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História da leitura: o texto e o suporte

H ISTÓRIA E DISCURSO

I.1 História

II.1.3 História da leitura: o texto e o suporte

Temos nos detido sobre este pormenor de nomenclatura por entender que ele implica uma importante manobra de aproximação do objeto. Darnton fala de seu próprio trabalho como uma história dos livros, talvez por alicerçar suas análises em um modelo que assume a confecção do impresso e sua leitura como um encadeamento de mensagens comunicadas ao redor de um grande circuito. Roger Chartier aponta um caminho diferente ao notar que “falta às enumerações dos livros impressos ou possuídos uma questão central, a dos usos, dos manuseios, das formas de apropriação e de leitura dos materiais impressos” (1998: 77-78, grifos meus). Ocorre aí um deslocamento da ênfase dada por Darnton às condições de manufatura do livro para a questão que no seu esquema entra como um pressuposto: as formas como se produz a leitura, o ato de leitura, no lugar mesmo em que Darnton fala de uma passagem do pensamento à linguagem e à matéria. Não se trata de focalizar um único ponto do esquema, aquele onde estão os leitores, porque há atos de leitura em toda parte: também lêem o editor, os gráficos, os distribuidores, os livreiros. Não se trata, contudo, de descartar os pontos do esquema em que não se dá tal ato, uma vez que já foi reconhecido o fato de que as condições de manufatura do impresso são também condições do ato de ler que se dá algumas estações adiante ou atrás.

A questão central, portanto, é a transparência dessas linhas que, no esquema de Darnton, unem as caixas onde estão depositadas as personagens do universo livresco. É aí que Chartier amarra o problema da história dos livros à questão central de que se ocupa uma história da leitura, lançando para tanto as concepções de texto e suporte. Entra em cena o problema da materialidade das fontes históricas: o pesquisador toma consciência de que, ao lidar com um documento escrito, não é apenas com um “texto” que está lidando, mas também com um objeto que tem um peso e uma forma, é feito de certos materiais, passa de mão em mão, deixa-se usar de determinadas maneiras mas não de outras, armazena-se em determinados lugares, transporta-se de tais formas e se utiliza em ocasiões específicas, às vezes por indivíduos especialmente designados para isso. Fora dessas circunstâncias, o que resta não é texto, unidade inteiriça, mas apenas resto, figura ficcional e indecifrável criada pelo próprio olhar do leitor.

Contra a representação, elaborada pela própria literatura, do texto ideal, abstrato, estável porque desligado de qualquer materialidade, é necessário recordar vigorosamente que não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler (...) (Chartier, 1988: 127).

Está posto o princípio de indissociabilidade entre texto e suporte. Curiosamente, ao decretá-la, Chartier cai numa armadilha, uma vez que o próprio uso de dois termos distintos continua mantendo viva a dicotomia que o postulado visava diluir. Não há grande problema nisso, desde que se mantenha em vista o caráter puramente operacional do uso desses termos. De toda forma, uma vez que texto e suporte sejam entendidos como um todo uno, será impossível pensar no objeto portador de escrita como “transmissor” de uma “mensagem” textual que nele está depositada, pois a partir de agora considera-se esta mesma “mensagem” como parte integrante do objeto que a porta.

Os textos que se prestam a escrever a história são tomados como portadores de um sentido que é indiferente à materialidade do objeto manuscrito ou impresso através do qual se dá, constituído de uma vez por todas e identificável graças ao trabalho crítico. Uma história do ler afirmará, contra esse postulado, que as significações dos textos, quaisquer que sejam, são constituídas, diferencialmente, pelas leituras que se apoderam deles. Daí, uma dupla conseqüência. Antes de mais nada, dar à leitura o estatuto de uma prática criadora, inventiva, produtora, e não anulá-la no texto lido, como se o sentido desejado por seu autor devesse inscrever-se com toda a imediatez e transparência, sem resistência nem desvio, no espírito de seus leitores. Em seguida, pensar que os atos de leitura que dão aos textos significações plurais e móveis situam-se no encontro de maneiras de ler, coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas e de protocolos de leitura depositados no objeto lido, não somente pelo autor que indica a justa compreensão de seu texto, mas também pelo impressor que compõe as formas tipográficas, seja com um objetivo explícito, seja inconscientemente, em conformidade com os hábitos de seu tempo. (Chartier, 1998: 78)

Uma implicação direta dessa tomada de texto e suporte como um todo único é a dissolução, por simetria, da noção de leitura como decomponível em porções “cognitivas” e porções “físicas”. O gesto de leitura não é menos relevante que qualquer outra pista indicativa dos mistérios que a mente opera sobre a letra. A leitura “não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros” (Chartier, 1999b: 16); é “prática encarnada em gestos, em espaços, em hábitos” (ibid., p. 13). Na sua relação com o impresso, a leitura não terá jamais a transparência da comunicação.

Cabe estabelecer um limite, entretanto. Sem retornar ao ponto de onde partíamos (a concepção comunicativa de Darnton), é preciso perceber que na raiz da manobra de Chartier está a derrubada de uma outra divisão: a do lingüístico e do não-lingüístico. Resta saber até onde tal indistinção é viável. A contribuição de Chartier está em alertar para a importância de não se ignorar os aspectos materiais de uma fonte histórica no momento de sua interpretação. Esse posicionamento implica erradicar a neutralidade do suporte na análise do documento: “a transformação das formas e dos dispositivos através dos quais um texto é proposto pode criar novos públicos e novos usos” (1999b: 22). Isso não significa, todavia, que a “leitura” da materialidade do livro, esta sensibilidade às diferenças entre tipos, aos efeitos de diagramação, às imagens e iluminuras, à qualidade do papel etc., equivale a uma leitura propriamente dita. Uma gravura não é interpretável da mesma forma como o texto que a explica, embora seja possível conceber uma forma de ler que aceda a ambas de maneira: o que há de específico no texto, e que está ausente na ilustração, é o fenômeno particular da linguagem. Por essa razão é que, apesar dos avisos de Chartier, ainda há uma razão para manter o uso de dois termos, “texto” e “suporte”.