CAPÍTULO 1. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
1.3. O “Estado da Arte” dos Estudos sobre Legislativo no Brasil
O ponto de partida de qualquer revisão da literatura sobre o “estado
da arte” dos estudos sobre o legislativo no Brasil contemporâneo são os trabalhos
pioneiros elaborados por Clóvis Brigagão (1971) e Wanderley Guilherme dos Santos
(2003)
15. Pelo menos desde esses primeiros estudos sobre as relações
Executivo-Legislativo no Brasil, a análise agregada e sistemática da “produção legal” (leis,
projetos de leis e demais proposições legislativas) dos órgãos parlamentares tem
sido utilizada como um importante indicador para caracterizar as relações entre os
poderes e o processo de governo, especialmente durante a primeira experiência de
democracia presidencialista pluripartidária brasileira do período de 1945 a 1964.
No tocante ao período posterior a 1988, a partir da publicação dos
consagrados trabalhos de Figueiredo e Limongi (2001)
16iniciaram-se os estudos
mais aprofundados sobre as relações Executivo-Legislativo na nova experiência
democrática brasileira, sendo a partir de então a análise agregada das proposições
legislativas utilizada de maneira sistemática como um importante indicador, ao lado
de outros, das características do processo decisório governamental, tanto em nível
nacional como subnacional.
Em relação aos trabalhos de Figueiredo e Limongi sobre o
Congresso Nacional, os autores demonstram que as regras institucionais que
regulamentam as relações entre o executivo e o legislativo e a organização interna
do Legislativo são de fundamental importância para a estruturação do processo
decisório, das relações entre os dois poderes, e do padrão de proposições
legislativas predominantes no Congresso Nacional. A ênfase dos autores se dirige
aos efeitos da organização interna do Congresso e a extensão dos poderes
legislativos do presidente no funcionamento do sistema político brasileiro.
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A edição original do texto clássico de Wanderley Guilherme dos Santos é de 1986, e a base de
dados utilizada pelo autor é a mesma elaborada por Brigagão em sua tese de mestrado. A partir da
análise agregada da produção legal no período, ao lado de outros indicadores sobre polarização
ideológica, fragmentação político-partidária e instabilidade das elites, Santos elabora o conceito de
“paralisia decisória” para caracterizar uma situação de ruptura institucional que pode eventualmente
dar lugar a uma interrupção no funcionamento dos regimes políticos democráticos e sua substituição
por regimes autoritários a partir da intervenção violenta e saneadora de um “ator externo”.
Em vez de privilegiar a forma de governo e a legislação eleitoral e
partidária, procuramos examinar como se estrutura o próprio
processo decisório e seu impacto no comportamento parlamentar e
desempenho governamental (Figueiredo & Limongi, 2001, p.08)
Demonstram os autores que os mecanismos constitucionais
presentes na Carta de 88 (que ampliam os poderes legislativos do presidente, como
a extensão da exclusividade de iniciativa, o poder de editar medida provisória e a
faculdade de solicitar urgência para os seus projetos), e as normas consagradas no
Regimento Interno da Casa que regulamentam a distribuição de direitos e recursos
parlamentares, determinam um comportamento parlamentar e um desempenho
governamental com as seguintes características: i) relativa facilidade do presidente
de aprovar sua agenda governamental; ii) forte preponderância legislativa do
Executivo, caracterizando um padrão decisório altamente centralizado; iii) a
produção legislativa se faz basicamente fora das comissões, com recurso constante
ao mecanismo de urgência controlado pelas lideranças; iv) a agenda do Executivo
não só é aprovada como tem tramitação mais rápida, enquanto a agenda do
Legislativo é aprovada em menor número e tem a tramitação mais lenta; v) produção
pouco significativa dos deputados individualmente considerados; vi) comportamento
disciplinado das bancadas partidárias nas votações.
Assim, a bibliografia recente sobre o processo político brasileiro
contemporâneo em geral, e as relações entre os poderes Executivo/Legislativo em
particular, consiste na reorientação do foco de interesse para as regras institucionais
que regulamentam mais de perto o funcionamento interno dos corpos legislativos e
influenciam seu desempenho.
Fabiano Santos (1997) também demonstra como as diversas
estruturas institucionais que regulamentavam as relações Executivo/Legislativo nos
períodos em que vigorou um regime democrático no Brasil foram responsáveis
diretos por dois padrões diversos de produção legislativa e de relações entre os
poderes: (i) um primeiro período (1945-1964), onde vigorou uma situação de
centralização média no processo decisório, que deu origem a uma “agenda
compartilhada” entre Executivo e Legislativo; (ii) num segundo período (pós-1988),
onde predomina um presidencialismo altamente centralizado, que concentra poderes
de agenda que permitem ao Executivo impor suas preferências ao Legislativo no
processo decisório (padrão que o autor qualifica de “agenda imposta”). Para
apreender e caracterizar morfologicamente tal “agenda compartilhada” vigente no
período 1945-1964, o autor utiliza diversos indicadores, tais como o percentual de
leis aprovadas segundo sua origem; o resultado das votações nominais de projetos
originários do Executivo e Legislativo, e o grau de disciplina dos principais partidos
representados na Câmara dos Deputados no período indicado.
