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Capítulo 1: Premissas, conceitos e teorias do clima nas Relações Internacionais

1.2 O desenvolvimento teórico: da teoria dos regimes ao sistema de hegemonia

1.2.1 Os limites da teoria

Desde seu surgimento como tópico das relações internacionais sobre fins da década de 1980 (PATERSON, 1996), a mudança climática foi abordada predominantemente pela corrente liberal-institucionalista da análise de regimes (OKEREKE E BULKELEY, 2007; PURDON, 2015); como aconteceu com a maioria dos problemas ambientais no âmbito da disciplina (Patterson, 1996).

A definição de regime mais reproduzida tem sido a de Stephen Krasner (1995:2) “a set of implicit or explicit principles, norms, rules and decision-making procedures around which actor’s expectations converge in a given area of international relations”. Em linha similar, Young (2000:6) define regimes como: “social institutions that consist of agreed upon principles, norms, rules, decision-making procedures, and programs that govern the interaction of actors in specific issue areas”.

Assim, o núcleo dessa abordagem supõe a existência de uma série de princípios, normas e procedimentos comuns que operam para regular o comportamento dos Estados no contexto da anarquia. Outros elementos básicos dessa corrente são: os regimes são instrumentos para lidar com problemas que são caracteristicamente internacionais; a procura do interesse próprio dos Estados os motiva a criar e sustentar regimes; e o foco analítico da abordagem é o Estado-Nação (OKEREKE E BULKELEY, 2007), considerado como um ator racional (STOKKE, 2000).

Embora a definição de regime internacional não necessariamente o sugira, a maior parte da literatura produzida em seu âmbito tem focado nos regimes como organizações formais (STOKKE, 2000).

Cass (2007) aponta duas razões que contribuíram para o predomínio da análise de regimes no tratamento da mudança climática como problema internacional. Em primeiro lugar, o ingresso do problema na agenda aconteceu em tempos em que a produção teórica no âmbito da disciplina estava dominada pelo debate entre

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neorrealismo e neoliberalismo. Nesse marco, a ótica do liberal-institucionalismo oferecia instrumentos analíticos mais adequados para lidar com a questão, dada sua ênfase na cooperação e no papel das instituições como moderadoras da anarquia.

Em segundo lugar, a construção do regime formal de clima ofereceu um estudo de caso que se adaptava com relativa facilidade às premissas da teoria neoliberal. Em linha análoga, Okereke e Bulkeley (2007) afirmam que a abordagem dos regimes resultava atrativa porque oferecia superar certos problemas da política ambiental global, como a tragédia dos comuns e a existência eventual de free-riders.

Em suma, a análise de regimes do liberal-institucionalismo apresentou-se como um instrumento analítico adequado, em tempos em que o centro da política global de clima era constituído pelo regime formal e ele evoluía de forma relativamente convergente com os seus postulados teóricos.

Não obstante, a abordagem começaria a perder o seu papel dominante por dois motivos principais: o crescente afastamento do conjunto empírico e, o avanço de concepções teóricas alternativas, no marco de um questionamento sistemático dos enfoques tradicionais - realismo e liberalismo em suas diversas formas – no âmbito da disciplina.

No primeiro caso, a mudança do clima como problema internacional foi transbordando os limites do regime formal, na medida em que diferentes países – individualmente ou associados – foram avançando com políticas e medidas climáticas de forma relativamente independente dos desenvolvimentos da Convenção (VIOLA ET AL, 2013; DE BÚRCA ET AL, 2014).

Assim, a mudança climática foi expandindo as suas fronteiras para as esferas da “high politics” internacional (MOTAAL, 2010), incorporando sistematicamente considerações de poder e geopolítica – uma deficiência recorrente entre a literatura crítica da análise dos regimes. Dessa forma, o foco exclusivo no regime internacional se tornou cada vez mais limitado para dar conta dos desenvolvimentos da política internacional de clima (PURDON, 2015). Todavia, as dificuldades da ação cooperativa no âmbito do regime – problemas nas negociações do Protocolo de Quioto, seu limitado alcance em termos de emissões globais e os problemas de implementação – foram também reflexos da distancia entre a teoria e a realidade.

O segundo conjunto de fatores que minou o predomínio da análise de regimes, foi o desafio conceitual colocado por outras tradições teóricas, no marco dos debates mais amplos dentro da disciplina de Relações Internacionais, o neorrealista-neoliberal e

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o pós-positivista. Agregamos essas críticas em duas grandes categorias, uma referida ao conceito de Estado e a outra referente ao tratamento do poder.

