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Habermas – esfera pública e a crítica a seu modelo

PARTE III – CONCEITO

Capítulo 1 – A “sociedade civil global” em construção

1.2 Ascensão e fractalização da opinião pública

1.2.2 Habermas – esfera pública e a crítica a seu modelo

Em seu A mudança estrutural da esfera pública, Habermas (1991, p. 27) vai ao encontro do período do Iluminismo e defende o argumento de que houve a formação de uma esfera pública cuja confrontação política foi peculiar e sem precedente histórico, na qual as pessoas fizeram o uso público de sua razão (Öffentliches Räsonnement). Habermas considera que a erosão da esfera pública clássica começa após 1870, quando o capitalismo competitivo liberal dá lugar para o capitalismo organizado de cartéis e trustes.

Junto ao espaço discursivo, espaços físicos serviram de cenografia para a criação da esfera pública. Na Inglaterra, a coffeehouse reuniu um estrato social amplo da classe média, incluindo artesãos e comerciantes. Ela deu acesso a círculos relevantes menos formais que os do Parlamento e da Corte, os quais são ligados ao universo do Estado. Baseado em D’Alembert, Habermas comenta que o equivalente francês daquele modelo britânico era o salon. Igualmente, a opinião se emancipava das fronteiras fixadas pela dependência econômica. Na Alemanha, houve elementos similares nas sociedades da mesa (Tischgessellschaften) e nas velhas sociedades literárias (Sprachgesellschaften) do século XVII.

A esfera pública (Öffentlichkeit) formava uma linha divisória entre o Estado e a sociedade. Segundo as categorias de Habermas, o domínio privado inclui a sociedade civil e o

espaço conjugal familiar (espaço também dos intelectuais burgueses); enquanto a esfera da autoridade pública inclui o Estado (“reino da polícia”) e a corte. No interregno, ficava a esfera pública. Ela se comunicava com o domínio político, com o mundo das letras (clubes, imprensa) e com mercado dos produtos culturais. A esfera pública e a OP são tão profundamente interconectadas que Habermas define a primeira como um domínio da vida social em que a OP pode ser formada.

A característica intermediária da esfera pública ganha a atenção de Habermas e não fica apenas como uma construção de ordem de instituições, pois, ainda antes delas, a “subjetividade originária na esfera íntima da família conjugal criou, por assim dizer, seu próprio público” (HABERMAS, 1991, p. 29). Interesses psicológicos guiaram uma discussão crítica derivada da disseminação de produtos da cultura que se tornaram publicamente acessíveis, como a sala de leitura, o teatro, os museus e os concertos.

O caráter próprio da Öffentlichkeit está nas características de que, primeiro, a autoridade se dava pela força do melhor argumento. Segundo, a discussão pressupunha uma problematização de assuntos até então não questionados, pois eram de monopólio de homens do Estado e da Igreja ou, pelo menos, de categorias sociais específicas. Por fim, o mesmo processo que converteu a cultura num produto é o que permitiu estabelecer o público como um princípio inclusivo (HABERMAS, 1991, p. 36-37).

A esfera pública estudada por Habermas, a dos séculos XVIII e XIX, era crucialmente dependente da mídia impressa. Seguiu-se o estabelecimento de uma sociedade da informação, desde o advento de mídias alocutivas (rádio e televisão) e, depois, de mídias de consulta, conversação e registro (VERSTRAETEN, 1996, p. 353-356). Nessa nova sociedade, mais que

uma explosão do número de produtores de informação e de bases de dados, houve também o fenômeno da informação personalizada. Entre os críticos da Öffentlichkeit, Peter Glotz e Wolfgang Jäger acreditam que a teoria habermasiana não se conforma mais à realidade, sendo incapaz de fazer jus à forma contemporânea das democracias de massas (HOHENDAHL, SILBERMAN, 1979, p. 95).

Num estudo crítico sobre a obra de Habermas, Verstraeten faz cinco objeções. A primeira, de que Habermas teria enfocado por demais o lado emancipatório da esfera pública. Michel Foucault, por exemplo, havia mostrado que, junto ao quesito liberal, caminhava uma dimensão de disciplina social. A esfera pública era um fenômeno ambivalente. A segunda, de que Habermas não teria se detido suficientemente no processo de fabricação da esfera pública por parte dos indivíduos, concentrando-se nas configurações institucionais. A terceira, de que Habermas teria atribuído uma neutralidade ao conceito de esfera pública, uma noção ideal-

típica. Para os dias de hoje, em vez de se pensar na constituição de uma esfera pública homogênea, caberia considerar o tema da diversidade. A quarta objeção diz respeito ao modo como Habermas considerou as mudanças na esfera pública de modo a mostrar um estado de decadência. Para Verstraeten, o fenômeno da comercialização da mídia não pode conduzir a um entendimento de que houve um retorno a instituições feudais. E, por fim, a última objeção é a de que Habermas não teria se detido em analisar algo atualmente importante: a relação entre comunicação, racionalidade e subjetividade (VERSTRAETEN, 1996, p. 349-353).