Na esteira desses trabalhos que buscam analisar a produção
legislativa em nível nacional, surgiram uma série de outros estudos que procurava
verificar os padrões de produção legislativa e interação entre Executivo e Legislativo
nas unidades subnacionais, empregando recursos analíticos e metodológicos
homólogos aos utilizados por esses autores em seu enfoque sobre o processo
legislativo em nível nacional. Destacam-se, nesse sentido, os trabalhos de Fernando
Abrúcio (1998a), Régis de Castro Andrade (1998a) e Fabiano Santos (2001a).
No tocante ao primeiro autor (Abrúcio), ele defende a tese segundo
a qual, via de regra, as Assembléias Legislativas estaduais no Brasil são instituições
frágeis, subordinadas aos governadores dos estados, os “barões da Federação”.
Segundo este autor, a força dos chefes dos Executivos estaduais resultou na
formação de um sistema “ultrapresidencialista” onde os governadores controlavam
de maneira hiper-centralizada o processo decisório, bem como toda a dinâmica da
política estadual.
O ultrapresidencialismo estadual brasileiro constituído na
redemocratização tinha três características básicas: a) o Executivo
controlava o processo decisório em toda a sua extensão; b) os outros
Poderes não constituíam checks and balances sobre o Executivo; c)
o governador era o verdadeiro centro das decisões do governo, não
havendo a dispersão do poder que acontecia no nível federal na
relação entre presidentes e ministros (Abrucio, 1998a, p.23).
Tal arranjo redundaria num ‘pacto homologatório’ entre
governadores e deputados estaduais, através do qual os legisladores aprovariam
sem grandes debates as iniciativas do Executivo em troca da distribuição de
recursos clientelistas. O padrão de comportamento parlamentar e legislativo
resultante desse arranjo seria a concentração da produção de legislação relevante
no Executivo, enquanto os deputados se concentrariam na produção de legislação
clientelista, abdicando de intervir de maneira mais ativa do processo decisório e de
formação de políticas públicas.
Construía-se assim o chamado pacto homologatório entre o
Executivo e a Assembléia Legislativo, com base no qual se formava
uma maioria situacionista que homologava as iniciativas legislativas
do governo estadual. O Pacto homologatório sustentava-se por dois
elementos interligados: pela cooptação dos deputados através da
distribuição de recursos clientelistas e pela ausência de participação
e responsabilização dos parlamentares diante de políticas públicas
implementadas pelo executivo, a não ser na pequeníssima parte que
interessa à base local de cada deputado (Abrucio, 1998a,
pp.113-114).
Note-se que o argumento do ultrapresidencialismo estadual e seu
princípio de funcionamento, o pacto homologatório, tem natureza semelhante às
análises distributivistas e nos modelos de Segredo Ineficiente. A diferença
importante é que no caso dos estados, o governador é predominante a ponto de
controlar qualquer forma de acesso a recursos e favores. Portanto, em vez da
imprevisibilidade, o comportamento dos deputados estaduais seria caracterizado
pelos fenômenos do “situacionismo” e do “governismo” (Abrúcio, 1998a, p.137). Ou
seja, logo após o anúncio de vitória de um governador de estado haveria uma
debandada de deputados em direção ao partido governista, alterando
completamente a competição política
17.
Tal padrão também é detectado, em linhas gerais, em alguns dos
trabalhos constantes em Andrade (Org.), que indicam a tendência à formação de
“coalizões fisiológicas de governo” também em nível estadual, embora em nível
municipal tenda a prevalecer um padrão decisório marcado por “negociações
pontuais”, quando o Executivo não conta com maioria parlamentar nas Câmaras,
devido à maior proximidade do representante com o eleitor. Observe-se, no entanto,
que, embora caracterizando um padrão de relações Executivo-Legislativo
semelhante ao detectado por Figueiredo & Limongi (2001) no plano nacional, a
estrutura da argumentação de Abrúcio é um pouco distinta, pois a ênfase recai mais
nos recursos políticos, concentrados nas mãos do chefe de governo, e não nas
regras e arranjos institucionais que regulam as relações entre os poderes, como em
Figueiredo e Limongi.
Um outro trabalho, igualmente importante, foi organizado por
Fabiano Santos (2001a), que visa justamente testar a vigência dessa estrutura de
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