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Capítulo 1: Premissas, conceitos e teorias do clima nas Relações Internacionais

1.2 O desenvolvimento teórico: da teoria dos regimes ao sistema de hegemonia

1.2.2. Governança global multinível

Como vimos em páginas anteriores, a mudança climática se apresenta como um fenômeno complexo, multidimensional e de extrema exigência para a cooperação. Essa complexidade desbordou as capacidades da corrente teórica que mais frequentemente tratou da problemática do clima nos estudos de RI: a análise de regimes do liberal- institucionalismo. Como consequência, consideramos a abordagem da governança global – ampla e flexível em sua definição - como uma ferramenta analítica adequada para considerar a dimensão cooperativa da questão climática na atual fase do Antropoceno. Assumimos esse enfoque como menos ambicioso em termo teóricos, deixando assim espaço para análises que não partem de uma visão pré-fabricada da cooperação e do comportamento dos agentes.

A literatura da governança global evolui nas últimas três décadas como forma de lidar com os problemas da interdependência no marco da aceleração da globalização, marcados pela existência de ações coordenadas na ausência de um núcleo de decisão (INUOE, 2012). Nas palavras de James Rosenau (1992), governança global envolve “an order that lacks a centralized authority with the capacity to enforce decisions on a global scale”.

Sabemos da amplitude do conceito e a relativa falta de consenso em relação a sua definição (ANDONOVA ET AL, 2007), no entanto, consideramos essa abertura como positiva, na medida em que oferece um arcabouço analítico o flexível suficiente como para envolver a ampla gama de interações sociais que a mudança do clima abrange.

Assim, a “Comission of Global Governance” (2005,ii ) define governança global como:

The sum of the many ways individuals and institutions, public and private, manage their common affairs. It is the continuing process through which conflict or diverse interests may be accommodated and cooperative action may be taken.

Segundo Biermann et al (2009:21):

The term governance denotes new forms of regulation that goes beyond traditional hierarchical state activity. It usually implies some form of self- regulation by societal actors, private-public cooperation in the solving of societal problems, and new forms of multilevel policy.

Afirmam Okereke e Bulkeley (2007) que o núcleo que unifica as diversas definições é o abandono do foco no Estado como ator exclusivo do processo social. Como afirma Inoue (2012) em relação à governança global do clima:

(...) the concept of climate governance focuses on how governing as a process takes place, acknowledges the multiple and relational nature of

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power and considers that state and society are intertwined. As such, the concept recognizes a wide range of actors that have participated in the process of governing climate change and points to the emergence of novel governance arrangements.

A mudança do clima como área de governança multinível de crescente complexidade é também destacada por Andonova et al (2007), situação que demanda, segundo os autores, a superação da tendência dos estudiosos da disciplina em focar nos acordos multilaterais interestatais como principal “locus” de governança.

Como afirmam Hale e Roger (2012:5)

Scholarship now speaks of a transnational climate regime complex (Abbott 2011; Keohane & Victor 2011), polycentric climate governance (Ostrom 2011), multi-level climate governance (Betsill & Bulkeley 2006) as well as fragmented governance architectures (Beirmann et al 2010), and has sought to understand how their various elements interact in conflicting and complementary ways.

A complexidade dos problemas dessa fase do Antropoceno tem gerado alternativas como a “governança experimentalista”, definida como um processo transnacional institucionalizado desenhado para estimular a solução de problemas de uma forma participativa, deliberativa, informada localmente e adaptável. Esse arcabouço analítico prescinde, na nossa visão, de qualquer pretensão teórica – no sentido de antecipar comportamentos – e se contenta como ser um “desenvolvimento construtivo” (DE BÚRCA ET AL, 2014). Essa noção experimentalista também está associada a uma percepção da crise da governança baseada em regimes internacionais, manifestada desde meados da década de 1990 (Id:480) e que também tem como expressão o surgimento de complexos de regimes (KEOHANE E VICTOR, 2010).

