, p. 9) defende que não obstante se pensar que um salário diferenciado, maior que o dos demais trabalhadores, pudesse compensar as horas de repouso que o trabalhador deixa de usufruir, “a limitação da jornada é uma questão de saúde da sociedade e não um probelma meramente esconómico e que diga respeita à pessoa do trabalhador”.

Embora reconheçamos que a lei oferece garantias no que toca ao descanso do trabalhador, parece-nos igualmente que o espírito do legislador, no momento da regulação desse mesmo descanso, se articulou com uma realidade perfeitamente distinta da atual, ou seja, horários de

6 A isenção de horário de trabalho apenas pode ser aplicada a trabalhadores que exerçam cargos de administração

ou direção (ou funções de confiança, fiscalização ou apoios aos titulares desses cargos), em situações de execução de trabalhos preparatórios ou complementares que, pela sua natureza, só possam ser efetuados ora dos limites do horário de trabalho e ainda no exercício regular de atividades fora do estabelecimento, sem controlo imediato por superior hierárquico. Esta isenção pode traduzir-se na não sujeição aos limites máximos do período normal de trabalho, na possibilidade de determinado aumento do período normal de trabalho, por dia ou por semana, ou ainda na observância do período normal de trabalho acordado.

7 Considera-se trabalho suplementar, todo aquele realizado fora do horário de trabalho, e apenas pode ocorrer em

duas situações: quando a empresa necessita de fazer face a um acréscimo suplementar de trabalho e não se justifique a contratação de novos trabalhadores e quando exista um motivo de força maior e este seja indispensável para reparar prejuízo grave.

trabalho definidos cuja proteção a garantir ao trabalhador se prendia com a sua não continuidade excessiva no local de trabalho a exercer atividade laboral. No fundo, uma realidade onde recurso aos meios tecnológicos de informação e comunicação não era nem em número nem intensidade considerável para uma sensibilidade jurídica diferente da que entendemos ter motivado o legislador.

A realidade laboral alterou-se de forma quase explosiva a par da realidade social e os meios tecnológicos que referimos criaram novas exigências legislativas de proteção daquela que, no meio laboral, é por regra a parte mais fraca, o trabalhador. Assumimos uma posição em que a figura do direito ao descanso na legislação do trabalho se apresenta excessivamente genérica, sem força que ofereça garantias a mudanças de panorama como o que aqui abordamos, acabando por refletir uma desatualização da letra da lei.

Em suma, somos de opinião de que realidade legal deve refletir-se na realidade laboral, pelo que a alteração legislativa será o meio a seguir para corresponder às necessidades de proteção daqueles que efetivamente detêm o direito, ainda que não disponham de garantias com força e estrutura adequadas.

3.2. Soluções

Não sendo a ideal, pelos emergentes problemas já identificados previamente no nosso trabalho, é preciso ter em conta a importância da solução francesa, uma vez que se apresenta como um mecanismo inovador de proteção dos trabalhadores para um problema dos tempos modernos. Urge a implementação de um mecanismo semelhante no nosso ordenamento jurídico. Perante uma análise genérica da alteração legislativa daquele país e o inevitável paralelismo com uma hipotética figura jurídica do direito à desconexão digital no ordenamento português, vemo-nos compelidos a estruturar um mecanismo legal que possa traduzir uma implementação exequível do direito à desconexão dos trabalhadores. Estaremos perante uma idealização que em nada compromete posições contrárias e que procura encontrar um meio eficaz de valoração deste direito.

A solução poderá passar inicialmente por um reforço expresso na nossa legislação do direito à desconexão digital dos trabalhadores, incluindo não só esse mesmo direito mas igualmente o mecanismo utilizado para o assegurar. É no mecanismo a utilizar que reside a grande problemática deste assunto e foi nele também que a solução francesa pecou.

À semelhança do que acontece atualmente em França, o caminho a seguir deveria passar pela negociação coletiva, sendo os sindicatos as entidades competentes e também, salvo certos

casos concretos8, as melhor posicionadas para celebração de acordos que visem a proteção efetiva dos trabalhadores. Destes acordos deveriam resultar medidas concretas que garantissem a desconexão dos trabalhadores vinculando ambas as partes da relação laboral. Imprescindível seria também, sob o risco de o acordo se esvaziar de real utilidade, impor penalizações para o não cumprimento do mesmo, retificando assim um dos problemas identificados na solução francesa.

Não obstante considerarmos que esta seria uma boa opção para a resolução deste problema, é preciso colocar a hipótese de o acordo com o sindicato se frustrar, ou de simplesmente não existirem trabalhadores sindicalizados na empresa em questão. Nestas situações entendemos que a empresa, depois de ouvida a Comissão de Trabalhadores e um pouco à semelhança do que foi implementado no ordenamento jurídico francês, possa subsidiariamente emanar um regulamento interno que regulamente as medidas a aplicar para proceder à desconexão dos trabalhadores findo o horário de trabalho. De forma a garantir a sua legalidade e cumprimento, somos da opinião que tal acordo deveria ser sujeito a uma aprovação admnistrativa por parte da entidade responsável pelo controlo do cumprimento do normativo laboral no âmbito das relações laborais privadas, neste caso a Autoridade para as Condições do Trabalho – ACT. Esta opção difere um pouco da prevista no Projeto de Lei apresentado pelo BE que propunha o envio dos horários de trabalho para o ACT.