Em relação ao primeiro ponto, parte da literatura afirma que o foco no Estado como ator central das relações internacionais resulta limitado para abordar a política global do clima, já que tende a desconsiderar a influência de outros agentes capazes de alterar o rumo dessa área de governança (CASS, 2007). Nesse sentido, embora o liberal- institucionalismo seja mais sensível ao papel de atores não estatais que as correntes realistas, tipicamente esses agentes são incorporados à análise apenas na medida em que influenciam o comportamento dos Estados (OKEREKE E BULKELEY, 2007).

Todavia, Okereke e Bulkeley (2007:9) afirmam que a analise de regimes do neoliberalismo concebe um Estado com “absolute capacity to mobilize and direct efforts of all persons and groups within their domain”; caindo na limitação analítica de subestimar o papel da dinâmica política doméstica dos países (PURDON, 2015; EDWARDS E ROBERTS, 2015; KEOHANE E VICTOR, 2016).

Em linha similar, afirma Stokke (2000:28)

In practice, most regime theory has been in line with the methodological assumptions of structural realism that states can usefully be conceived of as unitary, rational actors and that opening the black box of domestic politics in an interactive rather than additive manner is not likely to be worth of the costs involved (STOKKE, 2000: 28).

O autor identifica outra limitação na abordagem dos regimes: a sua concentração em áreas específicas e separadas (issue areas), que resulta na criação de fronteiras artificiais entre atores, ideias e soluções: “governance, as conceived of in regime analysis, is clearly circumscribed spatially and functionally” (STOKKE, 2000:29).

Orekeke e Bulkeley (2007) compartilham o argumento de Stokke (2000), ao tempo que problematizam a artificial divisão entre as arenas internacional e doméstica e a concepção da motivação dos atores definida puramente em bases racionais ou utilitárias. Em relação a esse ponto, Cass (2007) destaca o aporte de autores construtivistas, que argumentam que o foco nas forças materiais como determinante dos interesses e a posição relativa na estrutura de poder, resulta limitada na complexa esfera da governança climática. Nas palavras de Pettenger (2007:12):

One of the most important contributions of constructivism is the ability to illustrate changes in values, identities, interests, strategies and policies that a focus on material forces alone cannot explain.

O segundo grupo de desafios teóricos diz respeito ao tratamento do poder como categoria analítica, particularmente no âmbito das instituições internacionais. Uma primeira crítica se origina no rival positivista – o neorrealismo – cujo argumento é que o

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liberal-institucionalismo subestima as dinâmicas de poder nas relações de cooperação entre os Estados. Para aquela corrente teórica, as instituições internacionais são apenas um reflexo da distribuição de capacidades no sistema internacional; epifenômenos incapazes de alterar a estrutura de incentivos dos atores no contexto da anarquia (STOKKE, 2000; PATERSON, 1996).

Critica similar é levantada por Hurrell (2055:48):

Institutions are not just concerned with liberal purposes of solving common problems or promoting shared values. They are also sites of power and reflect and entrench power hierarchies and the interest of the powerful states. The vast majority of weaker actors are increasingly rule- takers.

O autor ainda caracteriza o liberal-institucionalismo como “hobbesianismo otimista”, já que considera o papel dos interesses e do poder, porém deposita na racionalidade a confiança para moderar os efeitos da anarquia. Finalmente, Stokke (2000) argumenta que as deficiências da análise de regimes neoliberal em relação ao poder se originam no exagerado esforço dos seus representantes de contestar a premissa realista da estabilidade hegemônica.

As limitações apresentadas pela corrente teórica predominante não lhe são, no entanto, exclusivas; outras propostas dentro da disciplina também mostram dificuldades para tratar a questão de clima. No caso das correntes realistas e neorrealistas os obstáculos são claros, na medida em que o mundo aparece na sua visão como uma constelação de conflitos interestatais, cenário em que a cooperação é um reflexo da distribuição de poder e não produto de uma inclinação racional dos atores por moderar os efeitos da anarquia (MOTAAL, 2010; INOUE e FRANCHINI, 2014).

A ênfase do realismo em uma definição de poder em que predominam a força militar e a capacidade econômica se torna problemática na arena do clima, porque a sua manifestação não é evidente (PATERSON, 1996). Finalmente o realismo comparte com o seu rival positivista a seguinte característica levantada por Paterson (1996:7)

Realist and liberal institutionalists restrict us by and large to interstate politics, to patterns of conflict and cooperation between states, to processes of negotiation within anarchy, to the relevance of international institutions.

O construtivismo é considerado aqui mais como uma abordagem geral do processo social do que como uma teoria, e em boa medida concordamos com a ideia de que identidades e interesses socialmente construídos são relevantes para entender a participação de diferentes agentes na governança do clima (PETTENGER, 2007). Manifestamos essa visão em nossa análise dos casos, na proposta de condicionantes de compromisso climático e, na forma como os analisamos em cada um dos países.

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