CAPÍTULO 1. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
1.4. Governadores e Assembléias no Brasil pós-88
Uma das mudanças mais importantes trazidas pela
redemocratização do país em 1988 foi o fortalecimento do Poder Legislativo dentro
do sistema presidencialista de governo. A Constituição de 88 consagrou a
revalorização do Legislativo, uma vez que este assumiu novas competências, como
a possibilidade de introduzir emendas ao Orçamento e participar mais ativamente do
controle das finanças públicas
18. Ademais, foram eliminados alguns dispositivos
institucionais como o “decurso de prazo” e o “decreto lei”, medidas que também
apontam para o fortalecimento do Legislativo vis-à-vis o Executivo. Além disso, em
diversos pontos o Congresso teve seus poderes ampliados em relação àqueles
consagrados pela Carta de 1946. A nova Carta permite ao Congresso contribuir de
maneira efetiva para a formulação de políticas públicas.
A Constituição Federal de 88 consolidou formalmente essas
mudanças no Legislativo, devolvendo a este o poder de decisão e, por outro lado,
aumentando suas atividades de fiscalização sobre o Executivo federal. Novamente,
e depois de um longo período de ditadura militar, surge a oportunidade de
discutirmos as perspectivas de um sistema de governo baseado em checks and
balances (freios e contrapesos). Contudo, a história nos revela que não foi bem
assim, o Executivo não teve suas prerrogativas suficientemente reduzidas. Vejamos.
A maioria dos poderes legislativos de que foi dotado o Executivo ao
longo do período autoritário foram mantidos. Medidas provisórias
19, direito de
requerer unilateralmente urgência para a tramitação de seus projetos, monopólio de
emissão de proposições legislativas de cunho financeiro e administrativo são
instrumentos que, à disposição do presidente, comprometem severamente a
capacidade do Congresso de intervir nas decisões políticas do governo e servir
como contrapeso às iniciativas do Executivo. O uso intensivo desses poderes
institucionais pelo presidente permite que ele restrinja fortemente a capacidade
legislativa e, por indução, a capacidade propositiva do Congresso. Assim, o efeito
18
Talvez uma das mais importantes conquistas do Congresso é sem dúvida alguma a redefinição de
sua participação no processo orçamentário e no controle das finanças públicas. Ver Constituição
Federal, Título 4, Capítulo primeiro, seção 8, “Do Processo Legislativo”; sobre a questão do
Orçamento, ver artigos 165 a 169.
19
Em seu artigo 62, a Constituição de 88 estabelece que, em caso de relevância ou urgência, o
Presidente pode editar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las à apreciação do
Congresso Nacional. A Emenda Constitucional n.32, de 11 de Setembro de 2001, alterou o artigo 62
da Constituição Federal, vedando as reedições, até então permitidas.
mais visível desse quadro institucional é a preponderância do Executivo na produção
legislativa (Figueiredo & Limongi, 2001).
Não é por acaso que, por longo tempo, principalmente nos meios
acadêmicos, uma espécie de consenso prevaleceu apontando para uma atitude de
subserviência dos legisladores frente aos “donos da caneta”. Figueiredo e Limongi
mostram que na vigência da Constituição de 1946, as leis de iniciativa do Executivo
corresponderam a 43% do total de leis no período, participação que aumentou para
89% no período militar. Após a Constituição de 1988 (1989-1994), manteve-se o
padrão do regime militar: a média de leis do Executivo atinge 85% (Figueiredo &
Limongi, 2001, p.49). Essa preponderância do Executivo, segundo os autores,
decorre diretamente de suas prerrogativas institucionais.
Entretanto, como lembra Tomio (2005; 2006), há muitas
particularidades no funcionamento do governo local com relação àquele que se
verifica em nível federal. Não parece prudente reproduzir integralmente as
explicações sobre as relações executivo/legislativo do plano federal para o plano
estadual. Embora o sistema presidencialista de governo vigore nos três níveis de
governo da Federação brasileira, observa-se que seu funcionamento efetivo é
diferente no plano federal comparado à esfera estadual. Os Estados não são meras
réplicas do que acontece no plano federal. Há uma agenda política e uma pauta
decisória própria dos estados, como será verificado mais adiante.
