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O S FAZERES DA LETRA

III.2 Modos de ter

A descrição feita até agora deve ter nos mostrado, além de certos modos de ler um impresso de RPG, algo sobre como chegam até as mãos seus leitores, aí permanecem ou passam adiante – seus modos de ter. Como uma coisa realmente está imbricada na outra, não seria possível pensar no leitor de livros de role-playing games sem pensar nas circunstâncias em que lhe é dado manusear esses livros.

III.2.1 Comprar e possuir

1. Pioneiros. A compra e a posse devem ser uma questão importante num universo de livros caros, bonitos, robustos, inseridos em séries sempre abertas a novos acréscimos e, por conta disso, fadados a uma derradeira obsolescência que terminará por transformá-los em relíquias ou itens de colecionador82.

Possuir livros é certamente uma fonte de prazer, mas a compra não necessariamente o é. Livros de role-playing game são em geral bastante caros e a decisão de possuir um pode exigir longos períodos de economia. Noutros casos, a fim de abreviar a espera, o livro será comprado em sociedade e o jogador abdicará da propriedade exclusiva em favor de um usufruto antecipado. Apesar de tantos reveses, não obstante, a vontade de ter um acervo próprio pode ser suficiente para garantir que a compra se realize, mesmo que às custas de alguma estritura financeira e de uma delicada retenção das urgências de consumo.

(15) Ah, agora dificilmente eu compro porque eu tou (desempregado?)... custa caro, né, é uma fase (desempregado?) tudo mas... geralmente quan(do não é?) uma coisa assim... né, eu compro sim, costumo comprar... um por ano, agora, dois... tal, né, porque aí, como tem vários sistemas, você não pode comprar tudo de tudo, senão você não consegue mestrar adequadamente. O ideal é você se especificar numa coisa, tipo, cê gosta de... D&D... e comprar só coisa de D&D, ou se curte ah, sei lá, Mago, Vampiro, compra coisa de Mago, só coisa de (incomp.) de Vampiro ou cê vai acabar sendo disperso... comprar muita coisa e gastar muito dinheiro com muita coisa cê não acaba... nem jogando nem mestrando tudo isso que cê compra.

(Entrevista X)

Racionalizar gastos, selecionar o que é relevante, não comprar mais do que é necessário, não consumir ao sabor de rompantes e caprichos mas obedecer à periodicidade que os orçamentos permitam: a compra, ao que parece, pode ser sentida como qualquer coisa relacionada a certa dose de atribulação ou, no mínimo, à necessidade de que se lhe dê algum pensamento. No limite, a propriedade corre o risco de reverter-se em um mal e tornar-se alvo de uma medida de saneamento brusca:

(16) T: Com quem que cê jogava naquela época?

E42: Com os meus amigos da escola, oitava série, assim. T: Cê jogava com a mesma turma assim, jogava Magic, RPG? E42: Isso, era a mesma turma.

T: E eles, eles jogaram fora também ou...?

E42: Não, eles até hoje querem me bater por causa disso [riso]... Por ter queimado as minhas cartas, por que cê não deu pra mim, seu idiota?

T: (Riso) Cê queimou o negócio?

E42: Eu queimei, mas justamente porque eu não queria dar pra ninguém aquilo lá, que eu achava que aquilo tava... era um negócio ruim. (...) Eu queria acabar com aquilo, não queria vender pra ninguém, nada, porque o Magic eu achei que não me trouxe nada de bom, sabe? Era só um monte de dinheiro e tempo que eu tava jogando fora com um jogo. O RPG eu me arrependo de ter queimado os livros daquele jeito que eu queimei, mas foi meio que na mesma leva, tava tudo junto.

T: Cê tacou fogo mesmo no negócio, cê pôs num balde... E42: Taquei fogo...

T: Estilo filme assim, pôs num balde...