A noção de governança experimentalista está associada também ao conceito de governança policentrica de Elinor Ostrom (COLE, 2015), não apenas pelo destaque de diversos movimentos de atores sub-globais, mas pela ênfase no caráter positivo que a comunicação e a confiança entre os diferentes atores têm sobre as pespectivas de cooperação (OSTROM, 2009).

Further, the extensive empirical research on collective action discussed above has repeatedly identified a necessary central core of trust and reciprocity among those involved that is associated with successful levels of collective action. If the only policy related to climate change was adopted at the global scale, it would be particularly difficult to increase the trust that citizens and firms need to have that other citizens and firms located halfway around the globe are taking actions similar to those being taken “at home.”

Cole (2015) destaca com o exemplo do Grupo de Trabalho Conjunto sobre Clima entre os EUA e a China criado em 2013, tanto como funciona a governança policentrica, quanto como a comunicação contribui para a cooperação. Segundo o autor, o trabalho desse grupo derivou no Acordo de Clima entre os dois países em novembro

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de 2014 – ambos se comprometendo com medidas de mitigação – e colocou pressão sobre outros países no caminho para Paris, leitura compartilhada por Keohane e Victor (2016).

Assim, e voltando a Ostrom (2009), o centro do argumento da ganhadora do Prêmio Nobel não é que apenas a governança do clima deriva de diversos núcleos localizados em diferentes níveis, mas que é desejável que assim seja, porque favorece a comunicação, a construção de confiança entre atores e a experimentação que a abordagem do problema exige. Afirma Ostrom (2009:35):

An important lesson is that simply recommending a single governmental unit to solve global collective action problems—because of global

impacts—needs to be seriously rethought and the important role of

smaller-scale effects recognized.

Finalmente, cabe destacar que essa visão da governança oferecida por Ostrom também se caracteriza por ser uma abordagem empírica, sem respostas apriorísticas.

Em suma, a amplitude do conceito de governança global o torna um instrumento adequado para abordar a complexidade da dinâmica social associada à mudança do clima no âmbito das Relações Internacionais. Em particular destacamos a sua capacidade para considerar uma grande variedade de atores - estatais e não estatais, localizados em diferentes níveis - nacionais, sub-nacionais, internacionais, transnacionais, e guiados por uma complexa estrutura de incentivos, não apenas baseada no conceito utilitário do interesse.

A utilização do arcabouço da governança global apresenta o desafio de combinar duas dimensões principais: níveis de governança, que reflete a dinâmica global-local, e setores de governança, cujos extremos são a esfera pública e a privada (BIERMAN ET AL, 2009). Assim, cada área de governança é habitada por atores localizados em diferentes posições dentro desse plano e com níveis diferenciados de agência (influência no social outcome).

Como no caso da análise de regimes, o arcabouço da governança global destaca a cooperação como saída para crise climática, porém com uma diferença importante. Ela não é concebida como consequência necessária, cimentada em um cálculo racional baseado nos interesses definidos dos Estados. Pelo contrario, a cooperação aparece como um cenário possível – desejável - mas não fatal.

Paterson et al (2003) oferecem um reforço para nosso argumento:

GEG (global environmental politics10) should not therefore be thought of

as a management practice assuming a harmony of interests between

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different social actors. Rather is a fundamentally political process involving struggles over who has the authority and legitimacy to purpose rules guiding the practices of states, TNCs, social movements and individuals, and who will benefit and lose out through the adoption of particular rules and their implementation (Patterson et al, 2003:8).

Com base nessa discussão sobre o conceito de governança global, enumeramos a seguir uma série de áreas de interação social que consideramos relevantes para abordar a problemática da mudança climática nas relações internacionais.

a) O complexo de regimes de clima;

Da reflexão feita aqui sobre os limites da análise dos regimes, não segue como corolário o abandono definitivo dessa linha de pesquisa, mas sim a obrigação de ponderar suas restrições. Como afirmam Barnett e Duvall (2005: 17): “governance is also matter of institutional or systemic bias, privilege and unequal constraints to action”.