Nos estados, todos os governadores possuem grande parte da
delegação de poderes legislativos que o Executivo federal possui: (i) prerrogativa
exclusiva de iniciar legislação sobre assuntos tributários, orçamentários, financeiros
e administrativos, (ii) direito de veto parcial ou total; (iii) e requerimento de urgência
para suas iniciativas legislativas. Entretanto, a maioria dos governadores no Brasil é
destituída de poder de decreto via MPs
20. Mesmo nos Estados onde essa
prerrogativa é institucionalizada, onde o executivo estadual possui a prerrogativa de
alterar o status quo institucional a despeito das preferências dos legisladores através
20
Apenas quatro estados (Santa Catarina, Acre, Tocantins, e Piauí) atribuem ao executivo a
prerrogativa da edição de MPs. 1) No Piauí, o executivo pode editar somente em caso de calamidade
pública, mas nunca houve a edição de MPs neste estado; 2) em Tocantins, o Governador edita MPs
em caso de urgência, mas não há edição de MPs há, pelo menos, duas legislaturas; 3) no Acre, não
há indicação explícita sobre as razões que permitem ao executivo editar MPs, são poucas as MPs
editadas neste Estado que foram convertidas em lei; 4) Santa Catarina é o único estado em que os
governadores utilizaram o poder de decreto (MPs) para introduzir legislação no parlamento – ver
Tomio (2004, 2005).
da edição de MPs, este é um poder muito limitado e não reproduz a lógica legislativa
do executivo federal nas últimas décadas (Tomio, 2005).
Pesquisas sobre legislaturas e processos de governo específicos
têm demonstrado que nem todas as Assembléias convivem no mesmo contexto de
subserviência ao Executivo, ou seja, o fenômeno do “ultrapresidencialismo” não
parece ser uma regra geral. Como afirma Tomio:
Investigações sobre legislaturas, governos e processos decisórios
específicos nos estados contribuíram – e continuam contribuindo –
para reduzir o preconceito, presente inclusive dentro do campo
científico, sobre os atores políticos estaduais e os resultados de sua
interação. Estamos ainda colecionando dados e burilando modelos
explicativos. Mas, certamente, já sabemos que há uma grande
diversidade de resultados possíveis nos subsistemas políticos
estaduais. A política nos estados produz mais do que somente
barões, caudilhos e seu séquito fisiológico, clientelista e subordinado
(Tomio, 2005, pp. 03-04).
O próprio Fernando Abrúcio faz uma ressalva à regra do
“ultrapresidencialismo estadual”. Em doze dos quinze estados estudados pelo
autor
21no período de 1991 a 1994 (ou seja, em 80% da amostra), o Executivo
detinha maioria absoluta na Assembléia, construída através da Coalizão Fisiológica
de Governo, porém, a “regra do situacionismo”, típica do ultrapresidencialismo, não
foi verificada em três estados: Pernambuco, Rio Grande Sul e Rio de Janeiro. No
caso específico do Rio Grande do Sul, o Executivo, para ver seus projetos
aprovados, precisou adotar uma estratégia de conquistar caso a caso o apoio
parlamentar (Abrucio, 1998b, p.94).
Os estudos contidos no livro de Fabiano Santos, como já fora
ressaltado, mostra a diversidade de padrões de comportamento parlamentar e de
relação Executivo-Legislativo que pode ser colhida na análise dos sistemas políticos
estaduais no Brasil. Entretanto, tão importante quanto a mera constatação desses
padrões diferenciais vigentes nas unidades subnacionais são as hipóteses
explicativas levantadas ao longo dos textos para a existência de tais padrões. Boa
parte delas sublinha justamente a importância de duas variáveis que serão
privilegiadas em nossa pesquisa: (i) os arranjos e inovações institucionais
“endógenos” ao Legislativo que distribuem direitos e deveres aos parlamentares; (ii)
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