• Nenhum resultado encontrado

O S FAZERES DA LETRA

III.1 Modos de ler

III.1.2 Usos da imagem

Ilustrações em livros de RPG parecem cumprir um papel importante de mostração e reconhecimento, concorrendo para determinar as condições em que o leitor se empenhará ou não na leitura. O estilo das capas e figuras que adornam esses impressos pode ser simplesmente atraente, mas não se limita a maravilhar o observador – no primeiro encontro com o olhar, antes de qualquer leitura mais cuidada, a topografia do imaginário designa uma repartição do público: aqui “fantasia medieval”, ali “punk gótico”, “sci-fi”, “steampunk”, “toon”, “mangá” etc. Se esses estilos não são excludentes, ainda assim parece que seu sulco é profundo o suficiente para supormos que um leitor possa escolher um livro apenas por conta das ilustrações e, talvez, de alguns nomes ou termos esparsos.

A ilustração e os recursos gráficos parecem ter ainda outros efeitos. Folhear um livro recém-comprado sem assumir o compromisso de começar a lê-lo, passeando por algumas frases soltas e demorando-se sobre vistosos painéis e desenhos não é apenas uma forma de degustar a nova aquisição, mas já constitui uma primeira experiência de organização da leitura. Ao mesmo tempo em que nos deleitamos espiando pelas frestas entreabertas da obra que ainda vamos adentrar, sentimos o volume do livro em nossas mãos, apreendemos a quantidade de suas páginas e a quantidade de texto disposto em cada página, familiarizamo- nos com os formatos e as cores dos tipos, calculamos a proporção entre figuras e texto, a distribuição e as divisões do texto, retemos os nomes de alguns capítulos ou a silhueta desta e daquela ilustração, situamos passagens que despertaram nossa curiosidade, marcamos os pontos de que já tínhamos algum conhecimento prévio e assim por diante. De diversas maneiras, esse passear pelo livro é uma forma de territorializar a espessura indefinida do que de outra forma não seria mais que um bloco de lâminas de papel empilhadas. Conhecer um livro através de umas poucas frases ou figuras entrevistas no cinematógrafo do seu folhear é

como reter alguns marcos da paisagem de um caminho que percorremos pela primeira vez – e que nunca mais parecerá exatamente o mesmo quando voltarmos a tomá-lo.

A seguir estão dispostas algumas maneiras como a imagem pode se inserir na leitura de um livro de RPG. São formas diferentes como a imagem pode se relacionar com o texto que a rodeia, o que não é a única maneira como ela participa da leitura – o capítulo seguinte será dedicado a explorar, para além disso, o ponto em que a letra se desfaz em espetáculo imaginário para flertar com o nonsense. Por ora, não obstante, detenhamo-nos nas funções que as figuras assumem dentro de uma leitura que aponta para o sentido.

1. Decorar e demonstrar. É claro que uma das funções que podemos atribuir a esse carnaval de imagens é a de tornar os livros mais bonitos. Além disso, no entanto, a presença mais ou menos “gratuita” de imagens dispersas pelo livro costuma assumir uma função especial no desenrolar da partida: elas podem ser mostradas aos jogadores enquanto o mestre narra. Assim, por exemplo, quando as personagens se deparam com uma criatura fantástica, exumam um artefato misterioso ou chegam a um lugar desconhecido, o mestre pode abrir um livro e indicar uma figura ao mesmo tempo em que lhes diz: isto é o que você estão vendo. Ele pode mesmo elaborar uma descrição verbal à medida que percorre a figura com seus olhos e aponta certos detalhes. Há figuras que parecem ocorrer nos livros especialmente com esse objetivo – é o caso dos “retratos” que acompanham a menção a certas personagens, ou os desenhos que ilustram, por exemplo, compêndios de monstros e de armas (figura III-2a e b). Se o próprio livro não trouxer gravuras que satisfaçam as necessidades do momento, é evidente que esse material pode ser obtido em revistas, histórias em quadrinhos, livros de arte, bancos de imagens na internet ou quaisquer outras fontes. Entre os textos e desenhos fornecidos por jogadores constam algumas figuras avulsas que devem ter cumprido essa função (figura III-2c).

