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C Á EXISTEM DRAGÕES

II.1 O role-playing game

Uma partida de RPG tipicamente ocorre em torno de uma mesa, com um número de participantes que costuma girar em torno de meia dúzia. Os papéis desses participantes estão submetidos a uma dicotomia essencial: um deles será o mestre54 e todos os demais serão jogadores. Ao mestre cabe narrar um enredo aventuresco; os demais escutam-no e “interpretam” algumas personagens que participam da história, narrando suas ações diante dos desafios e escolhas lançados por ele. Ao enredo engendrado dessa maneira podemos dar o nome de aventura; ao encontro dos jogadores podemos chamar partida. Diversas aventuras encadeadas, das quais participam as mesmas personagens, constituem um típico folhetim a que se costuma denominar campanha. Vemos assim que o mestre é responsável por elaborar, previamente a cada partida, o enredo de uma aventura e seus desfechos possíveis, além de uma série de impasses (enigmas, charadas, quebra-cabeças ou antagonistas) que precisarão ser superados pelos jogadores. É também encarregado de narrar e dramatizar essa aventura de maneira convincente, divertida. Os jogadores algumas vezes são incumbidos de elaborar as personagens que interpretarão, escolhendo-lhes as características conforme parâmetros definidos por um sistema de regras – por exemplo, qual é o seu aspecto físico, a medida de sua força física ou de sua inteligência, quais são as suas habilidades mais notórias, suas perícias profissionais ou suas especialidades, os aspectos em que leva desvantagem, os objetos que carrega consigo e que melhor sabe manejar etc. Os termos descritos aqui estão reunidos em um pequeno glossário que segue ao fim deste trabalho.

É relativamente fácil localizar na internet textos que tratam da história dos RPGs. Esses escritos costumam afirmar que os primeiros role-playing games foram inspirados em jogos de guerra e na obra de J. R. R. Tolkien, dois itens bastante populares nos Estados Unidos dos anos 1970. Narrativas semelhantes surgem também em depoimentos de jogadores de RPG – é o que já mostrava, por exemplo, Andréa Pavão (2000) –, de modo que essa parece ser ao menos uma tese tomada como legítima por parte dos RPGistas. Ademais, trabalhos acadêmicos e publicações sobre o assunto tendem a reproduzir essas afirmativas, o que leva a crer que a idéia vem ganhando credibilidade fora do círculo daqueles que seriam os primeiros envolvidos com o assunto55.

54 Essa função é universal no RPG “de mesa” e costuma receber uma grande variedade de nomeações: game

master ou GM (o termo inglês), narrador ou storyteller (no franchise Vampiro), keeper (no RPG Call of Cthulhu) e muito mais tarde, como ainda teremos de ver, professor (ver o Capítulo III.3 – Modos de ser).

55 Tratei desse assunto mais cuidadosamente em minha dissertação de Mestrado (Fairchild, 2004) e neste

Em todo caso, sabemos que os primeiros RPGs eram jogados sobre tabuleiros, à semelhança dos war games, e que estes representavam genericamente uma “masmorra” ou dungeon. Uma “masmorra” poderia designar, conforme o caso, um castelo, um forte em ruínas, uma caverna, um templo subterrâneo, um labirinto etc., e consistiria em diversas salas e corredores interconectados, repletos de criaturas hostis e tesouros. Tabuleiros desse tipo podiam ser facilmente desenhados preenchendo-se as células de uma folha quadriculada de modo a representar “paredes” e espaços abertos. O enredo desse tipo de jogo seria no mais das vezes variação de um mesmo mote: um grupo de aventureiros explora um edifício ermo em busca de riquezas ou combate um inimigo ferrenho. Dentre os primeiros lançamentos do gênero no Brasil estão jogos desse tipo (Classic Dungeon, Dungeon Quest, Dungeons&Dragons, Hero Quest). Um pouco mais tarde esse formato teria dado origem a jogos com enredos mais variados e regras mais complexas do que aquelas estritamente ligadas à locomoção de peões sobre as quadrículas de um calabouço, de modo que os tabuleiros desapareceriam ou passariam a ser usados somente em alguns momentos do jogo (sobretudo nas situações em que as personagens se envolvem em combates). Este, ao menos, foi o rumo da franquia Dungeons&Dragons, que passou do jogo embalado em uma caixa, lançado pela Grow em 1993 ou 199456, para um conjunto de três livros publicados em 1995 pela Editora Abril. Tal é o formato dominante do RPG no país desde a segunda metade da década de 1990, de modo que se pode pensar que a encarnação do role-playing game, ao menos enquanto objeto palpável (e comprável), assume antes de tudo a forma de um livro.