Ao retornar a Hohendahl e Silberman e às críticas de Glotz e Jäger, Verstraeten as classifica de uma maneira mais ideológica que a feita por Niklas Luhmann em sua teoria dos sistemas. Aqueles dois teriam uma tendência a entender a teoria da esfera pública como “conservadora” e “romântica”; já em Luhmann, a busca geral pela verdade dá lugar a uma aproximação pragmática à incerteza. O importante dessa crítica é como ela deu dimensão à tensão entre a discussão normativa e a explicação teórica.

A teoria de Luhmann demonstrou ser a mais difícil de refutar do que aquelas apresentadas pelos adversários pós-estruturalistas de Habermas (KNODT, 1994, p. 90). O campo teórico de Luhmann trabalha com metodologias cujos problemas se originam de disciplinas científicas tão diversas quanto a biologia evolutiva, a teoria da informação e a lógica, aplicando-as no estudo de fenômenos culturais (sociedade, linguagem, história). No modelo de Luhmann, o sistema social moderno prescinde de identidade coletiva, tendo em vista que a integração se dá no nível dos sistemas e não por regulações normativas (HOHENDAHL; SILBERMAN, 1979, p. 115).

Luhmann sugere analisar o discurso apenas como mais um dos mecanismos de reprodução social entre os mais diversos tipos de comunicação (KNODT, 1994, p. 95). Mas, para Habermas, a integração social não pode se dar mediante a integração de sistemas, e por isso ele defende a posição da autodeterminação humana. No artigo de Marcondes Filho (2008, p. 13), a discussão sobre a questão da verdade é retomada na polêmica Luhmann-Habermas, pois, para aquele, não havia aspiração de validade universal em sua teoria, enquanto, para este, verdade e poder são ligados.

Por sua vez, Habermas criticou o objetivismo de Luhmann na teoria dos sistemas porque questões práticas são explicadas por regras formais de comportamento e podem ficar ausentes de legitimação. A crítica marxista se dá por posições como a de classificar Habermas como um ideólogo burguês tardio e ao encarar sua obra como se fosse incompleta para os desafios então contemporâneos do capitalismo, como observa Milde. Oskar Negt e Alexader Kluge, por sua vez, assinalaram a falta de uma esfera pública proletária, uma contraesfera pública em

Habermas (HOHENDAHL; SILBERMAN, 1979, p. 104).

Em seu artigo “Toward a Non-Foundationalist Epistemology: The Habermas/Luhmann Controversy Revisited”, Eva Knodt (1994, p. 97) considera que a busca de Habermas por um conceito normativo de modernidade numa estrutura de linguagem baseada na intersubjetividade conduz ao paradoxo. E parte da dificuldade de sustentação da teoria do agir comunicativo estaria em identificar as operações do discurso com a racionalidade, em um momento histórico carregado pelos dilemas da pós-modernidade.

Por outro lado, Knodt destaca a capacidade de Habermas em revisar a sua teoria e em assimilar as críticas. As numerosas respostas a seus críticos levaram-no a esclarecer seus conceitos, a refinar distinções, a responder a demandas, um périplo que o levou a incorporar resultados das ciências construtivistas, como a Linguística, a Psicologia Cognitiva e a do Desenvolvimento, a Sociologia e a Teoria dos Sistemas (KNODT, 1994, p. 82).

A esfera pública na teoria habermasiana mais recente apresenta uma postura mais ambivalente em face da esfera pública burguesa, após as críticas formuladas a ele nos anos 1970. O autor passou a fazer uma melhor formulação do problema histórico e, diante da cientificização da política e da opinião pública, arrisca uma hipótese – “uma sociedade cientificizada pode se constituir como racional e livre somente se ampliar ao ponto de que ciência e tecnologia sejam mediadas pela condução da vida através das mentes e de sua crítica” (HABERMAS apud HOHENDAHL; SILBERMAN, 1979, p. 110-11).

Habermas responde às teorias que consideram obsoleto o propósito de uma busca compartilhada pela verdade, e se dedica à questão do conhecimento e interesses humanos, pois o problema decisivo da sociedade de capitalismo tardio estaria na mediação da política e da ciência. A esfera pública deixa de ser exclusivamente histórica para se derivar de um princípio transcendental de interesses de constituição de conhecimento. Linguagem, comunicação e trabalho são fundamentais para Habermas, o que renova a esfera pública como tema.