Desse modo, imagens podem ser mostradas no lugar de certos segmentos que pertenceriam ao texto oral dos participantes do jogo, ou mesmo servir como ponto de partida para a elaboração desse texto se os participantes continuam a narrar enquanto apontam para a figura. Talvez com mais freqüência as imagens assumam um valor descritivo – descrever, com efeito, é uma das técnicas nucleares do ofício de game master. Mas podem funcionar como uma espécie de apoio da memória para a paráfrase de segmentos textuais já lidos, por exemplo, quando o mestre busca reproduzir a descrição de um cenário e vai se pautando em uma ilustração ou mapa para resgatar detalhes importantes.

Talvez valha a pena considerar que encontraríamos gestos e usos da imagem semelhantes em algumas práticas escolares como as apresentações orais, a confecção de cartazes e os trabalhos de pesquisa enciclopédica. Até mesmo os tipos de figura, neste caso, podem ser semelhantes – mostram-se retratos de personagem históricas, mapas e desenhos ilustrando locais importantes etc. É verdade que esse tipo de exposição também pode ser encontrado em outras circunstâncias que não a escola ou os role-playing games, mas o fato de que uma mesma experiência do saber, pautada na monstração como processo de conhecimento, seja compartilhada especificamente aqui e ali certamente será um ponto de apoio para se argumentar sobre o uso de RPGs na escola.

2. Ilustrar ou exemplificar genericamente o texto circunvizinho. Virtualmente qualquer imagem presente num livro de RPG pode ser usada da maneira descrita acima. Talvez por isso, a maior parte das ilustrações que ornamentam livros de RPG guarda uma relação bastante frouxa com o texto circunvizinho, contando muito com o trabalho do leitor para estabelecer esse vínculo – é raro, por exemplo, que as ilustrações tenham legendas. Isto evidentemente deixa aberta a porta para que essas associações sejam desfeitas, permitindo que a imagem passe a remeter a outros textos conforme o jogador as recorte e reúna para ilustrar suas próprias aventuras.

À guisa de exemplo, observemos as páginas 42 e 43 de GURPS: Módulo Básico. Encontramos um par de gravuras que se tornam visíveis ao mesmo tempo quando se abre o livro. A primeira, na página 42, mostra um grupo de samurais praticando com espadas; a segunda, na página 43, mostra um velho índio ensinando duas crianças a atirar com arco e flecha. As ilustrações remetem vagamente ao texto no entorno: na página 42 abre-se o Capítulo 7, intitulado “Perícias”, que trata justamente das regras para determinar a habilidade de uma personagem, dentre outras coisas, no manejo de instrumentos diversos – como armas. A primeira gravura, onde se vêem samurais praticando, está intercalada a um trecho sob o título “Desenvolvendo Perícias”, que discorre sobre as regras para aquisição ou aperfeiçoamento de uma dada “perícia”. Na coluna de texto à esquerda, os títulos dos tópicos são: “Índice das Perícias”, “Aperfeiçoando suas Perícias” e “Aumento Automático do Nível de Habilidade”. A imagem de guerreiros treinado em conjunto não remete especificamente a nenhum trecho do texto em particular, nem depende dele para ser compreendida, mas guarda uma relação de exemplaridade que pode ser resgatada sem grandes atribulações. De maneira semelhante, a segunda gravura, em que se vêem crianças praticando com arco e flecha, está entre um bloco de texto encabeçado pelo título “A Escolha das Perícias Iniciais” e outro

chamado “Pré-requisitos”, o que de algum modo sugere o tema do aprendizado e do início do treino em uma determinada perícia. São portanto figuras que ilustram ou exemplificam o texto circunvizinho de maneira tal que podem ser destacadas do seu contexto e aproveitadas em circunstâncias diversas (figura III-3).

3. Remeter a trechos específicos do texto circunvizinho. Outras figuras guardam relações um pouco mais específicas com o texto. Isto não impede que sejam usadas da maneira como o jogador desejar, mas pressupõe da parte do leitor o resgate de segmentos particulares do texto das quais realmente depende, de algum modo, a compreensão de ambos – texto e imagem.