Nesse sentido, achamos necessário destacar a reflexão feita por Keohane e Victor (2010) e De Búrca et al (2014) ao redor da noção de complexo de regimes, definido por aqueles como um conjunto disperso de regimes específicos. Essa configuração surge, segundo os autores, em contraposição com os esforços dos Estados de criarem um sistema de regulação forte, integrado e compreensivo. Essa evolução, amplificada desde a década de 1990 obedece a diversas forças, entre elas:

Institutional inertia and political deadlock, the rise of non-hierarchical organizations, and the proliferation of linkages between international organizations and civil society actors – all fomented by and contributing

to greater uncertainty – have led to the emergence of a variety of higher-

order governance arrangements, the most representative of which are regime complexes (DE BÚRCA ET AL, 2014:481).

Na nossa visão, a análise de regimes também deve considerar essa limitação. Finalmente, é possível pensar os regimes como subsistemas de governança.

b) A dinâmica das potências climáticas

Uma das limitações da teoria dos regimes aqui ressaltada é a subestimação do impacto da política doméstica nos assuntos internacionais. Na área da governança do clima resulta evidente que a sua dinâmica está profundamente influenciada pelos movimentos na economia política dos atores estatais – particularmente os mais poderosos - de forma que o seu estudo se torna central.

Esse foco, no entanto, envolve o desafio da heterogeneidade, se considerada a variedade de sistemas políticos e econômicos presentes no mundo e as combinações múltiplas de democracia e mercado (LEIS E VIOLA, 2007). Esse é o ângulo analítico da nossa pesquisa, que será visto com maior detalhe nas próximas páginas (Ponto 2.2.3).

59 c) Os níveis subnacionais

Existem movimentos significativos e crescentes por parte de instâncias subnacionais – Estados, Municípios, Regiões - para adotar estratégias climáticas de forma relativamente independente de outros níveis – fazendo em alguns casos uma espécie de by-pass com respeito ao ator estatal tradicional (BIERMANN ET AL, 2009; SETZER, 2009). Nessa observação se fundamenta a necessidade de considerar esses atores como agentes destacados da governança do clima. BERNAUER (2013) destaca certo desenvolvimento nessa área de pesquisa.

Alguns exemplos desses movimentos são: a lei do clima do Estado da Califórnia, nos EUA; o compromisso de redução de emissões da província de Quebec, no Canadá, the Chicago Climate Exchange e os planos de várias cidades como Londres, San Francisco, São Paulo e Chicago (VIOLA ET AL, 2013). Em termos de redes transnacionais destaca-se a C-40 (SETZER, 2009; MAUAD, 2016).

d) Atores não-estatais

A literatura destaca o papel relevante de alguns atores não-estatais na construção do regime de clima e em outras formas de governança climática (OKEREKE E BULKELEY, 2007; HURRELL, 2005; PORTER ET AL, 2000; BERNAUER, 2013), não apenas por ter influenciado o comportamento dos atores estatais, mas também pelo exercício de uma ação mais substancial, criando regras próprias de comportamento (BIERMANN ET AL, 2009). Os exemplos são variados, como a atuação de ONGs nas Conferências das Partes (COPs) da CQNUMC, ou papel da comunidade científica na politização da mudança climática na década de 1980 (PATERSON, 1996). Nas palavras de Young (2000:2):

Although remain central players in natural resource and environmental issues, non-state actors have made particularly striking advances both in the creation of environmental regimes and its efforts to make these regimes function effectively once they are in place.

Cass (2007) destaca a ação desses atores em três áreas de particular relevância: o estabelecimento de agenda (agenda setting), o processo de negociação entre os Estados e, na etapa de ratificação e implementação dos acordos.

Num sentido mais amplo, diz Hurrell (2005:43) que:

Transnational advocacy groups, social movements, and transnational networks have undoubtedly played very important roles in the changing politics of global justice and in the process of norm development and institutionalization.

Os atores não-estatais ocupam um amplo espectro, possuem variado impacto em níveis de tomada de decisão (BIERMANN ET AL, 2009), e podem envolver redes

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científicas, organizações ambientais e empresariais, meios de comunicação, corporações multinacionais, burocracias governamentais, e grupos locais e indígenas, etc.