E42: É, pus num baldão de ferro assim, taquei fogo. (Entrevista XXVI)

A partir de certo momento, ao que parece, a compra repetida de livros coloca o sujeito em uma posição tal que é preciso não apenas purgar-se dos efeitos nocivos de tamanhas aquisições como de fato cumpre quebrar a cadeia da propriedade e evitar que o seu mal se alastre. Se ainda assim há quem esteja disposto a embarcar nessa jornada, isso leva a crer que comprar e possuir envolvem qualquer percurso do sujeito que não tange apenas as suas decisões individuais – teríamos de pensá-lo, então, frente ao que a história desses livros depositou sobre aquele que em dado instante se flagra como seu leitor.

Poderíamos supor que de início a compra tenha sido condição virtualmente necessária para que houvesse acesso aos role-playing games. Durante os anos 1980 e mesmo ao longo da década posterior, na ausência ou escassez de edições brasileiras, a única forma de conseguir

pôr as mãos em um livro desse tipo seria comprando-o pessoalmente no exterior, encomendando-o através de um viajante ou conhecendo quem os possuísse.

(17) Eu comprei [meu primeiro livro de RPG] aqui mas era um cara que trazia importado, era/ tinha uma banca dentro da Unicamp e o cara vendia lá dentro, e daí eu comprei lá. Depois é que eu fui descobrir que tinha aqui... loja aqui que trazia coisa importada.

(Entrevista IX)

Enquanto os impressos de RPG circulam no âmbito estreito de uns poucos negociadores, conhecer os role-playing games é portanto algo condicionado a circunstâncias bastante estreitas. Boa parte dos viajantes ou livreiros responsáveis pela importação de pequenas levas de material parecem ter se concentrado nas grandes cidades, e o dado acima sugere que o ambiente universitário pode ter sido um local de inserção privilegiado. De fato, a primeira convenção anual do gênero a se realizar no país foi a USPCON, sediada na Universidade de São Paulo, que teve início em 1991 e durou pelo menos até 1995 – quando foi palco do lançamento de Arkanun. Essa janela de acesso especificamente localizada deve ter imprimido uma das marcas que permaneceria no discurso do role-playing gamer, a saber, o fato de o RPG ter-se constituído, ao menos no princípio, como uma prática confinada às cercanias de uma série de dispositivos escolares.

A importação em pequena escala, realizada informalmente, algumas vezes ao custo de delicadas manobras de evasão alfandegária, parece ter ditado o tom desses primeiros momentos da circulação de livros de RPG no Brasil. Ao lado da quantidade relativamente pequena de exemplares que chegaram na bagagem de viajantes ocasionais, estudantes intercambistas ou visitantes estrangeiros (e que ainda hão de repousar em alguma estante, se escaparam à eventual incineração), seria praticamente impossível dispor de uma quantificação confiável do volume de unidades que transpuseram fronteiras durante esse período. Essas formas de translado a varejo constituíram, todavia, um nicho marcante na trajetória de alguns jogadores individuais que, no decorrer dos anos, tornar-se-iam livreiros de maior porte, algumas vezes chegando a abrir suas próprias livrarias e convertendo pouco a pouco um modo de circulação essencialmente anônimo, algumas vezes realmente ilegal, num mercado de grande porte e ao menos um pouco mais observante à legislação.

(18) E43: Arcano, Adriano que montou Arcano, na verdade, a história é assim, Adriano, ele foi o integrante principal do nosso grupo de RPG quando tinha dos dezenove anos de idade, ele era o mestre, (...) enfim, ele foi pra Marília, pra fazer biblioteconomia, junto com Anderson daqui da: biblioteca da...

da FFLCH, são bons amigos... ele foi lá, fez biblioteconomia, levantou uma associação própria, fez a mesma coisa que eu fiz em Mogi Mirim, Mogi Guaçu, e Itapira, e Estiva, só que ele fez em Marília e região, ele fez UNESP, biblioteconomia de UNESP, e então ele conseguiu apanhar todo mundo que tinha panelinha lá e montou uma associação só dele, em nome dele, e foi uma... uma coisa... nossa, eu não imaginava que qualquer um de nós faria uma coisa tão grandiosa como ele conseguiu fazer, e quase abriu uma loja, só que ele terminou o curso dele... e decidiu voltar pra casa, em Mogi Guaçu.... e montou a loja Tiamat, porque não tinha mais nada... pra fazer, só tava à toa, então (riso) (fazer?) um sonho... realizar... aí ele montou com o outro amigo da gente também integrante que cedia a casa, o (incomp.), aí eles entraram financeiramente no negócio

(...)