Vejamos um exemplo. Na revista D20 Saga nº 1 encontramos às páginas 6 e 7, na seção “Confronto”, um artigo entitulado “Proporções & probabilidades”. Na metade inferior da página 7 há uma charge em que se vê um homem musculoso perdendo uma disputa de braço de ferro para uma criatura franzina que acabou de lançar três dados sobre a mesa

(figura III-4). Essas personagens, e a própria cena em que as vemos, têm correlatos

específicos no interior do texto – pelo seu formato peculiar, os dados remetem ao primeiro parágrafo, em que o autor trata do “icosaedro, o dado de 20 faces”; o homem musculoso está nomeado no texto como “anão troncudo e bem forte (For 18, +4 de bônus)” e seu oponente como um “kobold mirrado e desnutrido (For 3, -4 de penalidade)”. Reconhecer as relações entre o desenho e esses termos implica reconhecer outras remissões que nos dão um retrato bastante estreito do destinatário deste artigo – os termos “kobold” e “anão” remetem à descrição das diferentes “raças” de personagens do universo de Dungeons&Dragons; as expressões “For” e “penalidade”, com seus respectivos valores, remetem a uma tabela presente no Livro do Jogador que já foi reproduzida no capítulo anterior79; o próprio traço da

charge, enfim, deve chamar à memória uma ciranda de imagens vistas nos livros dessa série, nas quais “anões” e “kobolds” são retratados de uma maneira mais ou menos recorrente.

A seguir o kobold exclama comemorativo enquanto bate o braço do contendor contra a mesa: “Opa! Outro acerto crítico80!”. Dois expectadores assistem à cena e um deles comenta: “Acabaram as nossas chances depois que o Ataulfo virou crupiê de cassino...”. O episódio ilustrado funciona, assim, à maneira de exemplo, antecipando o assunto geral do artigo – situações absurdas ou cômicas geradas por lances de dados improváveis. Também antecipa de

79 Cf. II.1.2.4, B – Exposição de regras, f. índices, tabelas, planilhas, listas, dado (14)

80Acertos e falhas críticas são, em geral, jogadas de dados muito difíceis de obter, e representam feitos

alguma maneira o tom bem-humorado que estará presente em todo o texto e reconstitui um trecho específico do artigo, situado no quarto parágrafo, em que o autor elabora o primeiro exemplo que utilizará para ilustrar sua tese:

(10) A aposta é a seguinte: um anão troncudo e bem forte (For 18, +4 de bônus) vai tirar um ‘braço de ferro’ contra um kobold mirrado e desnutrido (For 3, -4 de penalidade). (...) A chance de o anão ganhar com certeza absoluta é de apenas 40%. Não entendeu? Então vamos para os números: o anão tem que tirar 13 ou mais para garantir uma vitória (os valores irão variar entre 17 e 24, por causa do +4), pois o maior resultado do kobold no d20 será 16 (se o anão tirar 12 ou menos é capaz de empatar ou perder do kobold). (...)

(D20 Saga nº 1, p. 6)

Se se pensar que a posição de alguém que escreve uma crítica é sempre um tanto delicada, o uso do humor certamente é uma forma de conquistar o leitor, amenizando o embate com a autoridade impressa e diminuindo o desconforto de se alinhar com uma postura de oposição. Além disso, a possibilidade de ler a charge antes do texto e comprometer-se com ela através do riso pode contribuir para que, chegando ao trecho acima, o leitor já tenha acatado o episório como digno de atenção – será mais difícil desinteressar-se depois de ter sido seduzido pela espirituosidade do ilustrador.

4. Estabelecer marcos para a memória. Outro papel desempenhado pelas ilustrações pode ser o de servir como apoio à memória. Nos casos vistos acima, as figuras podem não apenas sugerir ou antecipar uma leitura que está por ser feita, mas também consolidar as impressões de uma leitura já realizada, solidificando-se como égide metonímica de uma interpretação que se fixou no leitor. O vínculo de sugestão ou exemplaridade, nesse sentido, é em si mesmo desnecessário à criação desse tipo de efeito. Particularmente quando lidamos com livros extensos, as ilustrações demarcam pontos de referência mais visíveis e mais rapidamente reconhecíveis do que os títulos e subtítulos internos, balizando o folhear das páginas e facilitando, por exemplo, a localização de trechos específicos pela sua associação a uma imagem (o que é verdadeiro mesmo que a relação seja meramente de contigüidade). De certo modo, para além disso, a memorização da ordem e posição relativa de algumas ilustrações, bem como o apego e a predileção por certas figuras, constitui uma maneira particular de conhecer o livro e fornece marcos para a elaboração de uma geometria motora, uma cartografia livresca na qual as escolhas do leitor fazem surgir pontos de incandescência. Em se tratando, neste caso, de livros que não deixam de ser pensados para a consulta pontual,

bem como para a exibição durante a partida, essa forma de compartimentar sua espessura hostil pode ser um traço importante na rotina de leitura do jogador.