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Gestos, tempos e espaços de leitura

O S FAZERES DA LETRA

III.1 Modos de ler

III.1.3 Gestos, tempos e espaços de leitura

A constante apresentação de novidades no mercado dos role-playing games, cuja vida editorial se sustém em muito às custas de suplementos e reedições, coloca esse tipo de livro em singular proximidade com impressos de menor permanência como a revista. Vimos mesmo que muitas revistas se assemelham a livros, tanto no tipo de texto que veiculam como na sua forma material. Entre o duradouro representado pelo arquétipo livresco e o perecível encarnado no periódico, as formas de composição, os hábitos de consumo e os modos de leitura do RPGista parecem circular com certa facilidade. O caso daquele “suplemento bimestral” intitulado D20 Saga é seguramente uma forma de testemunho desse parentesco: “suplemento”, termo normalmente usado em referência a publicações de caráter mais permanente, justapõe-se ao indicador de uma periodicidade serial.

Internamente, a armação diagramática da página do livro de RPG evoca de diversas maneiras a página de revista, já que tanto cá quanto lá parece ser necessário algum cuidado com a distribuição dos espaços e a disposição de elementos de natureza heterogênea no retângulo hermético da folha de papel. Assim como a leitura do periódico se pauta na geometria de títulos ou manchetes, na apreensão de fotos e imagens que antecipam, confirmam ou criam sentidos complementares ao texto (humor, exemplificação, julgamentos ou posições sobre uma determinada notícia), no uso recorrente de índices e, de maneira geral, na movimentação não-linear da leitura, também a leitura do livro de RPG é uma leitura que pode ir e vir, situar num golpe de vista a informação desejada ou ler descomprometidamente trechos ao léu, bem como tornar-se obsoleta após algum tempo pelo surgimento de um título sucedâneo. De fato, uma das estratégias editoriais para a formação de um público comprador de role-playing games no país tem sido o lançamento preliminar de livros curtos e baratos, vendidos em livrarias mas também em bancas de jornal, como FirstQuest ou MiniGURPS. As revistas especializadas em RPG sempre foram, de outra parte, veículo crucial de divulgação de lançamentos, e a leitura de resenhas ou materiais suplementares publicados em periódicos deve ser uma importante forma de manter-se a par das novidades.

(11) Antigamente eu comprava a Dragão Brasil... e comprava a revista em português, que chamava Dungeons and Dragons, pela Abril, ah, só que parou também, né.

(Entrevista X)

Tanto livros quanto revistas são, à sua maneira, objetos colecionáveis. O tempo e o espaço de leitura, no entanto, talvez sejam pontos em que esses dois tipos de impresso ainda se distinguem de maneira decisiva. É que, se supomos que a revista possa ser lida rapidamente, em casa ou à mesa de um café, ler livros de role-playing game parece exigir a disponibilidade de um tempo privado. Abaixo um jogador comenta o problema de ler fora de casa:

(12) (...) o que você pode tentar pegar emprestado [títulos de RPG] ali, é, na Gibiteca Henfil, fica ali no Centro Cultural Vergueiro, mas ali você só pode pegar emprestado e ler ali no dia.

(Entrevista X)

Uma queixa sobre o desconforto de ler o livro no próprio espaço da gibiteca sugere outras questões que parecem estar sendo levadas em conta. Uma delas é a valorização da posse do livro como objeto de estima, o que será muitas vezes explicitado pelos jogadores. Outra é a pressuposição do impresso de RPG como uma espécie de vademecum, fonte de consulta que necessita ser transportada para o local do jogo. Disso decorre que uma leitura como a que faríamos de um romance, de uma biografia ou mesmo de uma obra de dissertação científica não esgota o título de RPG, porque o uso que se supõe apropriado para ele não se esgota no mesmo ponto em que se completa o percurso do livro – não basta partir do começo e chegar ao fim, mas é preciso entrar e sair, retornar, circular, mostrar ou recitar, copiar, guardar. Há que se levar em conta também que a prática dos role-playing games não se integraliza no ato de leitura solitária, e um bibliófilo que se dedicasse a estudar todas as publicações dessa área ainda assim dificilmente seria considerado um role-playing gamer sem o aval de um círculo de companheiros de jogo. Participar do universo do RPG pressupõe, com efeito, a inserção no evento coletivo da partida, onde de fato continuam a se constituir os sentidos de uma leitura iniciada na solidão da escrivaninha. Neste caso, a presença física do impresso à mesa talvez seja importante não apenas como apoio para a memória, mas também como parâmetro de consenso quando as leituras individuais dos participantes divergirem sobre um determinado ponto81. Discute-se o uso de uma regra, comenta-se uma ilustração

importante, monta-se uma personagem consultando o livro – aí os jogadores selam seus pactos para que qualquer coisa como um jogo possa se instituir entre eles. A leitura que se

encerra no affair solitário com o título é apenas para os iniciantes, aqueles que estão tendo suas primeiras impressões e ainda não penetraram no país dos role-playing gamers:

(13) Cê poderia ir numa livraria, existem essas livrarias hoje em dia, como a Saraiva e a Siciliano, que

permitem que você sente num lugar e leia, então eu acho legal primeiro a pessoa que tá começando

agora (...).

(Entrevista XII)

Da mesma forma, parece importante que o título seja um objeto portátil e, portanto, tangível. A leitura na tela do computador – que se suporia comum, dado o número de jogadores que falam sobre grandes acervos eletrônicos – oferece o mesmo empecilho apontado na política de empréstimos da gibiteca:

(14) T: Você pega coisa da internet também?

E19: Eu já cheguei a pegar, mas o problema é que você não pode imprimir o livro, quer dizer,

você pode imprimir o livro, mas sai muito caro.

T: Ah.

E19: Então eu não sei até que ponto compensa isso, porque não dá pra eu ler... então eu não

tenho tempo de ler, eu preciso levar o livro comigo pra poder ler, então eu acho que não compensa puxar muita coisa.

(Entrevista XIV)

Tudo isso leva a crer, novamente, que o impresso tem seu papel não apenas como “suporte” ou veículo de certos textos, mas como objeto cuja presença é necessária em uma série de momentos que constituem materialmente sua relação com o leitor a quem se destinam. A necessidade dessa presença física, como veremos, tem a ver com o imperativo de posse dos livros e, portanto, concerne às condições de sua circulação e à formação de seus consumidores. É disso que passarei a tratar.