E43: (...) aí então com o serviço dos três, conseguiu render, rendeu dinheiro suficiente pra montar um negócio, então a loja sobrevivia só disso, da renda dos três, acho que dava mil e quinhentos reais por mês, de entrada, agora... de saída, né, de lucro, dava mil quinhentos reais, apenas, e era tudo Mage Knight não era material de RPG, então eles foram comprando todas as coisas da Devir, conseguiram se oficiali..., né, se tornar uma loja de verdade, e com toda a burocracia, ainda assim não conseguiram dar dinheiro, aí trinta por cento de desconto da Devir e tudo de mais.

(Entrevista XXVII)

O incremento na movimentação desses impressos é sugerido pela aparição, já nos anos 1990, de anúncios e catálogos de importadores em revistas especializadas no assunto, por vezes em vizinhança aos chamamentos de livrarias que vendiam edições nacionais. Mesmo estas últimas, de uma forma ou de outra, freqüentemente ofereciam também um sortimento de itens estrangeiros. Num tempo anterior à difusão da internet e dos grandes sites de vendas de novos e usados, era comum esses anúncios acompanharem volantes destacáveis, indicando que desde então boa parte do trânsito desses impressos se efetuava pelas vias postais (figura

III-5).

Outrossim, o domínio da língua inglesa é também um pré-requisito para o usufruto de títulos estrangeiros, vindos em sua maior parte dos Estados Unidos – berço dos role-playing games. O próprio desejo de dominar uma língua estrangeira pode ser o motivo inicial de uma viagem da qual resulta, no retorno, a vinda de um impresso de RPG. O mesmo motivo poderia fornecer um importante incentivo para a compra de livros em língua estrangeira enquanto se está em outro país – é preciso garantir que não se perca contato com o idioma uma vez de volta à terra natal. Dessa forma, o jogador de RPG brasileiro teria inscrito em sua formação, desde o princípio, um elemento que não poderíamos reputar ao jogador estadunidense, qual seja, o fato de a prática do jogo poder estar intimamente associada a uma experiência de aprendizado e, por conseguinte, de estudo.

(19) (...) eu comprei um livro de D&D: antigo chamado... (incomp.) Enciclopaedia, meu inglês não era muito bom não mas... mas... a gente vai acabando aprendendo um pouco de inglês... ah... na época o mercado não tinha tantos livros em português assim a gente vai acabando... assimilando um pouco de inglês, os termos, tudo, a gente vai assimilando.

(Entrevista X)

(20) T: Qual que foi o primeiro livro que você comprou?

E14: O Players’ Handbook do Dungeons&Dragons, em inglês. O meu inglês até não era muito bom, até ajudou pra caramba porque eu fui forçando a ler, a ler, a ler...

(Entrevista IX)