Resta-nos referir que a violação por parte do empregador destes acordos celebrados ou, se for o caso, do regulamento interno, deverá redundar na prática de assédio moral, prática proíbida prevista no artigo 29.º do Código do Trabalho. Assédio é-nos assim apresentado com um comportamento indesejado praticado no emprego com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger pessoas, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Na senda de Amado (2017, p. 125), perante esta definição tão abrangente de assédio, não restam “grandes dúvidas sobre a possiblidade de a violação do tempo de desconexão correspondente ao período de descanso do trabalhador (…) consituir assédio moral”.

8 Nem sempre a negociação com os sindicatos se afigura fácil. Existe uma corrente que defende que os sindicatos

promovem um decréscimo da produtividade no trabalho reduzindo a flexibilidade na gestão da empresa, introduzindo normas laborais ineficazes e reduzindo as compensações baseadas em produção individual (Albert N. Link, 1992, p.1). Prova desse facto foi a Autoeuropa, empresa que começou a celebrar acordos com a Comissão de Trabalhadores marginalizando de certa forma os sindicatos e excluindo-os das negociações. Acordos esses que foram um verdadeiro sucesso. Cebola & Santos (2015, p.124) defendem que os a falta de flexibilidade e a necessidade dos sindicatos de proteger os acordos anteriormente celebrados sem espaço para o diálogo, não permite às empresas se adaptarem às suas necessidades. Habitualmente este tipo de negociação é denominada atípica, isto porque não existe no nosso ordenamento legal qualquer tipo de previsão que atribua às Comissões de Trabalhadores a legitimidade para negociar acordos coletivos com as entidades empregadoras.

Para além de constituir uma contraordenação muito grave, a prática de assédio moral confere à vítima desse assédio o direito de ser indemnizada pelos danos causados no decorrer dessa prática9.

Conclusão

Ao longo do nosso estudo procedemos à análise de um dos flagelos deste século: a hiperconexão digital. Este problema assume especial relevância no momento em que tal hiperconexão limita o direito ao descanso dos trabalhadores que se veem ligado aos meios tecnológicos mesmo após o terminus da jornada laboral.

Não obstante considerarmos que foi de extrema importância este problema ter encontrado acolhimento legal em França, entendemos que o sistema adotado naquele país está longe de ser perfeito. O facto de a negociação coletiva apenas se aplicar a empresas com um grande número de trabalhadores, de o código de conduta não estar sujeito a uma real negociação e a falta de sanções para o incumprimento das regras impostas, são apenas alguns dos problemas identificados.

Neste trabalho propusemo-nos igualmente a identificar os meios legais atualmente ao dispor dos trabalhadores portugueses de forma a garantir a sua desconexão pós-laboral. Reconhecemos que existem algumas normas a este respeito, mas consideramos não serem suficientes para resolver a questão. Por este motivo, optámos por propor um mecanismo que procure garantir a salvaguarda dos direitos dos trabalhadores aqui referenciados.

A celebração de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho entre as entidades empregadores e os sindicatos que regulamentasse os moldes sob os quais se procederia a esta desconexão foi a opção que considerámos mais adequada. Entendemos que desta forma será possível chegar a um acordo que, por um lado, garanta o efetivo descanso e repouso dos trabalhadores, com respeito pela sua liberdade e vida pessoal, e que, por outro, não prejudique a prossecução dos interesses económicos das empresas.

Considerámos ainda importante contemplar na nossa sugestão um mecanismo subsidiário em caso de frustração ou impossibilidade de negociar com os sindicatos. Tal, solução passaria pela elaboração de um regulamento interno, à semelhança do que acontece em França, mas com supervisão administrativa desses acordos.

9 Para um maior desenvolvimento acerca da responsabilidade decorrente da prática de assédio moral, vide

Por fim, não deixámos de considerar de suma importância enquadrar no âmbito do assédio moral a violação destes acordos, de forma a ficarem previstas sanções que promovam um maior cumprimento das normas estabelecidas.

De um modo geral, entendemos que ainda existe no nosso ordenamento jurídico um grande caminho a percorrer para que se respeite os trabalhadores quanto à limitação da sua jornada laboral. Tal como referido, urge uma mudança de paradigma que vise dignificar a integridade dos trabalhadores através da promoção do direito à desconexão digital.

Bibliografia

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Amado, J. (2017). Tempo de trabalho e o tempo de vida: Sobre o Direito à Desconexão Profissional. In M. Roxo, Trabalho Sem Fronteiras? (pp. 113-127). Coimbra: Almedina. Campos, D. (1995). Lições de Direito de Personalidade (2.ª ed.). Coimbra: Almedina.

Cebola, C., & Santos, J. (2015). Atypical Collective Bargaining in the potuguese labor system. Global Business and Technology Association Seventeenth Annual International Conference Readings Book, (pp. 123-128). Obtido de http://gbata.org/wp- content/uploads/2015/08/GBATA2015-Readings-Book.pdf

Dray, G. (2015). O Princípio da Proteção do Trbalhador. Coimbra: Almedina. Fernandes, A. (2014). Direito do Trabalho (17.ª ed.). Coimbra: Almedina.

Gomes, J. (2007). Direito do Trabalho - Relações Individuais de Trabalho (Vol. I). Coimbra: Coimbra Editora.

Leitão, L. (2016). Direito do Trabalho (5.ª ed.). Coimbra: Almedina.

Link, A. N. (1992). Technological Change and Productivity Growth. In J. Lesourne, & H. Sonnenschein (Edits.), Fundamentals of Pure and Applied Economics (Vol. 13). Harwood Academic Publishers.

Maior, J. (2003). Do direito à desconexão do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, 23, 296-313.

Ramalho, M. (2016). Tratado de Direito do Trabalho - Parte II - Situações Laborais Individuais (6.ª ed.). Coimbra: Almedina.

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