A esse tipo de jogo derivado das antigas partidas sobre o tabuleiro é costumeiro referir-se como “RPG de mesa”, o pen&paper ou tabletop RPG dos americanos. Há outras formas de jogo, não obstante, que também se enquadram sob o emblema dos role-playing games, como as chamadas aventuras-solo – livros cujo enredo oferece opções ao leitor, formando diferentes seqüências de leitura – e a live action role-playing ou LARP – em que os jogadores se vestem a caráter e interpretam suas personagens de forma “teatralizada”, normalmente em sessões que envolvem dezenas de participantes. Existe ainda uma série de jogos de videogame e computador que recebem a alcunha de RPGs, dentre os quais alguns são franquias dos pen&papers como Dungeons&Dragons57 ou Vampire: the Masquerade58. Nos

impressos de RPG foram lidos no Brasil em diferentes momentos.

56 Sites da internet escritos por jogadores fornecem ora uma data, ora outra. O que é certo é que nesses anos

iniciais da década de 1990 duas fabricantes de brinquedos, Estrela e Grow, enveredaram pelo mercado dos RPGs, cada qual com uma leva de títulos. Cf. Apêndice D, “Cronologia: os role-playing games no Brasil”.

57 A mais antiga parceria desse tipo talvez seja a que resultou nos jogos da trilogia The Eye of the

Beholder, lançados entre 1990 e 1993. Entre o fim da década de 1990 e os anos 2000, surgiu uma nova leva de títulos que emprestavam a marca Dungeons&Dragons: Baldur’s Gate I e II, Icewind Dale I e II, Planescape:

últimos anos, além disso, vêm ganhando espaço diferentes formas de jogo via internet, como o play-by-mail – em que as interações presenciais do jogo de mesa comum são transpostas para a escrita via e-mail – e os MMORPGs (Massively Multiplayer Online Role-Playing Games) – jogos eletrônicos de que participam simultaneamente dezenas, centenas ou milhares de jogadores conectados a um servidor.

Como vimos, não é especificamente sobre as formas que os role-playing games podem assumir que este trabalho versa59. Tomo como objeto apenas um dos materiais que normalmente encontraremos envolvido em alguma etapa de muitas dessas modalidades de jogo: os livros, revistas, encartes e brochuras que venho chamando conjuntamente de impressos de RPG. Ao tratar disso deixo em segundo plano a preocupação em analisar uma série de aspectos da partida de RPG propriamente dita, como as formas de interação entre os jogadores, os enunciados que produzem nessa situação específica de interlocução, os espaços que freqüentam, as roupas que usam etc. Somente me deterei sobre essas questões na medida em que isso for relevante para uma análise da leitura de impressos de RPG. Também excluo do escopo de análise outros materiais que fazem parte do equipamento de jogo típico, como dados, miniaturas etc. Considerarei brevemente esses objetos apenas a fim de situar os impressos entre outros itens de um inventário do role-playing gamer dos quais não se dissociam. Finalmente, o estudo de impressos de RPG em diversos momentos andará lado a lado com a consideração de uma série de manuscritos produzidos pelos jogadores que mostram (dentre outras maneiras, pela imitação) pistas de uma leitura.