A memória dessa experiência certamente reverberará mais tarde, quando começar a se difundir a idéia de que através dos role-playing games aprende-se alguma coisa. De toda forma, a era dos títulos em inglês estaria fadada a minguar à medida que o número de edições brasileiras aumentasse e a sua distribuição pouco a pouco vencesse as barreiras das lojas especializadas, atingindo as grandes redes de livrarias e as bancas de jornal (com o que viriam também novidades na forma dos livros). No decorrer da década de 1990, com efeito, os impressos de RPG tornar-se-iam mais comuns, permitindo a leitores que não liam em inglês nem podiam comprar livros importados ou trazê-los de fora transformar-se igualmente em role-playing gamers. A ampliação do público e a acolhida de jogadores provenientes de outros contextos sociais não parece ter passado despercebida, suscitando a elaboração de algumas demarcações identitárias como aquela entre “gerações” de jogadores a quem se reputam compromissos distintos com a prática do jogo. Do mesmo modo, a multiplicação das edições nacionais e a importação em maior escala fazem com que a condição de ser RPGista sem ter livros, ou mesmo sem ler livros, passe a ser encarada como cada vez mais marginal, dando margem à construção do protótipo de bom jogador como aquele que possui uma coleção particular, está a par das modificações mais recentes nos sistemas de regras ou cenários de jogo, e, extensivamente, tem à mão diversas fontes (literárias, científicas) para compor suas aventuras. Ter cópias em xerox ou depender do empréstimo para poder ler um título tornam-se más práticas, ao mesmo tempo em que as boas práticas continuam a ser ditadas por um fato sócio-econômico: “agora dificilmente eu compro porque eu tou desempregado, custa caro, né (...)” (15).

Dessa forma, parece que o aumento da circulação dos títulos de RPG no mercado brasileiro não pode ser descrito como um simples processo de difusão, pois envolve, como

propôs Chartier, uma “tensão sempre a ser produzida entre, por um lado, a constituição de uma distinção pela diferença e, por outro, a sua apropriação pela imitação social ou pela imposição aculturante” (1988: 223). Sob esse prisma, a formação de um mercado nacional de livros de RPG está em estreita correlação com a formação de uma comunidade brasileira de role-playing gamers, e o nó que articula essas duas dimensões do mesmo acontecimento é certamente o de um discurso no qual a própria condição do sujeito está atrelada à elaboração de significados para a compra e o consumo: sendo relativamente fácil encontrar livros dessa natureza, surgem linhas divisoras para distingüir os que podem tê-los e os que não podem, os que têm acesso ilimitado a seus próprios livros e os que lêem apenas trechos de segunda mão em cópias sem qualidade. Enfim, no limite se fortalece a idéia de que comprar esses livros não leva simplesmente à posse, mas à participação em uma cultura comunitária que fervilha nos pontos de encontro dos jogadores, nos grandes salões e feiras de RPG, nas revistas e fanzines, na internet.

2. Captação de iniciantes. A pressuposição da posse, e portanto da compra, é talvez o primeiro fator determinante para que essas obras tenham surgido no país. Uma das principais preocupações nos primeiros momentos da formação de um mercado de impressos de RPG, com efeito, deve ter sido formar uma comunidade de jogadores de RPG, porque apenas assim se garantiria a manutenção do seu papel como compradores de livros. Neste ponto terá surgido uma personagem prototípica no imaginário do role-playing gamer: o jogador isolado, aquele que comprou um livro atraído pelo aspecto seu instigante, empenhou-se na empresa solitária de lê-lo e no entanto jamais conseguiu progredir além desse ponto por não ter encontrado parceiros com quem pôr em prática as instruções do jogo. Esta figura, muito presente em escritos de RPGistas, talvez tenha sido e ainda seja um dos principais canais de intermédio entre o discurso centrípeta do role-playing gamer e a exterioridade de um mundo imaginariamente desavisado acerca dos RPGs. Parece mesmo que um dos aspectos dessa identidade do RPGista é a sensação de estar em um constante diálogo com a multidão dos não-RPGistas, no centro de um vasto anel de estranheza perante o qual é necessário dizer alguma coisa. Durante algum tempo, sobretudo nos anos 1990, uma das formas que esse diálogo tomou foi a da captação de iniciantes, já que naquela época eram provavelmente menos numerosos os jogadores e mais dispersos os grupos, além do que teria interessado às editoras garantir a venda de suas tiragens e expandir o público desse tipo de material. De certa forma, podemos pensar que a proposição de materiais didáticos e paradidáticos inspirados em jogos de RPG constitui um prolongamento contemporâneo dessa constante disposição para